Por Joaquim Coelho.
A chegada a Quibocolo foi uma surpresa aterradora. Logo na entrada da estrada que vem
de Maquela do Zombo, há cabeças cortadas à catanada espalhadas pelo chão. São dos africanos que ficaram para ajudar os brancos que tiveram de fugir para a Damba.
– Mas que selvajaria – diz o Alfredo!
Logo o Quaresma atalhou:
– Os turras do Holden Roberto são mesmo sanguinários para com as outras etnias de
pretos. Até parece
que nem são angolanos.
– Olha Quaresma, dizem que são bacongos do Congo Belga, e até andam com alguns
missionários
dos evangélicos.
As duas secções de pára-quedistas organizam-se em grupos de cinco para bater as casas
e palhotas destruídas. Alguns sacos de terra são colocados em cima do terraço de uma das casas ainda seguras, a que se juntam uns blocos de adobe para servir de parapeito e abrigo
contra os atacantes.
Ficar em abrigos no chão é o suicídio, atendendo à grande quantidade de terroristas que
costumam atacar. Chegada a noite instalam-se os primeiros pára-quedistas. As granadas e as provisões são dispostas
ao lado dos abrigos, enquanto o sargento Assis dá as últimas instruções para a defesa
daquele posto:
“Muita atenção ao gasto de munições; não quero que nos aconteça o mesmo que aconteceu à
malta que
esteve no Bungo, se não fossem reabastecidos pela Dornier, ao fim de três ataques já
estavam a ficar
sem munições.”
Durante a noite, ouve-se um murmúrio longínquo cujo alarido indicia movimentos de
terroristas nas imediações. A alvorada traz alguma inquietação, mas não se esperam surpresas; as experiências dos dias anteriores dão alguma confiança ao grupo. Esta calma aparente
manteve-se durante todo o dia, de vez em quando quebrada pelo chilreio das aves no meio da mata. E o Alfredo olha fixamente para a floresta, e pergunta ao Serôdio:
– Quando foste ca*ar ao pé daqueles tufos verdes, não viste se havia lá água?
– Debaixo daquelas mangueiras nasce um pequeno fio de água.
O Alfredo sorri, puxa do cantil e bebe umas boas goladas da última reserva. Limpa a
boca, calmamente
e dispara:
– Eh malta, temos água ali ao lado daquela plantação de feijões! – Virado para o
sargento, diz:
– Meu sargento, é melhor enchermos os cantis enquanto isto está calmo.
– Pessoal, em grupos de três, vão reabastecer-se de água.
Um a um, descem do posto de vigia, passam pelo meio dos escombros e das cabeças
espalhadas no caminho, pedindo aos céus que chova para abafar o cheiro que invade o ambiente. Cem metros abaixo, encontram a água a correr por entre os feijoeiros.
Partilham a frescura da água e a sombra das mangueiras que os protegem dos raios
solares, envoltos no silêncio da mata, que nem pensam na guerra. O Santos, que parece estar noutras latitudes, interrompe a quietude do Serôdio e diz:
– Como estará o meu puto, agora com seis meses? Já ando nesta merda há mais de três
meses, missões umas atrás das outras, e a mulher nem uma fotografia me mandou!
O sargento, com a sua voz autoritária, manda:
– Quem quiser ir à água, é para despachar; aqui em cima do pátio estamos mais
seguros.
Ao segundo dia plantados neste sítio longe de toda a civilização, e pouco depois da
recolha de alguma água nas imediações da estrada, um barulho de vozes vindas da mata desperta a atenção da tropa.
A meio da manhã, uma gritaria louca põe os nervos em riste e as armas apontadas em todas
as direcções.
Um numeroso grupo de pretos entra pela povoação dentro, uns a disparar canhangulos
contra as posições dos pára-quedistas, outros com as catanas ao alto. Numa correria tresloucada, descarregam toda a sua raiva contra o que resta das casas, indiferentes às balas que
atingem aquela horda de bandidos suicidas.
É uma avalanche de inconscientes facínoras que, sendo muitos, uma grande quantidade
consegue passar para o outro lado da povoação; parte deles dizimados ou esfacelados pelos rebentamentos de algumas granadas lançadas com precisão para cima dos maiores
aglomerados de carne para canhão, e as
balas, de pontas cortadas, fazem um furo descomunal nos corpos que estrebucham por entre as ruínas das casas.
Ainda mal refeitos do espectacular morticínio, os que restam daquela horda de bestas embriagadas pelo ódio,
e que conseguiram passar a barreiras de fogo, já organizam um bando com algumas centenas e voltam a atacar nas mesmas condições, deixando mais umas dezenas de corpos espalhados no meio das
ruínas do campo desta batalha desmesurada e incrivelmente estúpida. Vista de cima do terraço, a estrada mais parece um campo de extermínio, com manchas de sangue e cadáveres com os
braços e as pernas em posições dantescas, à mistura com as cabeças dos bailundos lambiscadas pelos mabecos e pelas hienas – senhores da selva. O panorama era tão desagradável que o
pessoal procurava desviar os olhos para a mata, só para se livrar de sonhar com os fantasmas.
– Onde havíamos de vir parar... Fazer segurança a cabeças de preto, nunca esperei! Agora mais estes
que vão ficar a cheirar mal – diz o Alfredo.
O Serôdio, virado para o Santos, pergunta:
– Então casaste antes da tropa?
– Oh pá, quando casei já andava nos pára-quedistas a fazer o curso de combate. Antes dos pára-quedistas já tinha seis meses de tropa no Regimento de Infantaria de Évora. Comia-se muito mal
no arremacho, e o meu primo Faísca, que era pára-quedista de 1959, disse-me que aquilo era muito bom, uma tropa com nível e boa alimentação. Arranjou-me uma inscrição, fiz as provas com
bons resultados e agora estou aqui.
– Mas porque casaste antes de saíres da tropa?
O Santos responde com um sinal de saudade:
– Ela trabalhava comigo num restaurante de Loulé. O namoro até corria bem, mas ela engravidou e a família pressionou que era melhor casar. Também achei bem e casei. Só que os ataques às
roças do café aqui no Norte de Angola começaram umas semanas depois, e cá vim parar.
Já a tarde se faz sentir com o rigor do sol a aquecer os camuflados que queimam a pele, quando algumas latas de conserva servem para alimentar os corpos que ali estão expostos a vários
perigos.
Com tantos cadáveres espalhados no chão, não há apetites para saborear o almoço que vem tarde, mas o esforço exige alguma reposição de energias. Em retrospectiva das horas passadas
neste pesadelo, mais parece que se visiona um filme daqueles onde os atacantes cercam os sitiados dentro das muralhas dos castelos, faltando apenas as escadas de assalto para serem
iguais.
O resto do dia foi uma acalmia estranha, com alguns cães macaco a rondar os cadáveres. De noite, a presença de outros animais desejosos de comer a sua refeição – porque a fome toca a todos
–ajudou na remoção daqueles corpos que já cheiravam mal e incomodavam as narinas dos pára-quedistas.
O contacto rádio com uma Dornier que passou em voo baixo deu para avisar dos perigos das carnes em decomposição, razão por que a continuação do avanço até à Damba era urgente. E foi
isso que o comandante do grupo deixou perceber:
– Avisar maior que só temos “morfos” para hoje.
E continuou agarrado ao rádio:
– Se não mandam tropa do exército para ajudar a enterrar os mortos, queimamos esta merda toda e seguimos para a Damba, esperando lá ordens das operações.