Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (32)
Por Dr José Carlos de Oliveira.
‘Ração de Reserva’
Não ficaria esta secção completa se não abordássemos a questão da alimentação dos militares portugueses nesta zona de intervenção de combate.
A nossa experiência prende‑se com o conhecimento directo do fornecimento às companhias estacionadas, ao longo da fronteira dos zombo, nomeadamente em Maquela do Zombo, Nzadi, Béu, Kuilo Futa e
Sakandika e, para o lado do noroeste, com os fornecimentos dos mesmos viveres à Roça São José, Koma, Luvaca, Buela, Kuimba e Pangala.
No difícil período de 1961 e 1962, foi complicadíssimo o contacto com a fronteira do Congo, senão impossível. As fronteiras pelos postos de
Kimbata e de Banza Sosso estavam ‘encerradas’. Formalmente, ninguém as passava, durante esse período. Os transportes eram feitos, em colunas de camiões civis, apoiados por viaturas militares.
Após 1963, o percurso entre Luanda até Maquela do Zombo, via Negage, já não requeria cuidados específicos. Porém diga‑se, em abono da verdade que, aqueles camionistas continuavam a ser os
camionistas do impossível.
Durante este longo período de catorze anos, os comerciantes, os militares, os funcionários públicos e os zombo, todos, absolutamente todos,
viveram este ambiente de ambiguidade social só percebido, por aqueles que, em tempo de guerra, habitam qualquer fronteira política.
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Comecemos por analisar um documento de espectacular ineficácia, a célebre guia de transporte, que a administração do concelho local
passava (atestando a necessidade local dos produtos) aos comerciantes que deslocavam os seus camiões a Luanda, a fim de adquirirem os bens que posteriormente venderiam onde estivessem sedeados. À
saída da cidade, pela estrada de Catete, operava uma barreira policial fiscalizadora que exigia que lhe fosse mostrada a dita guia de transporte. O fiscal tentava então, com ar
verificador, certificar‑se que a mercadoria transportada estava conforme a guia. Algumas vezes, mais por incúria do que por outra coisa, era encontrada mercadoria não mencionada na guia. Nessa
altura, a viatura e respectivo condutor eram conduzidos ao comando policial, na baixa da cidade, e aí se procedia à minuciosa inspecção da mercadoria transportada. Não pretendemos de forma alguma
ridicularizar o trabalho das autoridades, mas garantimos a sua ineficácia. Todavia, um paradoxo factual tornava‑se evidente: a barreira fiscalizadora tinha que existir visto que a sua simples
presença dissuadia parte dos infractores.
Passemos então a verificar que mercadorias transaccionavam os comerciantes de Maquela do Zombo. Em primeiro lugar, produtos requeridos pelo
seu negócio de fronteira e que tinham, desde 1963, como destinos prioritários a exportação para Kinshasa. Entre esses produtos, destacavam‑se: o vinho embalado, em garrafões de cinco e dez
litros, das mais reputadas marcas portuguesas, como por exemplo das regiões do Ribatejo, do Oeste e do Dão; dezenas e dezenas de embalagens de cebolas, em sacos de 25 quilos; garrafões vazios (os
mais apreciados eram os incolores) para que acondicionassem, mais tarde, o célebre malafu ou malavu, isto é, o vinho de palmeira, essencial nas grandes festas das famílias
kongo; centenas de fardos de peixe seco, com o selo do grémio de pesca, especialmente um que era a merma ou judeu, muito apreciado porque, sendo da família do atum, era bastante
saboroso, segundo os kongo e de grande valor proteico e, finalmente, produtos para venda às companhias operacionais, estacionadas na zona de Maquela. Além disso, chegavam semanalmente, dezenas de
camiões, muitos vindos da zona do planalto de Malange outros de Benguela e Moçamedes transportando milhares de embalagens de trinta quilogramas de peixe seco, que valiam na altura, com o dólar a
custar aproximadamente 22$00, milhares de contos, centenas de toneladas de feijão, das qualidades branco e catarino, a cerca de 5$00/quilo e a batata a rondar o mesmo preço.
Os combustíveis, destinados aos dois batalhões estacionados ao longo da zona de intervenção dos zombo, que percorria uma faixa de
mais de duzentos e cinquenta quilómetros de fronteiras (quando apresentarmos os dados do batalhão 88, teremos oportunidade de fornecer mais detalhes), eram exclusivamente fornecidos por duas
firmas: JOJ e Socozol. Só este facto era uma guerra! Era ver quem oferecia mais presentes aos responsáveis pelo abastecimento das viaturas militares, normalmente um sargento da
especialidade de trem auto, alguns deles, com duas e três comissões de serviço.
Um dos produtos que exigia uma especialização era o fornecimento de peixe fresco às unidades. O seu ‘certificado de sanidade era passado,
pelas autoridades (in)competentes, no dia anterior, o que nos parece, no mínimo, estranho, visto que o peixe, comprava‑se em Luanda, fresquíssimo, na praça do Kinaxixi, desde as quatro
horas da madrugada desse dia (as peixeiras envolvidas neste negócio eram brancas). Preparavam‑se então as caixas isotérmicas que levavam aproximadamente cento e vinte a cento e cinquenta quilos
de peixe, cada uma. O chão da caixa levava uma camada de gelo moído de cerca de dez centímetros e o peixe era acondicionado de barriga para baixo por camada, imediatamente coberta por nova camada
de gelo e assim sucessivamente até levar a última camada de dez centímetros de gelo. Ao fim de três ou quatro horas, o peixe estava envolvido por uma única bolsa de gelo, o que nos faz colocar a
seguinte questão: como poderiam então as ditas autoridades garantir a sanidade do peixe? No entanto, esta mercadoria fazia uma viagem de três dias, embora durante o trajecto lhe fosse
acrescentado novo gelo (de uma caixa provida unicamente com gelo de substituição), uma vez que no fundo e lateralmente cada caixa tinha um orifício de purga para o gelo que entretanto se tinha
liquefeito. Todavia, a chegada a Maquela do Zombo estava, a partir de 1963, (porque foi a partir desta altura que se começou a viajar sem coluna militar de acompanhamento) sempre prevista para
coincidir com as colunas de reabastecimento que saíam das suas unidades às terças e quintas‑feiras, tudo isto sob o controlo de um sargento ‘Vagomestre’, muito experiente e manobrador da
sua situação de privilégio. Os restantes produtos eram os de compra imediata e local, pelas unidades, uma vez que a cerveja, o vinho, o bacalhau, entre outros produtos eram comprados, em Luanda,
pela Manutenção Militar e enviados, em colunas MVL, em camiões militares.
Durante onze ininterruptos anos, vivemos esta vida de fronteira. Às tais terças e quintas‑feiras, o dia era destinado ao comércio com os
militares que entretanto se espalhavam pela vila, nos bares, pensões e ainda pelos arredores. A determinado momento, começou a florescer o comércio de louça chinesa, em serviços de chá ou café, e
outras recordações, como jogos de copos em bambu, quadros de madrepérola vindos de Macau (sabíamos que a sua verdadeira origem era a China Nacionalista ou Japão). Estes presentes haveriam de vir
a estar em posição de destaque na sala da casa de seus pais mas especialmente de namoradas e futuras esposas após o seu regresso. Às segundas, quartas e, por vezes, às sextas‑feiras
deslocávamo‑nos com os nossos motoristas zombo até à fronteira do Banza Sosso e Kimbata.
Estamos convencidos que os comerciantes de Maquela do Zombo, neste último período de 1963 a 1975, tiveram oportunidade de repensar as suas
vidas e sabemos de fonte segura que colocaram o que (com o maior ou menor risco de vida) conseguiram amealhar, (aqueles que souberam, e foi a maioria) fora de Angola.
Este processo vivencial levaria inevitavelmente à especialidade de uma parceria muito perigosa entre os comerciantes europeus e os seus
‘parceiros’ zombo e que virá a constituir base do próximo capítulo.