Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (9)
Por Dr José Carlos de Oliveria.
Os brancos que nos primórdios do século XX avançaram sobre o norte de Angola e mais especificamente os que ocuparam a savana zombo e que
precederam os militares ou os seguiram, foram os comerciantes do mato que substituíram os funantes e formaram uma das componentes a que nos referimos nesta secção da
dissertação.
A relação directa que temos com o assunto prende‑se com um longo período da nossa vida: o da convivência com os zombo, no seu ‘chão’ de
origem. Foram vinte e cinco longos anos de aprendizagem ininterrupta com os zombo e que ocuparam parte da nossa juventude e da nossa vida adulta. A esta relação dedicaremos parte do espaço da
colonização 1945/1975. Pessoalmente, fizemos parte dessa faixa de portugueses que andaram de ‘mochila às costas’, o que acontecia e ainda acontece, pelas mais variadas razões, como por
exemplo:
A conquista, o espírito de aventura, o rigor climático, a questão da fome, as perseguições políticas e religiosas, a busca de
terras mais generosas ou menos densamente povoadas, a inquietação perante as crises económicas e os períodos de desemprego, o desejo de melhoria de condições de vida, a simples curiosidade, a
renovação de horizontes, entre outros. 31
Por nós, pensamos que se deve acrescentar, pela parte que cabe às razões da necessidade de emigrar – a pressão familiar, os conflitos dentro
dela gerados e a fuga à justiça, por prática de crimes da mais variada ordem, como factores preponderantes na equação do problema da deslocação das classes menos privilegiadas para países
distantes.
Não trataremos aqui a questão da Colonização Científica Portuguesa, que tanto quanto sabemos, foi tradicionalmente empírica. Só em
1906, se fundou a Escola Colonial, como instituição pedagógica e, em 1926, dela emergiu a Escola Superior Colonial, também da responsabilidade da Sociedade de Geografia de Lisboa e que viria mais
tarde a dar lugar ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina para finalizar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
Apesar deste extraordinário avanço, Angola e Moçambique continuaram a receber os europeus disponíveis, sendo que a esmagadora maioria eram
homens ‘arremessados’ ao território isoladamente, mal sabendo ler e escrever. Mesmo em 1963, no decorrer de uma célebre operação de povoamento apressada e desfasada, o célebre batalhão
Ferreira da Costa, deparámo‑nos com uma situação idêntica. A recepção aos ditos ‘colonos’ era feita em instalações adaptadas no bairro da Terra Nova, em Luanda. Estavam lá
albergados perto de trezentos colonos disponíveis, nenhum tinha a antiga quarta classe e todos eram agricultores. Nenhum era pedreiro, carpinteiro, serralheiro, pintor, enfermeiro, entre outras
especializações.
Os colonos do início da ocupação, ao serem levados, muitas vezes, enganados por outros, para a terra dos zombo beneficiaram da pacificação
militar ou do seu início. Se alguma sabedoria tinham, era só a da sua tradicional cultura popular da terra de origem e mesmo essa componente da cultura, era na maioria das vezes a menos louvável.
Tratava‑se da ‘cultura do desenrasca’, onde “na terra dos cegos quem tem um olho é rei”. Cabe aqui referir que a administração colonial implantada na zona, utilizava como bandeira, principal esta
componente comercial, uma vez que a sua futura maneira de estar como comerciante o fixaria à terra.
É verdade que o agente do governo na zona, corria o risco do comerciante se aproveitar da pressão militar exercida sobre o indígena, para o
roubar descaradamente. A princípio, o indígena, pouca ou nenhuma atenção lhe merecia, só entendia se era ou não difícil a aquisição dos produtos permutados, perceptível pela maior ou menor
colaboração dos nativos. Porém, a plasticidade social do português, assimilador fácil de valores sociais, corrigia os seus defeitos com a necessidade de se adaptar ao meio social o melhor
possível, e neste caso os zombo. Por isso, aqueles que se vingavam dos martírios a que a terra os submetia, (salvo os missionários por serem católicos), breve se fixavam à terra através da
ligação à mulher da terra. Na nossa opinião, esta ligação, em termos da aceitação ou não, pelos homens da terra, não foi fácil, porque estavam simplesmente habituados a mandar. As mulheres iriam
para onde o chefe da família extensa mandasse. Os novos elementos militares ou da administração civil tinham aparentemente a vida mais facilitada pelo seu emergente papel de senhores da terra.
Permitiam‑se em alguns casos, mais frequentes do que seria de desejar, sujeitar as autoridades tradicionais ao silêncio e a anuição dos zombo em geral não lhes interessava. Porém, nem tudo era
tão linear como aqui se possa deixar transparecer. Muitas vezes, a mulher nativa, muito nova, era introduzida na administração com as instruções precisas dos mfumu a vata. Tornava‑se
imperativo que engravidasse.
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De seguida, o administrativo seria confrontado pelos seus superiores face à situação em que se tinha deixado enredar, e aí, a mulher, com os
filhos que conseguisse do branco, viria a ter um papel relevante nos serviços a prestar à sua comunidade. O mesmo se passava com o comerciante do mato. Neste caso, o processo era muito mais
rápido. O seu permanente contacto com a Vata e as condições a que era obrigado a aceitar por parte do mfumu a vata a que se acrescentava a sua veia oportunista, caso quisesse
sobreviver, não lhe permitia outra escolha. Toda a família extensa vinha comer do ‘barraco’ (a casa comercial de pau a pique), todos os tios, sobrinhos, irmãos, todas as mães e pais
(leia‑se mamã e tata). Seria possível a este homem aguentar as teias do sistema? Acabava muitas vezes por perecer, deixando como único rasto os filhos mestiços. A verdade é que conhecemos
já idosos, homens de sucesso, vindos deste lote de ‘compradores de ilusões’.
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A experiência dos contactos que tivemos desde a nossa infância (1944) até 1975, dão‑nos respostas diversas. A primeira e mais corrente, era a
que se verificava nos centros urbanos, o homem branco não assumia as suas responsabilidades com a mulher negra, não respeitava os vínculos parentais em que se tinha enredado. Normalmente fugia,
denunciando a incapacidade de assumir a paternidade, mudando de terra. Outros, alardeavam a sua indiferença de ‘condição superior’ e ignoravam os filhos pura e simplesmente. A mulher negra,
frequentemente pressionada pela sua parentela, descia à cidade e, de filho às costas, vinha dizer àquele homem que o filho era dele, que Deus lho tinha dado. O branco, por sua vez, alegava então
que nunca a tinha visto e que ela o que queria era comer de graça com toda a sua família. Podemos acrescentar que perante este tipo de problema, o mundo não mudou de lá para cá.
A verdade é que hoje, em Portugal, existem casos (não raros) de portugueses, que regressados em 1975 e mesmo alguns anos depois, trouxeram as
suas mães pretas. Os filhos destas uniões estão hoje perfeitamente integrados no continente e já constituíram família por cá. Quanto os brancos, que posteriormente se casaram em Angola com
mulheres da terra, é assunto que ultrapassa o âmbito desta dissertação. Os caminhos que traçou a integração, não foram certamente os que os homens imaginaram, mas sim aqueles que a vida
permitiu que acontecessem.
Este assunto naturalmente não se esgota aqui. No capítulo seguinte, referir‑nos‑emos, com maior detalhe e actualidade, à forma
como a administração portuguesa viria a procurar incentivar o processo colonial através da integração, termo utilizado muito a propósito por Neto (1964:20) e a que viremos debruçar‑nos com
a atenção que o assunto nos merece.32
Porém, os zombo que como já vimos, têm um extraordinário apego à sua liberdade de movimentos, começando pela forma como naturalmente
pretendiam e pretendem gerir a sua escolha de trabalho, que coincide com um arrogante desprezo por tarefas que sempre consideraram servis. Curiosamente, viriam a ser reputados como excelentes
alfaiates, lavadeiros e cozinheiros. Preferiram ser eles a empregar‑se tanto nas casas dos administradores coloniais, como em casa dos fazendeiros ou comerciantes do mato. Admitimos aqui, mais
uma vez, que se apressavam a ficar com os trabalhos, não só menos cansativos mas também escolher entre aqueles que lhes permitissem ter acesso à intimidade da casa dos brancos. O trabalho da
agricultura e venda nos mercados foi sempre da responsabilidade das mulheres. Estas ocupações também lhes deixavam margem para se dedicarem à caça e às célebres fundações (aquilo a que
podemos comparar com as nossas sessões parlamentares) e, a partir de agora, ao pequeno comércio de sobrevivência – o contrabando. A sua integração também se ia fazendo pelo lado que
circunstancialmente mais lhes interessava.
Contudo, há que notar que, de uma forma geral, tanto a população negra como a branca se sujeitava facilmente (talvez até por raízes culturais)
à situação de profunda submissão, não discutindo nunca, independentemente da razão, o trabalho que lhes era atribuído.
Assim, o que deixamos dito é suficiente para se compreenderem os esforços dos mfumu a nsi, mfumu a vata, como líderes das
populações zombo, em geral localizados nas proximidades da fronteira zombo, muxikongo e yaka, para extraírem o máximo de proveito da presença das autoridades portuguesas e belgas. À
primeira vista, o que acabamos de dizer parece um paradoxo, porém os zombo gozavam da maior liberdade em relação às autoridades estabelecidas, uma vez que estas não conheciam as nzila que
levavam directamente a qualquer dos lados da fronteira, tendo em vista o novo intercâmbio comercial dos novos bens em circulação.
Nestas circunstâncias, não surpreende que o controlo (em bens e pessoas) das nzila constituísse a maior preocupação das autoridades
portuguesas e belgas. Por esta razão, se pode explicar a constante emergência de novas vata, grandes e pequenas, cujas zonas de influência viriam mais tarde a assumir notáveis tentáculos
sociopolíticos. Foram‑se estendendo, ao longo de toda a fronteira, o que viria a permitir o ressurgimento do velho pensamento da reunificação do antigo reino do Kongo. Desta estratégia, nasceu o
que se tornaria provavelmente o maior problema da administração portuguesa de Angola, nesta zona, o ressurgimento dos movimentos mágicos e proféticos kongo, raiz de onde viria a emergir o
tocoísmo, ao qual dedicaremos a devida atenção na parte final da colonização (1940/1975).