Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (55)
Por Dr José Carlos de Oliveira.
O Aparente Caos Zombo
e a sua Camuflada Organização
O que parece uma anarquia, um desastre completo, tem leis muito próprias. Só os actores principais desta secular forma de agir, podem
reconhecer, na aparente desordem, a organização do caos e como este funciona. Enquadra‑se, neste contexto, a privatização em curso de milhares de pequenas e médias empresas, na área da
distribuição e de alimentação, especialmente nas capitais de distrito.
É sabido que as acções de controle rodoviário da UPA, do MPLA ou da UNITA, até 2002 (fim da guerra), eram constituídas, muitas vezes, por
barreiras militares que, nunca ou quase nunca, (desde 1961) deixaram de dificultar a penosa e demorada passagem de caravanas de transportes comerciais privados (ou mesmo viaturas isoladas),
relativamente à rota Uíje‑Kinshassa‑Uíje.
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Durante os quinze anos de guerra colonial (1961 a 1975), percorremos semanalmente muitas centenas de quilómetros, pelas estradas da fronteira
norte de Angola. Nessa altura, os empregados zombo, duma forma muito inteligente, sempre nos informaram dos perigos. Alguns deles são agora abastados comerciantes com casas nos pólos de atracção
das cidades do Uíje, Kinshasa e Luanda e as perguntas a que os militares dos postos de controlo sujeitam os transportadores privados são invariavelmente as mesmas: “Para quem trabalhas, donde
vens e a que género de negócio te dedicas?” e das respostas, depende a gasosa6 a cobrar. Quase sempre, a livre passagem está condicionada ao "pagamento" com alguma mercadoria.
Se houver resistência da parte do transportador, poderá estar certamente iminente a prisão da viatura com a respectiva mercadoria. As mamãs que acompanham estas viaturas, com muita
regularidade, têm que se envolver com os militares. É mais ou menos desta forma que funcionam as leis do mercado rodoviário.
As ‘boas maneiras’ zombo têm, neste contexto, uma importância primacial. Permitem aliviar as tensões das negociações dos interesses imediatos
dos intervenientes. Este cerimonial de relações institucionais, sociais e comerciais, para outros muito mais embaraçosos, tem para os zombo, normalmente, um desfecho consensual. Pelo que fica
dito, poder‑se‑ão compreender as complexas relações de pequenos a grandes empresários (alguns deles notáveis locais) com os chefes das barreiras militares da UNITA e do MPLA, até 2002.
O que finalmente se pode questionar é: quando é que a paz tão desejada e há tão pouco tempo conseguida, irá permitir a emergência de uma nova
política governamental (que tenha em conta os interesses dos notáveis locais) e crie condições para a abolição das ‘fronteiras internas’? Quanto tempo ainda será necessário para se verificar a
entrada em vigor de medidas governamentais eficazes que levem à estabilização das comunicações e ao intercâmbio comercial normal, entre as populações do interior de Angola? Verdade seja dita que,
pouco a pouco (curiosamente, conforme as estradas principais vão sendo reconstruídas), este tipo de ‘organizações’ vai‑se internando pelo meio rural ou, então, migra para o caos dos antigos
muceques, como por exemplo, os bairros Rangel ou Palanca de Luanda, passando a exercer forte pressão nos mercados informais.
Quem assistiu, durante algum tempo, à incorporação de crianças na luta armada, sabe que se tornaram perigosamente violentas, nenhuma atitude
política é mais mortífera do que a de armar crianças. Os impulsos que as levam a enfurecer‑se são muito rápidos e isso já aconteceu, demasiadas vezes, em Angola.
A privatização da violência tem tido, por consequência, em certas localidades, "uma limpeza social e étnica", com lucro, para alguns
protagonistas económicos. O mercado de viaturas roubadas continua a movimentar somas enormes, é teatro de repetidos assassinatos. Os compradores são assassinados, logo após terem pago os veículos
e, portanto, quando estes ainda não estão inscritos em seu nome. Estes acontecimentos põem em evidência os grupos armados organizados, num sector do mercado informal e altamente lucrativo.
Apesar do nítido abrandamento das hostilidades, após o fim da guerra, o estado caótico das instituições parece ser um instrumento de promoção
social e de enriquecimento pessoal.
Num país onde as crianças já aprenderam todos os jogos da guerra dos adultos e vão para as lavras em fila indiana para fugirem às
minas, a desconfiança é enorme. O ano de 1992 foi o palco do reinício de uma fase brutal da guerra. Trouxe demasiadas mortes, tornando difícil o restabelecimento do clima de confiança mesmo
dentro das pequenas aldeias. Cabe neste momento aos governantes e cúpulas militares a enorme responsabilidade de manterem a paz, caso contrário, o descontrole do tecido social e económico será
inevitável.
Planos para o relançamento do desenvolvimento económico de Angola existem e têm custado fortunas abissais. Têm de ser acompanhados, com todo o
cuidado e empenho. Portugal terá aqui um papel relevante a desempenhar, especialmente no que concerne à educação, agricultura e saúde. Angola é um país rico/pobre, onde morrem, por dia, cem
crianças com menos de cinco anos de idade. Para resgatar as populações é preciso que o mundo rural de Angola recupere os seus habitantes, que os meios de comunicação liguem as suas populações,
que as diferentes etnias dialoguem. É necessário que se recomece, nas pequenas povoações e vilas, a construção das tradicionais casas de adobe, mesmo que cobertas a capim e se atenda ao
indispensável aprovisionamento de água potável. Muito trabalho ainda será feito a troco de comida, até que, pouco a pouco, o ´mato’ recomece a enviar os seus produtos para as grandes
cidades.
As mulheres zombo não podem, ou melhor, não deverão ser subestimadas em toda e qualquer negociação mercantil deste género pois por elas passou
sempre o controle do apaziguamento e também o da subversão das barreiras militares, políticas e mercantis dominantes.