Uíge a cidade da coabitação de vários usos e costumes.
Uma das ruas da Cidade do Uíge
Isto porque muitos angolanos que se tinham refugiado no então Congo Belga, que mais tarde chamar-se-ia da República do Zaíre, começaram a regressar, religiosamente, à terra dos seus antepassados.
Muitos destes compatriotas tiveram os seus filhos naquele país vizinho, adquiriram as línguas, os usos e costumes dos zairenses (na altura). A adaptação na terra dos seus pais era um problema
sério, pois a socialização não se concretiza num pouco espaço de tempo. É um processo gradual, eficaz, e indispensável para qualquer ser humano.
Com pouca ou muitas dificuldades, Uíge era uma cidade onde todos coabitavam sem qualquer problema, depois dos primeiros contactos menos pacíficos com os regressados que vinham da então República
do Zaíre, onde também passaram por muitas humilhações, pois viviam num país que não era dos seus antepassados, embora séculos antes tenha sido apenas um só reino: o tão poderoso Reino do Kongo…
Todavia, estes contactos preliminares, que foram difíceis, não foram registados apenas na província cafeícola, pois Cabinda, Mbanza Congo e Luanda (principalmente estas) tiveram a mesma
experiência.
Para ultrapassar este “choque”, recorde-se, o então partido único, que na altura era o único órgão que governava o país, optou por uma política que visava a aproximação dos povos de línguas e
culturas diferentes, promovendo uma coabitação equilibrada e pacífica entre todos os que apareciam sobretudo na cidade de Luanda.
Muitas iniciativas foram incrementadas para que o povo angolano percebesse que o irmão que vinha de fora também era membro da mesma família angolana. Com o tempo, tudo ficou claro e calmo, e a
coabitação era uma realidade, visando, assim, a unidade nacional… Depois destes esforços, anos houve em que tudo parecia regressar ao ponto zero. Concluiu-se que a guerra surge não só para
provocar mortes, mas também divisões e outras mazelas. E os uigenses bem sabem o que aconteceu e como viveram todos estes “momentos de turbulência”. São, ou foram, factos históricos, e a própria
história tinha que tomar outro rumo.
Em 1993, regressava eu à minha cidade natal, anos depois de um “êxodo” na terra dos “tios” que nos colonizaram: Portugal, um país onde, muito mais tarde, me sentia como se eu estivesse em minha
casa. Neste mesmo ano (1993), encontrei uma outra face da cidade do Uíge, que vivia uma situação muito diferente de outras províncias. Era o tempo de guerra, em que a cultura do medo se tinha
instalado no povo desta belíssima terra. Depois de outras vicissitudes que não valem a pena contar, veio a paz. E com esta paz, o povo procurou “recompor-se” também com os seus próprios esforços,
e com a sua boa dose de esperanças, que ele nunca perdeu, mesmo em tempos de turbulência.
E hoje, como está o “postal” da cidade do bago vermelho? De 2008 a 2009, estive de novo fora do país e foi exactamente neste período que Uíge tinha mudado substancialmente de “rosto”. E ao longo
deste ano de 2010, mais transformações radicais surgiram, e as mesmas fazem lembrar a muitos os velhos tempos em que a minha cidade natal era chamada de “terra dos zairenses”, pois os povos
estrangeiros que vieram de longe, de muito longe mesmo, estão a marcar uma presença bem visível. E vieram com a sua saga de comércio, com os seus usos e costumes, e com a sua religião: o
islão.
Desta vez, encontrei o Uíge a registar convívio com outros povos. É fruto das mutações sociais e da paz que está a reinar no país. Posso dizer, precisamente hoje, que a minha cidade natal é quase
“terra dos malianos e dos chineses”. Aparecem em todos cantos como cogumelos. Até o meu famoso bairro de Kandombe Velho (onde vivi parte da minha infância), uma área cujos habitantes manifestaram
sempre a preocupação de preservar os valores tradicionais, está a ser invadido. Lá vi chineses a comer funje com kizaka e mfumbua (pratos típicos da região), e a beber o delicioso malavu (bebida
tradicional local), circulando à vontade como se estivessem no seu país…
E os malianos, senegaleses e mauritanianos? Também lá estão. Bem-postos, com muitos minimercados, vendendo tudo menos bebida alcoólica, namorando com conterrâneas minhas, e espalhando o islão,
uma religião considerada por nós como uma crença muito estranha. Mas, lá vão sem qualquer problema de consciência. “Aqui não se vende bebida alcoólica. Somos muçulmanos!”, dizia-me um maliano, no
seu cantinho, quando lá fui para umas pequenas compras. Antes, o lugar pertencia a uma conhecida família angolana, que decidiu vendê-lo (ou arrendar?) a este cidadão maliano.
Agora que os uigenses estão a preparar as festas da cidade, que começam amanhã, quinta-feira, tenho a certeza de que malianos e chineses marcarão em grande a sua presença, com pessoas amigas que
são naturais do Uíge. Será isto também resultado da globalização?