Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama
a) A traduçao incapaz
Convém avançar com o exemplo da bruxaria traduzida de kikôngo para o português a fim de ilustrar como a tradução é uma traição. Na linguagem corrente, o termo ndôki, que substituiu zômbi, ntêbo,
kûya, myânda, foi traduzido por bruxaria.
Os Pênde dizem muloji, os Kwânyama dizem Omulodi e os umbûndu utilizam o termo omooid. Estes são termos que, nesse pequeno esquisso, tentar-se-á enquadrar na nossa crítica. Estermann,
referenciado por vários autores, escreve sobre o omooid dos umbûndu e afirma que são espíritos sonâmbulos, podendo ser bons ou cruéis consoante as circunstâncias. Deschamps especifica «o fantasma
de um
ancestral, dizem os Ovimbundu59 de Angola, que atravessa às vezes uma aldeia, emitindo os gritos para chamar os porcos ou aves de capoeira (galinhas), escolhe então a casa e torna doentes os
ocupantes. Depois, deve reconciliar-se com as ofertas. Com o tempo, os espíritos tornam-se pacíficos».
A questão consiste em saber se omolodi é uma das variantes de omoloyidi, mulodi, muloji que, finalmente, teria dado origem a ndôki nos Kôngo. Numa primeira olhada, este lê-se facilmente nos três
primeiros termos. Convém salientar que o velar DI pode mudar-se para o dental JI, consoante as diferentes regiões de uma (mesma) fala, mas também há metamorfose de DI em KI. Dilombo dos umbûndu
diz-se Kilômbo nas diferentes algaravias de alguns subgrupos do Kôngo é variante de Cilòmbo dos Pênde e Basûku. Então, sendo N a forma comprimida de Mu, prefixando o palatal lo, em MulODI e
MulOJI ou, ainda, MulOYIDI tornam-se NlODI, NlOJI ou NlOYIDI. é um princípio regular em língua Kikôngo que N+ l = ND61. Exemplos: n’lûmbu/ndûmbu, n’lûnda/ndûnda, n’lônga/ndônga,etc. Eis a razão
pela qual ndôki deriva de loka, lokila ou ainda no começo de lodila, segundo os autores.
Qual seria nesse caso a semântica intrínseca? Ou melhor, qual o sentido nuclear? Declerq fala de kuloyila que significa o seguinte: enfeitiçar, embruxar ou fazer feitiço. laman, por seu lado,
transcreve kulodila como ladrar ou latir alguém durante a noite e kulôla como ladrar, criticar, latir. Que relações existiriam então entre Kuloyila de Declerq e kulodila de Laman? Convém abrir um
aparte a propósito das crenças do Kôngo e de umbûndu. Segundo os primeiros, o ladrido de um cão durante a noite sugere uma mensagem lúgubre. Esse ladrido, à semelhança dos choros, anuncia a morte
nesta região mas geralmente na casa do dono do cão.
Aliás, lemos atrás com Deschamps, o fantasma pode trazer tristeza na sua viagem sonâmbula durante a qual emite os gritos (da mesma maneira que as galinhas ou aves de capoeira e porcos). Hubert
Deschamp esclarece ainda: «Oubangui é frequentado por inumeráveis génios. Os espíritos ma-
léficos reúnem-se à noite a fim de comer as almas. São ouvidos MIAR como os gatos selvagens rodeando as casas».
Esta explicação suplementária relaciona os sentidos de Declerq (Kuloyila) e os de laman (kulodila). Deste modo, duvidar-se-ia que kulôka seja a raiz de ndôki. De acordo com a filologia, ndôki vem
primeiro do verbo kulôdila que significa especificamente ladrar durante a noite. “ladrar durante o dia” diz-se kulôla. Isso indica que ndôki derivaria de kulôdila que, aliás, implica a ideia de
chorar, como fazem os gatos e os cães à noite.
Assim, este ou um destes espíritos sonâmbulos chama-se ndôki, ou seja, bruxo, tal como entenderam impetuosamente alguns não-Kôngo. Como podemos ver, a tradução de NDOKI para o não-Kôngo terá sido
precipita- da para BRuXO63, assim parece, pela falta de vocabulário adequado. Aliás, ndôki só pode significar o «poder que possui o bruxo», mas não é o próprio bruxo. é índice de quantas outras
realidades e instituições do Kôngo (e não só) que terão sido interpretadas aproximadamente sem corresponder fielmente ao pensamento primordial do Kôngo.