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Portal da Damba e da História do Kongo

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Página de informação geral do Município da Damba e da história do Kongo


Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (20)

Publicado por Muana Damba activado 7 Noviembre 2011, 03:20am

Etiquetas: #Fragmentos históricos do Uíge.

 

Por Dr José Carlos de Oliveira.

 

 

Os “Últimos Filhos do Império Colonial” entre os Zombo(2)

 

Todavia, urge que retomemos a nossa temática central: os zombo. Quem eram, afinal, esses colonos que então demandavam o norte de Angola? Como quase sempre, só os deserdados da sorte, demandavam em tão longínquas paragens. Os outros partiam rumo a outras latitudes e distanciadas, tanto quanto possível, dos cemitérios das linhas da zona tórrida. O resultado da sua ‘compra de ilusões’, muitas vezes, não chegava para adquirir uma simples mortalha. As gerações, hoje com menos de 60 anos de vida, só em filmes sobre a África da primeira metade do século vinte, podem ter uma pálida ideia do sofrimento dessa gente, onde estavam incluídos os administradores de circunscrição porque o cargo não os isentava das ‘maleitas da África’. Como chegavam ao zombo e que sonhos levavam nas ditas ‘malas de cartão’?

 
  
Sabemos, a partir do trabalho, Guia das Estradas de Angola do administrador de circunscrição Norberto Lopes (1944:9) que, o primeiro Guia das Estradas de Angola, foi publicado, em 1932, e era uma publicação da iniciativa de Manuel Ramiro Gonçalves. O ‘caminho’ de Luanda para Maquela do Zombo era descrito de uma forma que indiscutivelmente honra os pioneiros do desenvolvimento de Angola:
“Luanda:
Vide itinerário de Luanda a Capulo: Luanda – Toma‑se a rua Direita do Bungo. Depois, em passando a Rotunda, bifurcação: segue‑se pela direita (à esquerda vai a S. Julião da Barra). Logo a seguir, volta‑se à esquerda.
18 Kms. – Cacuaco – 8 Kms. Quifangondo – 6 kms. Depois, ramal à direita vai a Úcua e Caxito. 23 Kms., adiante, outro ramal à direita para Sassa­lema. A seguir passagem de rio em Jangada. – 57 Kms – Libongo – Volta‑se à esquerda – 33 Kms – Fazenda Tabi. – 40 Kms. – Capulo – 7,5 kms, depois à direita, caminho de carro boer, vai a Mussulo. 7,5 Kms. adiante, bifurcação: segue‑se pela direita (vai a Maquela) 12 – (à esquerda vai ao Ambriz). 3 Kms. Mais adiante outra bifurcação: segue‑se pela esquerda. A seguir passagem de rio em Jangada – 174 kms – Tomboco – volta‑se à direita – 62 kms – Totó – Volta‑se á esquerda – 21 kms – Bembe – 55kms depois, passagem de rio em jangada – 57kms – Lucunga – 33 kms, depois, passagem a vau – 86 kms – Damba – volta‑se á esquerda – 71 kms. – Quibocolo – Bifurcação: segue‑se pela esquerda (à direita vai também a Maquela do Zombo, mas o percurso é mais longo) – 30 kms – Maquela do Zombo.

 
 

O percurso de Luanda a Kapulo era constituído por cerca de 150 kms. Este percurso, em tempo de chuva, chegava a demorar oito dias. Os camiões seguiam em colunas de 5 a 10 unidades, para se entreajudarem. Faziam‑no, recorrendo a cordas e a tábuas que transportavam por debaixo das longarinas do chassis. Podemos perguntar‑nos então porque se metiam nos atoleiros? Era espantoso, era a lógica do acelerar ao máximo a velocidade do camião e fosse ‘O que Deus quisesse’, apelando‑se para muitos santos. Apesar da prece, quantas vezes o camião não era deixado à berma da estrada com mais de uma peça danificada e sem arranjo. Lá ficava o ajudante, sempre atento ao acondicionamento da carga, tapando constantemente a mesma, ajustando os encerados, após cada ventania e chuvada, enquanto o motorista se dirigia a Luanda à procura de substituição para a peça danificada.

 
Entretanto, no final dos anos quarenta do século passado, o percurso passou a fazer‑se com ligação a Kibala Norte e daí à povoação do Tôto. Por coincidência ou não, a estrada que viria a ligar Luanda à então cidade de Carmona (Uíje) ficou pronta antes de 1960. Foi o final de todos os tormentos, os 450 quilómetros do percurso passaram a fazer‑se, muitas vezes, entre onze a doze horas, para se chegar finalmente a Maquela do Zombo em cerca de dezassete horas.

 
Toda e qualquer relação (aparentemente lógica) entre a simplicidade que vai da redacção do trajecto descrito acima e a realidade traduz‑se num abismo. Só os muito experimentados camionistas e os seus inseparáveis ajudantes, conheciam a realidade das ‘picadas’ desse tempo (até, mais ou menos, ao final dos anos cinquenta do século passado) as ditas estradas carreteiras. Os trilhos que levavam os viajantes de Luanda ao Ambriz eram um autêntico calvário. Saía‑se de um atoleiro de 100 metros de lama para cair adiante noutro de idênticas dimensões e assim se passavam, por vezes, oito dias nestes pantanais repletos de mosquitos, que mordiam, sem tréguas, os viajantes que, exaustos, já não tinham forças para enxotar a mosca do sono (muito activa nestas paragens) pousada no pára‑brisas da viatura.

 
A catana (faca de mato de mais ou menos 50 centímetros de lâmina) entrava então em acção, a melhor, a famosa marca Jacaré, e a enxada de cabo longo. Com a primeira, desbravava‑se o mato para encontrar troncos de cerca de 5 centímetros de espessura e de cerca de 3 metros de comprimento. Eram necessárias algumas dezenas de troncos para fazer o estrado que cobrisse o lamaçal, depois, colocavam‑se se houvesse, folhas de palmeira por cima do estrado, embalava‑se o camião, e era só esperar que passasse para o lado de lá. Se não se conseguisse, já estava outro camião pronto, antes do lamaçal, para o rebocar de volta ao terreno seco, e era assim que, passo a passo, se ia esgotando o dia e com ele as poucas forças ainda acumuladas especialmente pelos ajudantes, os mártires destas odisseias. Diga‑se, em abono da verdade, que ainda existem muitas picadas deste género.
 
A água potável era muito racionada. Lavava‑se a cara, porque era necessário. Todos aqueles que procuravam estas paragens, sabiam quanto era obrigatório dividi‑la diariamente. As mãos sujas e, por vezes, sebentas não eram razão suficiente para gastar o precioso líquido. Bastava passar, duas ou três vezes, as ditas mãos pelas calças ou pelo vestido repleto de poeira, sujo, muito sujo e surrado, e assim iniciavam o trincar do pão duro de dias.

 
Os homens raramente usavam camisola interior, ficavam‑se durante toda a viagem pelas mesmas cuecas e calças. Muitas vezes, não usavam peúgas e, se as usavam, continuavam nos pés até chegarem ao destino. O calor dentro da cabine, por volta do meio‑dia, tornava‑se insuportável, apesar do suor, já não se dava pelo cheiro dos corpos. À noite, o motorista só dormitava de duas a quatro horas. Os mais conhecedores sabiam que entre o pôr‑do‑sol e a alvorada passavam por três fases em que, ao menor descuido, caíam por uma ribanceira abaixo ou se estatelavam de encontro a uma frondosa árvore da berma da estrada. Essas três fases eram o pôr‑do‑sol, o espaço entre as dez e onze da noite, conforme o motorista fazia o primeiro sono, e a pior fase era a do alvorecer. O motorista usava então um pano do tamanho de um lenço de assoar e que ia molhando e passando lentamente pela nuca e depois pela testa e olhos. O companheiro de viagem, se o levasse, já dormia a sono solto há horas. A vibração do motor na cabine, o calor que a inundava, os solavancos e o assobio do motorista acabavam por adormecer o neófito.

 
O motorista inventava as mais incríveis formas de passar o tempo. Muitos, quando viajavam sozinhos, aprendiam a falar alto, conseguiam mesmo inventar uma cena, em que houvesse azo a perguntas e respostas. Elaboravam cenas de disputas, tudo servia para matar o tempo. Alguns motoristas compravam os pacotes de cigarros Franceses, que vinham em maços de 180 cigarros, em duas camadas, cortavam as duas metades e 90 cigarros esgotavam‑se em 24 horas.
 
A esmagadora ‘maioria’ conhecia‑se perfeitamente, costumavam reunir‑se, para almoçar, não importava que fosse ao terceiro ou até ao oitavo dia (dependia como corresse a viagem face às fortes e repentinas enxurradas) no Cid Adão do Tôto, velho colono implantado isolado a 20 quilómetros da Kibala. Dali saíam, por volta das 8 horas da manhã uma vez tomado o matabicho, (termo utilizado para designar pequeno‑almoço) para chegarem ao ‘Cid Adão’, por volta das onze, doze horas, com o sol a pino. Vinte quilómetros insuportáveis, com o camionista a fazer o possível e impossível para se desviar de grandes seixos frequentíssimos no leito do caminho, buraco após buraco, solavancos sem fim.

 
Imagine‑se a cena: chegados ao Tôto, fora ali que o intrépido Cid Adão resolveu implantar o seu Império. Todos conheciam o Hotel do Tôto. Ali estacionavam os camionistas as viaturas, descansavam e por vezes pernoitavam. Dirigiam‑se então ao Hotel, uma espécie de ‘Saloon do Far West’ (foi a imagem que encontrámos com maior similitude). A refeição era composta de uma rala sopa de couve e feijão ou batata, temperada com osso de porco (da granja do Cid Adão). O primeiro e único prato carne de pacaça (búfalo do norte de Angola) acompanhada de arroz de tomate ou batatas cozidas, também da granja, vinho, banana e café de saco, exactamente como no Brasil. O ‘português de Angola’, Cid Adão Gonçalves, era conhecido em todo o antigo Congo Português, e para se fazer uma ideia da imagem do seu valor recorremos a António Coxito Granado (1955:522) que no seu Dicionário Corográfico‑Comercial de Angola faz a apresentação do Homem do Tôto:

“(…) Tôto – Posto do Bembe, com Sede na pov. Comer. Do mesmo nome, conc. do Bembe, com Sede no Uíge, dist. e com. do Congo. Centro de passagem e comunicações, instalado na concessão de Cid Adão Gonçalves, é na verdade uma povoação, embora numa concessão particular. Tem aeródromo, hotel, oficinas de reparações, e camionetas para alugar. Há uma fábrica de descasque de arroz, fábrica de extracção de óleo de palma; comércio, agricultura e criação de gados. Obra extraordinária de um homem de extraordinário valor – Cid Adão Gonçalves, dos mais tenazes e trabalhadores homens do Congo, e dos que bem merece o ter vencido. Luanda 376 kms, Bembe 21, Uige 139, Ambriz 201, Matoio 50, Ambrizete 190. Tem uma estrada para Matoio com a travessia do rio em Jangada (1955) e está em construção a estrada para S. Salvador do Congo, o que ainda mais valorizará o Tôto. C.T.T.; Est. RTP de 2ª, com enc. Post. Com enc. Post. Ord. À cobr. No Uige. Dir. Tôto. T.M.V.: Bembe.(…)”
 
Será conveniente acrescentar que, de permeio a estes exemplos, aqui e ali, se dava fé de europeus que tudo atropelavam para conseguir os seus fins, alguns, diga‑se de passagem, com muito êxito e, neste caso, estamos a referir‑nos muito concretamente a determinados fazendeiros de roças de café.
 
Recordamos aqui uma cena, que garantimos ser verídica, de um camionista da Firma JOJ de Maquela do Zombo e Kibokolo, que levava consigo um rapazote dos seus quinze anos. À saída da Kibala, muito sério, disse‑lhe que devia embrulhar‑se no cobertor de lã, fechar a janela do seu lado e ir assim até ao Tôto. Esta seria a única forma de não ser atacado pelos leões que, curiosamente, só atacariam do lado do passageiro. O moço, estarrecido, não se dava conta da impossibilidade de tal acontecer. Alagado em suor, seguia atrás do motorista que ia em mangas de camisa. Ainda não conseguia perceber que já estava a ser alvo de todas as conversas. Só ao entrar no hotel e depois do velho companheiro lhe dar ordem para tirar o cobertor se deu conta do ridículo. A partir daí até ao destino, já o moço, com o rito de passagem cumprido, deixou de levar a janela do seu lado fechada.
 
Os camiões, desde as primeiras viagens, ficavam sem a ‘bicha de conta quilómetros’, por causa dos troncos que se atravessavam por debaixo do motor (ao tempo, sem blindagem), aquando da passagem pelos lamaçais. Por isso, a média satisfatória em quilómetros era de vinte quilómetros à hora, sem contar com as avarias e os frequentes arranjos de pneus. Esta era outra luta quase sem palavras para se expressar, principalmente, porque se estava no pós‑2ª Guerra Mundial, e portanto, não havia facilidade em comprar pneus novos.
 
Lembramo‑nos de haver duas ou três recauchutagens de pneus, na cidade de Luanda, que vendiam pneus que tinham sido utilizados, dizia‑se, na guerra de Itália com a Abissínia. Desmanchar um pneu, retirá‑lo da respectiva jante, levava uma hora e meia quando não mais. Tudo à força de marretas que pesavam, não menos de dez quilos, e de uma ferramenta que eram os ‘desmanchas’, uma espécie de arranca pregos, com cerca de setenta centímetros de comprimento. Quando o pneu rebentava, só havia uma solução, substituí‑lo e isso constituía outra façanha. A uma das pontas da chave de rodas era acrescentado um tubo galvanizado de cerca de um metro e vinte e o ajudante subia então para cima do tubo, fazia pressão com o seu próprio peso, até que as porcas que fixavam a roda aos pernes cedessem. Finalmente, após reparada a pane, o camionista auxiliava o ajudante e recolocavam a roda no respectivo tambor. Depois, rezava‑se a todos os santos ou praguejava‑se, se o pneu rebentasse novamente, e se isso acontecia, iam‑se remendando as câmaras‑de‑ar umas após outras enquanto houvesse remendos. Quando o camião se fazia a uma íngreme ladeira, o ajudante saltava lesto para o chão, com a viatura em andamento, usava um enorme calço de madeira e com a maior rapidez, colocava‑o por debaixo das rodas traseiras, de um dos lados do camião, com a finalidade de estancar o veículo. Caso contrário, o camião em marcha atrás ia pela ladeira abaixo e só parava no fundo da ravina.


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