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02 Sep

Uma releitura científica da versâo do BUNDU DYA KONGO

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #História do Reino do Kongo

 

 

Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama


 

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Para começar, digamos que a religião e a ciência procuram a verdade fazendo recurso a vias e metas diferentes. A primeira utiliza a fé, enquanto a segunda faz recurso a verificabilidade. A versão que aacabamos de referenciar é aquela sustentada pelo chefe espiritual de “Bûndu dya Kôngo”, que a seguir vamos tentar compreender.

Na investigação oral a maioria dos nossos informantes experientes em idade e sabedoria antiga apresentou uma lista de oito ou nove reis que antecederam a chegada de Diogo Cão, entre os quais, nesta ordem, 

 

1) Ntinu Nimi’a Lukeni

2) Nzîng’a Malûnda

3) Mbâmba Kyângala (Kalûnga)

4) Nimi, Ñtênd’a Ngîdi

5) Nânga Ñtûmbu

6) Ne Ñkâng’a Nimi

7) Ne Nkûwu’a Mutinu

8) Ntôtel’a Kõngo (não é o nome, mas título)

9) Ne Nzîng’a Nkûwu. 

 

Todos estes nomes são também citados na versão religiosa da lista citada, com pequenas variações na composição dos nomes e forma semântica dos mesmos. No entanto, verifica-se um forte “dialectismo” na versão religiosa  kimanyânga, e vizinhanças, quanto aos nomes dos monarcas, que não é repetido na tradição oral. Será este indício de que a maioria dos monarcas de MbânzaKôngo terá originado dessa região? Note-se por exemplo que Kodi Puanga e Tuti dya Tiya, que o autor da lista atribui à região de
Kôngo-dya-Mulaza, não se enquadrariam aí dialetalmente. Para demonstrá-lo, comecemos por analisar estes dois nomes, à título de exemplo: 

 

1) TUTI DYA TIYA: o primeiro termo significa, a princípio, uma certa “faca” (bi-tuti). O termo é bastante empregado para também dizer “multidão”, nuvens e especialmente o cumulu-nimbo,tanto na sua movimentação como na sua grandeza. Estes sentidos referem-se à região de Manyânga. TuTI pode também significar círculo, mas sobretudo uma marcha religiosa que se fazia quando havia lepra. Vem do verbo  tutika, que significa pôr, colocar no topo ou na ponta tal como se coloca uma casa acima duma colina; mover, tirar algo servindo-se de uma “bengala”. A forma tutikila quer dizer juntar uma multidão, tornar muito numeroso, pôr em conjunto uma multidão. Além disso, “Ma-Tutila” é um instrumento
(batuque) que, até em épocas relativamente recentes, apenas um Makandala poderia tocar para anunciar a morte de alguém que exercia funções importantes na sociedade (Mani mvuku: administrador de município). Quanto a TIYA, que pode significar “fogo, calor, clareza”, é um termo ainda utilizado pelas populações de  Mayômbe,  bwênde,  Mazînga (no  Dondo) e na bacia do rio luladi para dizer “Kola”, ou seja, a “origem das origens” do povo. Bumputu Enerstina por exemplo, refere-se ao “Tuti’a Tiya” como
“Ka-Tûti kya Kola”, que se traduz “origem dos batêke”. Raphaël Batsîkama apresenta uma versão algo esclarecedora: “Kituti kya Tiya” é o valor que várias populações tinham em relação a seus respectivos Mbânza. Tal é o caso de Mbânza lele, Mbânza Mantêke, etc. O facto de, na sua maioria, essas populações serem Wûmbu e Têke é confirmado pelo topónimo Mbânza-Manteke, a capital de Manteke”.
Hoje, a expressão “Tuti dya Tiya” é raramente utilizada por alguns “nzônzi” oriundos dessa região em ocasiões específicos, como óbitos, casamentos tradicionais (vulgo alambamento), entre outras, para evocar a origem comum dos nossos ancestrais.



2) KODI PUANGA. O primeiro termo deriva do transitivo koda: enrolar (um pano), pôr em enrolamento (fio, corda), pôr na mesma linha, em ordem. Ou ainda “bater com a palma da mão”, derrubar ao chão”. quanto a puanga, ou melhor pwânga, o termo significa literalmente (particularmente nas localidades de
Manyânga, Tsêla e arredores dos Vili) “o que excede em qualidade como em grandeza”. Kôdi Pwâng(il)a seria então um termo dialectal e restrito pela sua semântica. O seu significado intrínseco relacionase principalmente com “as realizações” de  Nimi’a  lukeni, mas também especificamente e em escala inferior as de um Kimvûka, o administrador de algum município. Há evidências de que a qualidade do poder deste último estaria em conexão e dependência com um “poder directo de Mbânza-Kôngo”, transitando através do Kinkôsi (província). Na literatura etnográfica e histórica podemos citar a seguinte referência de  Van Wing: “Estudes  bakôngo”. “Kodi” era um lenço que o Mani mvuku utilizava e era diferente dede Mani lwângu (ou Mani Nkôsi’a Lwângu).  Como dizíamos, alguns termos aqui referidos são essencialmente dialectais. A semântica dos termos parece comprovar que essa história terá sido produzida apenas em kinyânga, sem comprometer a sua lógica histórica. Contudo, a nossa preocupação é compreender a natureza dessa história, as correspondências lógicas e compará-las entre si para depois, posteriormente, encontrarmos uma síntese.

A lista menciona o ano 320 da Era do Peixe. Embora desconheçamos a fonte (a partir da qual poderíamos verificar ainda mais), essa afirmação implica a existência dum calendário kôngo
formulado à luz do/ou em comparação com o calendário ocidental.

De modo geral, a Era do peixe começou há mais de 2000 anos atrás, enquanto para bûndu dya Kôngo não somente a Era do Peixe é Era Cristã, mas e sobretudo com a época dos “Rios nascentes”: um século antes de Cristo.

É evidente que se trata de uma versão religiosa, possivelmente permaneceu durante muito tempo no “repertório oral” (até a publicação pela bûndu dya Kôngo). Interessa-nos, portanto, acessibilidade das fontes primárias (versão em kikôngo), fontes arqueológicas e outros suportes que possam ser úteis”: (i) com a versão original em kikôngo, é facil saber se a versão é uma simples composição sapiente duma pessoa ou grupo de pessoas ou, caso contrário, tenha um “fundamento histórico” com expressividade mitológica assente na “cultura material” (que possa indiciar fontes arqueológicas ou antropológicas); (ii) caso conhecessemos as localizações da existência dessa fonte primária, seria interessante mapear a
sua distribuição geográfica para permitir outros pesquisadores a ir além das suas análises. Tentamos junto de alguns fieis e partidários desse movimento politico-religioso colher informações sobre isso.

Infelizmente – para nós – atribuíam tudo a Deus (ter revelado a Ne Mwânda Nsemi); (iii) as únicas fontes arqueológicas foram as escritas antigas das rochas de luvu, Matadi. Outros referem-se a
escrita (recentemente inventada). Nas explanações, Ñzîng’a Nkuwu Dom João I é tido como referência principal, para remontar até o seu primeiro ancestral, em 691 da Era do Peixe. Passemos a análise
destas três hipóteses:


a) Deus terá inspirado Ne Mwânza Nsemi. De acordo com o historiador Raphaël batsîkama, Nsêmi era formado em química e um grande  sapiente. Nsêmi terá traduzido a ciência “química” para o kikôngo, facto que muito impressionou R. batsîkama. Actualmente Mwânda Nsêmi é considerado um líder espiritual, um profeta, pelos seus seguidores. No entanto, é enquanto sábio, homem devotado aos
mistérios do conhecimento e da sabedoria humana, que merece o respeito e o reconhecimento nestes assuntos, sabedoria que estaria escrita nas velhas rochas de Matadi. Trata-se daquilo que o critério
classificatório da academia passou a designar de pintura parietal que, na verdade, é encontrado em todo o espaço Kôngo.

b) A igreja bûndu dya Kôngo disponibiliza algumas brochuras temáticas e seus aderentes estudam com maior rigor os conteúdos que servem de suportes para a conservação da memória colectiva dessas populações.

 

Sobre essas  pinturas/escritas – também presentes em Voici les Jagas de R. batsikâma – ainda carecemos de estudos arqueológicos e estéticos sistematizados. Arqueológicos porque será necessário um mapeamento dos sítios arqueológicos dessas pinturas, e estéticos por causa da interpretação mesmas enquanto obras de arte.

 

Bundo dya Kongo

 

 

c) Ascendência de Nzîng’a  Nkuwu. O referido sábio Ne Mwânda Nsemi é oriundo de luwôzi, tal como Raphaël batsîkama. Conhece, por meio das tradições da sua linhagem, outras personalidades históricas que a memória colectiva guardou nas, recitais e narrativas genealógicas canções etc. Além disto o
Vûngu, considerado uma importante fonte dos antigos reis do Kôngo, influencia de forma consistente os vestígios tradicionais das populações setentrionais. A tradição conta que quatro ou cinco seriam o número dos ancestrais de Nzîng’a Nkuwu. A escola tradicionalista (aquele que se baseia na Tradição oral) menciona apenas três, mas cada um comportando relativamente três outros ancestros. Entre os primeiros e estes últimos há várias outras escolas, tal como é o caso dos bundu dya Kôngo, que baseandose nas crenças preservadas do povo buscam constituir um crivo científico para as informações preservadas. Esta última, por exemplo, apresenta-nos uma lista de dez reis cuja referência se  pode verificar em outras fontes.

Nesta versão de  bûndu dya Kôngo – que é fundamentalmente batsikamiana – as datas levantam curiosidades que passamos a assinalar.

Partindo do ano 320, ano em que os Kôngo fundaram o

Kôngo dya Mpângala, até o ano 691, ano que o actual MbânzaKôngo será definitivamente construído, pode se notar que o espaço temporal percorrido estaria resumido em relação ao tempo das
tecnologias pretensamente usadas naquelas épocas. A imigração das populações do Sul para Norte pode efectivamente realizar-se nesse espaço temporal, mas talvez somente para uma eventual
instalação, sem organização territorial e política estruturada ou fortemente estabelecida. Dois obstáculos parecem então não ter sido considerados pelo(s) autor(es) da versão religiosa: (i) a
adaptação ao meio teria partido das zonas agrícolas (as tecnologias a adoptar, o domínio dos tipos de solo, as zonas de perigo representado pelos animais ferozes ou de vizinhos desconhecidos, etc.). Na antiguidade, de acordo com De Pedrals ( que cita diferentes autores) e outros autores a adaptação ao meio parece ter acompanhado a domesticação da vegetação do animal e a criação de novas tecnologias que testemunham as suas culturas.

Partindo do pressuposto que essa realidade seja verificável nas zonas banhadas pelos rios e savanas veremos que o espaço geográfico e o espaço temporal entre 320 e 691 (371 anos) parece insuficiente para realizar o acontecido; (ii) a criação de uma civilização depende, normalmente, das vicissitudes básicas não só do meio, mas e sobretudo do próprio povo. Exemplo: apesar de mais de 30 anos de independência, as populações africanas separadas pela demarcação de novas fronteiras oriundas da Conferência de berlim ainda preservam fortes laços civilizacionais comuns.

Os desafios do modernismo e as tecnologias mais avançadas, para não falarmos de globalização, não rompem facilmente com a civilização das populações, ainda que as línguas dos ex-colonizadores sirvam de novo dispositivo para criação de novas civilizações. Se recuarmos no tempo e, especificamente, considerarmos as sequelas desse passado sem electricidade e sem novas tecnologias, notaremos vários círculos de civilização cuja evolução só poderia ser (demasiada) lenta.

 

Quanto as construções de pedras, por exemplo, pode-se hipoteticamente afirmar que de  Zimbabwe à  benguela (Angola) temos uma e a mesma civilização; quanto a cultura da pastorícia nota-se

uma unidade civilizacional que começa na África do Sul, passa por Botwana para chegar até Kwanza-Norte (Angola); quanto a cerâmica pode-se admitir a hipótese de uma unidade civilizacional
entre Zâmbia e toda a parte do leste e Sul de Angola (Moxico Kwandu-Kubângu), continuando até à região banhada pela foz do rio Mwânza (Zaire).

 

Aliás, análises no campo de antropologia linguística a volta das populações zimbabweyanas que estamos a estudar indicam também uma prévia de forte e incofundível unidade política.

 
Por  isso três séculos não só parecem insuficientes, como também não poderão constituir uma continuidade das línguas proto-zimbabweyanas quantitativamente estudadas pelos bleekianos.
corrente oriental da primeira Idade de Ferro precisou de mais ou menos quatro séculos para completar-se, para expandir-se com eficiência e aceitáveis regularidades.

Face a todas estas observações não só o tempo estipulado seria mais mecânico do que factual, mas também observar que a questão da instalação das populações nas zonas ocupadas em relação ao
tempo assim estabelecido não garante a funcionalidade de uma unidade organizacional nem civilizacional daquilo que foi o reino do Kôngo encontrado por Diogo Cão.

Do ponto de vista bibliográfico, a versão aqui referenciada carece de algumas considerações que encontramos nos livros de lethur, Dapper,  Ravenstein, Vansina, Pechuel-Loesche, Degrandpé,  Proyart e  battel, para citar apenas estes.  Lethur apresenta dados que a versão religiosa bundu dya Kôngo parece ter explorado com mais amplidão  particularmente nos trabalhos de Raphaël batsîkama como forma de legitimar a criação de Kôngo-dya-Mpânzu, parece ter sido enriquecido por outros autores, como na observação de que Loango Môngo não só indica a capital (Montanha real de Lwângu), como também especifica o porquê de ser chamado buali, isto é cidade, ou bwâla. Não podemos naturalmente negligenciar as informações de Battel, mesmo que se coloque a questão da sua infidelidade uma vez que são elas fontes primárias em relação a estes estudos. Provaria-o ainda as constatações antigas de Olfert Dapper entr outros, assim como recentes estudos de outros investigadores.

 

A expressão Volkskunde – povo Kunde  – justifica na literatura antropológica a noção de nkisi Nkônde tal como a abordamos no nosso estudo anterior sobre As origens do reino do Kôngo. Com certa presença na versão religiosa em análise, a importância que se dá a esta noção de “Volkskunde” não colabora em termos reais como objectivo principal da versão religiosa, e mesmo da versão batsikamiana, que preocupavam-se em demonstrar as três províncias do antigo  reino do Kôngo sem importar-se com as divergências dos autores sobre o assunto. Jan Vansina também escreveu sobre as origens do reino
do Kôngo. Ele associa várias versões dos Teke, dos Kôngo e de outras populações que teriam, de acordo com ele, se originado de um ancestral comum que ele designou como o Nguunu. A sua compilação parece interessante, mas ao procurar convergências entre as versões que ele menciona acaba por convergir o adverso. As categorias que explora substanciam no entanto um trabalho de grande consideração, principalmente quando se corrige a noção de Ngûnu, que ele considera como ancestral comum a partir das zonas setentrionais.

Assim, por exemplo, entre os Kota “Ngun(du)” é a “aldeia de onde sai a autoridade reinante” e localiza-se na actual Mbãnz’a Kôngo, isto é ao Sul. Os Têke, de igual modo, atribuem à actual São Salvador a condição de “lûmbu’a Ngundu”, isto é, palácio da Mãe das origens. Entre os Têke/Hûmbu, o mesmo termo significa mãe da origem primordial. Nas nossas recolhas no Sul de Angola encontramos o seguinte: (i) Kawûndu, entre os Khoisan e zimbabweyanos, relaciona-se com “a mãe/aldeia de onde originam-se os aldeãos”; (ii) Ngûndu, entre as populações da Huila (Kalu Ñkêmbe, Ovikûngu), de Moxico (lumbâla, lwêna) e de Malanje (Ndôngo, Kasânda, etc.) está ligado à  proveniência das diversas famílias;
(iii) Ngûndu, em kikôngo de Mbânza-Kôngo e arredores (Kizômbo, inclusive), significa “fonte de água”, “fonte de comida”, “poço de água” e “nascente de um rio”. Por todas estas razões parece-nos muito útil qualquer renovação de interesse pelo trabalho desenvolvido por Jan Vansina.

Jean  Cuvelier teceu algumas considerações sobre o livro Voyages (viagens) de  Degrandpé na revista  Zaire (já citado). Mesmo assumindo que a versão religiosa – que ele talvez desconhecia – fundamenta-se em aspectos tratados nesse livro, parecenos a sua uma explicação endógena de inúmeros aspectos não explicados. É o caso, por exemplo, da relação entre a autoridade religiosa Makunku, aqui denominada Ma-tutila, e a autoridade de Ma-Lwângu.

Parece-nos que a versão religiosa se refere, de forma aberta, aos subsídios presentes em livros já conhecidos de autores que acabamos de mencionar. Isto parece contribuir para desfazer o mistério que ainda permanece a volta dessa versão, quer em termos de datação, quer em termos de referência nominal a alguns reis que terão reinado nessa época.

De forma resumida podemos concluir que a versão religiosa sobre a Origem do  reino do Kôngo pertence à escola de Rafael Batsikama, que agrega novos dados interessantes que no entanto ainda carecem de averiguação pelas novas pesquisas de campo.

 

 

 

Extrato do livro: A origem meridional do Reino do Kongo

 

 


 

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