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04 Apr

Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (52)

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #Fragmentos históricos do Uíge.

 

 

 

Por Dr José Carlos de Oliveira.


 

 

 

 
 
Antes de nos debruçarmos propriamente sobre a independência de Angola e a guerra pelo poder político, no seio dos zombo, parece conveniente dedicarmos um último apontamento aos europeus ali residentes, sendo alguns filhos dessas mesmas terras. Sabemos que as palavras que proferimos ou escrevemos levam, ainda hoje e, por vezes, a algumas considerações que não são certamente as que estavam, na nossa intenção, quando as proferimos. É o caso da palavra ‘refugiados’, como por exemplo, quando dizemos que os residentes europeus das terras Zombo se refugiaram em Luanda. Não vale a pena divagar sobre o assunto, mas dizia‑se ‘baixinho’: “É mentira dela minha senhora, ela não quer que você fique. Sozinha comigo, na cozinha, disse‑me: se ela ficar, só fica para ganhar dinheiro para o caixão”. Uma grande maioria desses europeus refugiou‑se, em Portugal, acalentando a legítima esperança de voltar.
 
Todavia, o tempo foi passando e o vento que os levaria de regresso a Angola não soprou. Especialmente a nova ideologia política, o marxismo e o partido único, como ainda novos elementos da jovem estrutura social e política angolana, foram entraves fundamentais que inviabilizaram esse tão desejado regresso. A esmagadora maioria das pessoas ditas ‘retornadas’, com mais de 50 anos, já não tinham a elasticidade mental e vigor físico suficiente, para ver ruir todo o seu labor e recomeçar. A geração dos 30 aos 50 anos, que estava com ‘o sangue na guelra’, não tinha mais nada a perder e necessitava urgentemente de estabilizar as famílias e criar os filhos, aproveitou a circunstância do clima instaurado do célebre PREC – Processo Revolucionário em Curso – que se situou, no tempo, entre a ‘revolução dos cravos’ e a aprovação da Constituição Portuguesa. O PREC criou um profundo mal‑estar com o desmantelamento das oligarquias económicas então vigentes. Até mesmo os pequenos proprietários entraram em pânico e muitos também se refugiaram no Brasil, já outros, partiram para o Canadá, EUA, entre outros países. Este período revolucionário foi uma prioridade da política do Partido Comunista Português, com acções típicas, especialmente com a ocupação de casas, terras e fábricas.
 
O acolhimento que as respectivas famílias lhes proporcionaram à chegada e o apoio do recém‑criado organismo denominado IARN – Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais – foram factores essenciais para o necessário auxílio a centenas de milhares de portugueses, que regressaram das ‘províncias ultramarinas’. Tiveram então de apreender o que significava a queda do Estado Novo e a instauração da democracia, que estiveram na base do processo de descolonização. Foram estas, razões suficientes para que os ‘retornados’ comprassem posições agrícolas, comerciais e industriais de que, à pressa, os anteriores proprietários e empresários se estavam a desfazer.
 
Neste momento, passemos a falar dos zombo e da sua incontida euforia, da sua tão esperada alegria sob o lema de ‘Angola é nossa’, de finalmente entrarem na posse efectiva de bens que estiveram, na base, de tantos prometimentos da UPA e dos grandes chefes da ALLIAZO. Agora, podiam regressar à sua ‘Terra Prometida’. Nada os impediria de ser felizes. Infelizmente, a paz não duraria muito tempo. Desta vez, a luta pela posse do poder político e da terra seria incomensuravelmente mais sangrenta e destruiria decerto uma grande parte do sonho de duas gerações de zombos.
 
O nosso ângulo de visão e de opinião foi‑nos confirmado por muito poucas pessoas que acederam conversar connosco, na cidade do Uije, em 2005.
 
Desta forma, em primeiro lugar, optámos por expor ao que íamos com a maior clareza, o que se revelou bom, não só porque todos sabiam que estávamos alojados em casa do bispo D. Francisco, ou seja, na Diocese, mas também porque nos viram e ouviram falar frequentemente em kikongo. Este tipo de proximidade linguística, especialmente as expressões zombo e os gestos que acompanham o discurso foram sempre uma mais‑valia. A nossa idade (67 anos), os cabelos brancos, o respeito dedicado aos mais velhos e a condescendência com os mais novos completaram a ideia francamente favorável que deixámos ficar das nossas intenções. Não os queremos então desiludir. As informações, embora conseguidas em segmentos, puderam ser acrescentadas por diferentes pessoas. Assim que tínhamos ocasião, íamos adicionando dados ao nosso bloco de apontamentos. Ao fim do dia, passávamos tudo a limpo, recheando‑o já com algumas reflexões.
 
Apesar de sermos visita particular de D. Francisco da Mata Mourisca, entre as centenas senão milhares de zombo que residem na cidade e nas imediações foram poucos os que aceitaram falar abertamente quando tivemos oportunidade (poucas) de os visitarmos em suas casas. De uma das situações, registamos a seguinte ‘confidência’:
(…) Assim como os portugueses desapareceram da nossa vista, também o ELNA, que entrou, sem respeito, pelas nossas vidas, (Exército de Libertação Nacional da FNLA) deixou de governar, para dar lugar às gloriosas FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola do MPLA). A princípio, ficámos muito contentes, pela forma diferente que eles tinham de actuar. Grande parte eram zombos e tratavam‑nos muito bem. Foi sol de pouca dura o daquela bondade. Pouco a pouco, foram‑se revelando duros como os anteriores, vaidosos ou ainda piores. A seguir, as FAPLA foram‑se embora e vieram as complicações acrescentadas da UNITA. Já tínhamos pouca criação (cabritos e galinhas) mesmo assim, assaltavam os currais e as capoeiras, até acabaram com os porcos. O pior foi quando tomaram as nossas filhas, sem o nosso consentimento. As ameaças e agressões eram constantes e a independência estava a ter um cheiro de amargura.
 
Em todo o Zombo, especialmente nas terras do Beú, do Kuilo Futa e Sakandika, ‘era o paraíso’. A nossa forma de negociar e viver voltou ao princípio. No tempo da guerra colonial, para lá da ponte do Nzadi, os nossos povos só fugiram, não conheceram a verdadeira guerra. Ficámos sem nada, sim senhor! A FNLA, sem bases logísticas, sem qualquer tipo de comunicação foi aglomerar‑se na zona do Béu que ficou superlotada de membros desse grupo. Estavam desiludidos pela derrota política e militar face ao MPLA, muito ajudada pelos mercenários cubanos do general Ochoa. Ainda tentaram criar um Estado‑Maior, na zona, como último muro da resistência militar do ELNA, mas isso era uma loucura. O desespero não tardou, pareciam que estavam possuídos pelo ‘N’doki’, a possessão do mal.
 
O povo, novamente sem qualquer protecção, voltou a refugiar‑se nas matas. Felizmente, um comandante chamado Sebastião, que nasceu no Kimbuanzinga, povoação do Beú, defendeu, com grande risco, o seu desgraçado povo. Outro pesadelo real voltou a atingir o povo: na sua fuga, os militares, e pior, os mercenários foram sabotar o muito que já havia nas lojas, foi assim por todo o Zombo. As bombas e obuses fizeram o resto. Ficamos sem nada. O povo espreitou as viaturas carregadas de produtos da terra e ainda materiais de construção, portas, janelas, pias, por cima de camas, produtos roubados, aqui e acolá, sempre a disparar as armas, lá iam em direcção ao Kongo. As casas, as lojas, os hospitais, as casas dos antigos colonos, as nossas lojas, destruíram tudo. Inclusive, deixaram armas espalhadas, a esmo, pelo chão, qualquer pessoa do povo podia apanhá‑las e levá‑las para casa, isso aconteceu frequentemente.
 
Finalmente a ponte do Nzadi, construída pelos portugueses foi destruída, o povo, mais uma vez, foi quem voltou a sofrer.

 
 
Alguém pode imaginar o que pode passar na cabeça e no corpo de uma pessoa, quando se acorda de noite, e de repente somos encostados à parede de nossa casa, eu num lado a mulher no outro juntamente com os filhos? Eu pessoalmente tive sorte, a minha profissão fazia‑lhes falta, por isso estou ainda aqui. Assisti duramente ao passar dos anos. Vi gente boa, gente muito má, massacres, assassinos, muitos, mas muitos raptos de meninas e meninos que foram acompanhando os homens da guerra. Aqueles que queriam a independência, e isso tanto faz FNLA, MPLA ou UNITA, todos eles são responsáveis. Não estavam a resolver a nossa aflição da fome. Deixaram‑nos sem ajuda. Essa guerra, fez com que a terra Zombo, que sempre foi auto‑suficiente, só dependente do açúcar, do sal e do sabão, obrigasse as gentes ao êxodo das aldeias natais. Partiram novamente para Kinshasa e, depois do fim dos anos 80, para Luanda. (…)”
 
Tivemos e continuamos a ter o maior cuidado, dentro do limite possível, com a forma como transcrevemos as informações obtidas, durante todo o processo de estudo dos zombo. Fazemos um controlo rigoroso, a fim de não comprometermos quem nos confidenciou as suas amarguras e os seus momentos de felicidade.

 

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