Por Dr José Carlos de Oliveira.
Os Zombo e a Adaptação ao ‘Contrabando de Sobrevivência’ ou Mwene a Zandu ya Kuna Sueki.
O ‘sítio’ dos mercados Zombo, os Zandu ou Nzandu não é só um lugar onde os habitantes da região permutam os
seus bens. Nele, especialmente as mulheres, transaccionam os produtos da terra e frequentemente aqueles que os seus maridos e parentes próximos lhes entregam para vender à comissão e que se
tornam apetecíveis pela sua raridade. Porém, alguns dos bens destas transacções têm o seu lado sigiloso e fascinante, justamente porque são difíceis de adquirir. Trata‑se da permuta de
mercadorias consideradas de venda ou compra proibida. Não é que a questão seja secreta, os habituais frequentadores do mercado sabem quem tem esses produtos. Este lado confidencial da venda às
escondidas é conhecido, em kikongo, por kuna sueki. O kuna sueiki traz os povos de fronteira alvoraçados, sempre de um lado para o outro, por vezes, sem saberem
realmente o que vão adquirir bastando‑lhes a excitação do ambiente comercial. Mais do que a excitação da compra, motiva‑lhes a aquisição de objectos que possam ser cobiçados.
Estas transacções, não visíveis, são paralelas às transacções permitidas pelo ‘dono do mercado’ que nem sempre é o mfumu ansi, a
autoridade máxima da região. Trata‑se de uma personagem de personalidade muito vincada, líder na região e considerado pelo seu poder económico, o mwene a zandu, ou seja, ‘o senhor do
mercado’. Assim, domina os seus informadores que o põem ao corrente da flutuação tanto dos preços como da necessidade das mercadorias mais transaccionadas no mercado e isto, em reunião privada,
normalmente no seu lumbu (quintal social de sua casa). Naturalmente a quantificação dos valores utilizada é diferente da nossa, como por exemplo, na expressão: “foram vendidos 500
quilogramas de amendoim ao preço de 1e/quilo”, mas sim entraram 50 mulheres do povo X, que trouxeram 50 cestos contendo sensivelmente cada um 15 medidas (para esta medida, desde há muito
tempo, que são aproveitadas as latas vazias, por exemplo, de azeitonas, de atum, entre outras) ou trouxeram 3 galinhas, 12 ovos ou vinte embalagens de kikuanga 7.
Não temos qualquer informação que aponte datas para o que a seguir mencionamos, porém, admitimos que, a partir de princípios da década de
vinte do século passado, o chefe de posto local terá começado a exigir uma certa organização no mercado que funcionasse junto ao seu posto8. A praça, o tal espaço referido, de cerca de
cinco mil metros quadrados, o que corresponde a mais ou menos setenta metros lineares por setenta, era protegida por uma cerca de delimitações quadradas, que entretanto tinha ligado as árvores
que o chefe de posto teria inteligentemente mandado preservar no local desbastado. Dentro do recinto, funcionava então o mercado. Este tinha uma única entrada que só permitia a passagem
de uma pessoa de cada vez, e assim sendo, era‑lhe entregue um recibo de imposto pago, que diga‑se de passagem, era de valor simbólico, podendo custar o preço de um ovo. Outros mercados da região
não tinham cercado, sendo tal e qual como os de há cem anos atrás.
Mais pormenorizadamente é que um dos termos usado para ‘imposto camarário de mercado pago pelas kitandeiras’ era o
termo Mataku, porém este termo era e é principalmente usado para designar rabo. Talvez aqui se deva encontrar a razão da expressão ‘a permissão de sentar o rabo no chão’, o que
indicará a autorização do espaço para vender, uma vez que, as comerciantes o faziam e ainda o fazem sentadas, colocando à sua frente os produtos a vender. Curiosamente, Manuel Alfredo Morais
Martins (1973:99)9 diz que “Nzandu (…) também significa «lugar neutro», «lugar de igualdade», «lugar de divertimento»”. Pode ser tudo isso, uma vez que acrescenta: “Os
mercados do Congo são os espectáculos mais coloridos, mais álacres e movimentados a que temos assistido em África.” 10
Referindo‑nos às mercadorias adquiridas pelos Zombo, as crianças bem cedo começavam a aprender o que deviam ou não
deixar transparecer para fora de casa. Ouviam e viam o pai entregar à mãe os panos de pintado, os cobertores, os lenços, os perfumes “mami wata”, as colchas, os panos de veludo, etc. Tudo muito
bem arrumado, por ordem, dentro de baús religiosamente guardados. Aqui começava a riqueza dos Zombo. Os mais afamados chegavam a ter mais de uma dezena de baús. Desde há séculos, que
sofriam em casa, “com a desvalorização dos seus produtos”, as frequentes mudanças de moeda dos portugueses, espanhóis e franceses. Sabiam, por aprenderem com os brancos, que o preferível era ter
– fazendas de lei e lele ua linhu (panos de linho). Quando ainda hoje nos deparamos com o termo, Ministério da Fazenda ou melhor Fazenda, encontramos na
“Enciclopédia Portugueza Illustrada” (1900‑1909:86) entre outros significados: “bens, haveres (…) mercadorias, géneros expostos ou destinados à venda e principalmente pannos
(…) 11”
Nos mercados, a administração portuguesa foi sempre muito pragmática, não interferia na vida comercial dos zandu. Apesar de ser uma
administração directa, isto é, sobrepondo‑se ao direito administrativo tradicional, permitia que as populações mantivessem a ordem dos seus valores sociais. Portanto, nos termos da lei, não
existiam autoridades indígenas, no entanto, sempre funcionaram numa grande parte do território de Angola, na prática tudo tinha que passar por elas, (continuaram a ser quase soberanas) a não ser
nas cidades e vilas. Às autoridades portuguesas interessava o menor constrangimento possível, que prejudicasse a vida das populações dedicadas à agricultura de sobrevivência, devido à
instabilidade gerada pela ocupação administrativa na zona. Os produtos da terra e o próprio gado pequeno (galinhas, porcos e cabras) tinham desaparecido, os produtos não circulavam por causa da
nomadização forçada das aldeias. As mulheres tinham e continuam a ter uma vida muito árdua; diariamente iam buscar a lenha bem como a água, cuidavam dos filhos e faziam a comida, eram
efectivamente escravas de trabalho, não admira portanto que ainda hoje vejam com algum agrado, outra mulher a trabalhar a seu lado, mas em terrenos separados e fazendo o seu trabalho com enxada,
ainda dirigidas pelo homem.
Era, neste contexto, que as autoridades portuguesas sedeadas entre os Zombo tinham de actuar com a agravante de estarem longe de entender o
caos político em que a Metrópole tinha mergulhado, não deixando logicamente de afectar a coerência legislativa. Todo o Zombo válido tinha obrigação moral e legal de, por meio do seu trabalho,
prover ao sustento da sua família e melhorar as suas condições sociais e económicas. Aqueles que não cumprissem voluntariamente a obrigação de trabalhar, deveriam ser persuadidos pela intervenção
educativa das autoridades. Esgotados os meios de persuasão, seriam pura e simplesmente compelidos. Quando os serviços estaduais ou municipais não estivessem interessados na sua admissão, poderiam
ser obrigados a servir nas empresas privadas que os requisitassem (Artigo nº 109 do Decreto‑Lei 951/1914). Os que resistissem seriam julgados como vadios e punidos com trabalho correccional
(Artigo nº. 96 do Decreto‑Lei 951/1914). Esta pena seria, em princípio, cumprida em obras públicas.
Mais tarde, o ministro João Bello alterou este sistema. No novo Estatuto Político, Civil e Criminal dos indígenas de Angola e
Moçambique (Decreto 12 533 de 1926) foi incluído um artigo que garantia a liberdade contratual e declarava que o trabalho obrigatório ou compelido seria permitido em serviços de interesse
público de urgência inadiável. Além disso, deveria ser sempre remunerado.
Comecemos por nos situarmos em princípios do século XX, até final da Segunda Guerra Mundial. Existem diversas razões, algumas de ordem
internacional, outras simplesmente consequência da divisão de limites geográficos do noroeste da moderna Angola, para o início de uma nova era, para o subgrupo Zombo – a do domínio de belgas e
portugueses. Quando agora nos referimos aos Zombo, queremos lembrar que, neste contexto, as suas elites políticas, económicas e religiosas (que, de uma forma geral quase sempre convergiram para
uma final orientação: o domínio económico e político da região), já estavam numa fase de grande declínio, pouco ou nada restava do seu anterior poder. É por esta ordem de razões que
politólogos, antropólogos e sociólogos dedicados às questões da África subsariana estão de acordo que o termo tribo Zombo tenha deixado de ter relevância. Pessoalmente, temos algumas
dúvidas, mas aceitamos, sem relutância, que os Zombo, a partir do início da ocupação efectiva dos portugueses e agora sim, começado o ‘processo de integração’ na emergente nação angolana,
deixassem de ser uma unidade política.
Perante este cenário, os Zombo tinham de encontrar uma solução para a sua sobrevivência diante do jugo dos novos senhores. Começaram pelo
contrabando de sobrevivência: levavam, por exemplo, galinhas, cabritos e o amendoim para o Congo Belga e traziam perfumes, panos, lenços, brincos e pulseiras, as célebres
malunga para as mulheres (e neste campo, o comércio belga era de longe superior ao português) que, uma vez, ‘vencidas pela vaidade’ venderiam por conta delas os produtos que melhor
‘corressem nos mercados’.
Reflictamos agora sobre o que entendemos por contrabando de sobrevivência. O próprio nome o indica: a pequena rentabilidade para
tão grande canseira. Reportando‑nos ao presente, os portugueses que vivem nas raias da vizinha Espanha (integrados que estão na União Europeia) lembram‑se da miséria que por eles passou, da
forma como viviam o contrabando, único sustento das famílias uma vez que com a agricultura ‘empobreciam alegremente’. As populações dos dois lados da fronteira, cruzavam‑na, comprando e vendendo
o que tinham à mão com a maior naturalidade, passando ao revés da guarda‑fiscal (muitas vezes, as mulheres novas e de meia idade conseguiam passar, mas sabiam que isso lhes custava, muitas vezes,
favores sexuais). Os homens tinham, a seu favor, as pernas e a força física para vencer os montes e os rios. Era desta forma, que ignoravam as orientações políticas dos respectivos governos. As
populações dos estratos mais baixos só aqui encontravam meio de subsistência para a família. Era conhecido pelo ‘contrabando da barriga da família’ que nas noites frias do Inverno se
consolavam ao lume da lareira.
Agora vejamos o que se passou com os Zombo. A conjuntura sócio‑económica dos dois novos países Angola e Congo e a sua política fiscal, o
próprio valor cambial das respectivas moedas influenciaram directamente esta nova vida dos Zombo. Começavam por tentar perceber o que eram aquelas pedras postas ao alto e com desenhos
(os marcos de fronteira política) e os ‘riscos’ que nelas estavam inscritos. De uma forma geral, os Zombo eram ‘analfabetos’: não sabiam ler, não sabiam escrever e não percebiam o que portugueses
e belgas entendiam desse código de comunicação, mas não eram estúpidos. A placa, de cerca de um metro de comprimento por sessenta centímetros, dizia simplesmente vista do lado de Angola,
Fronteira de Angola, vista do verso, Fronteira do Congo Belga.
Não demorou muito tempo que aqueles que os brancos tratavam por mais velhos tranquilizassem os seus familiares. Continuariam a
levá‑los para o lado de lá da fronteira, sem que os portugueses e belgas os importunassem, a única coisa que era necessário era que passassem no bambe ou lusukinu que,
D. António da Silva Maia (1961:315), ou seja, o posto de fronteira, e o chefe da guarda pusesse uma marca com tinta na mercadoria, (carimbo) a que passaram a chamar Taxe (pronunciando
com pronunciamos táxi). Estes postos começaram por distar uns dos outros, por vezes, mais de cem quilómetros, e chamava‑se a isto controle aduaneiro de fronteira. Enfim, os Zombo iriam
depois exibir os produtos com o taxe sempre que os brancos visitassem os mercados. Existe uma explicação: é que taxa aduaneira em francês diz‑se taxe e como os Zombo
estavam a tentar compreender o processo, a palavra que mais rapidamente contextualizaram e difundiram foi taxe, (carimbo de autorizado) voltaremos a este pormenor da filosofia
de mercado de fronteira, no capítulo seguinte.
O contrabando começava então em casa. O pai ensinava aos filhos mais capazes, que normalmente eram os que melhor caçavam (isto prende‑se com a
capacidade que o caçador tem de simular e dissimular‑se entre o arvoredo, para capturar a presa), a nova profissão. Nada mais satisfazia um mwana zombo (rapaz). O branco chamava‑lhe
filho de burro e ele passava a mercadoria. Começava assim a sua maioridade, a sua autonomia económica. Os parentes viriam a chamar‑lhe mwana ngangu (o filho inteligente). Este estatuto,
para aqueles que nasceram, por volta de 1920, viria a ser‑lhes muito útil, principalmente nas diferentes fases que perpassam nos anos de 1959, 1960 e 1961, quando se preparavam para o que tinham
como certo, ‘reaver os seus bens’. As mwana sompa, meninas casadoiras, tinham‑nos num alto conceito, caçadores e homens de negócios, muito embora este negócio fosse mais vaidade que
outra coisa. Afinal, os artigos conseguidos nas transacções eram domésticos, alimentos e roupas para serem vendidos na própria aldeia e nos Nzandu (mercados regionais).
Continua a ser aqui que o termo Buta, já nosso conhecido, volta a nascer. O seu investimento era pequeno, mas as mulheres de casa
saberiam fazê‑lo crescer, aliás elas mesmas, participavam com alguma frequência nestas idas ao novo Kongo. Com o tempo, viriam a aperfeiçoar a técnica do contrabando, viriam a preparar‑se, lado a
lado com os Guardas Aduaneiros e com os comerciantes brancos, seria um processo em que todos evoluiriam. É claro que, salvo casos muito especiais, os guardas‑fiscais portugueses seriam de longe
os mais sacrificados e prejudicados por cumprirem zelosamente as ordens emanadas do chefe da alfândega de Maquela do Zombo, que superintendia uma zona que ia, do posto da Kimbata ao
posto de Sakandika, constituída em 1974, pelos postos de Kimbata, Banza Sosso, Beu e Sakandika, sendo que do posto da Kimbata ao posto de Sakandika
iam mais de 200 quilómetros em linha recta.
Este tipo de vida, como o descrevemos é muito idêntico entre todos os espaços geográficos de fronteira entre estados, mas entre os Zombo, é um
estatuto. Adoravam ludibriar o fiscal. Privilegiavam a coragem e a ousadia de, com a sua carga de 20 a 30 quilos às costas, conseguirem entrar por nzil’a e do guarda‑fiscal jamais
suspeitar da sua existência. Estavam habituados a palmilhar centenas de quilómetros, se era duro para eles, era impossível aos guardas‑fiscais praticar este tipo de correrias. Afinal esta
correria também a faziam para fugir ao trabalho compelido.
Com a colaboração de Associação dos Bazombos "Akwa Zombo, AKZ"