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28 Nov

Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (24)

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #Fragmentos históricos do Uíge.

 

 

Por Dr José Carlos de Oliveira.

 

 


Institucionalização do Trabalho Compelido e a sua Importância para a Sociedade Zombo (2)

 

 

Submetidos a prévio exame médico, seleccionavam‑se os válidos, convocavam‑se simultaneamente os recrutadores legalmente autorizados a operar na área. Estes eram instados a dirigir‑se alternadamente e em privado, à multidão em expectativa. Por seu lado, o administrador mandava o intérprete dar esclarecimentos sobre os serviços públicos que pretendiam da mão‑de‑obra. Havendo, como havia, um conhecimento razoável dos locais quanto aos salários, benefícios, condições de trabalho, carácter do empregador, entre outros aspectos, era sem grandes hesitações que cada "ocioso" fazia livremente a sua escolha. Resolviam‑se então, os problemas da elaboração dos contratos colectivos, pagamento de taxas, concessão de adiantamentos, fornecimento de alimentação e transporte. Os contratos eram minuciosos porque serviam de base à cobrança das receitas do Estado, ao controlo da actividade laboral, por meio de averbamentos e às punições aplicadas aos que faltassem aos seus deveres.
 
É inegável que, os grandes empregadores de mão‑de‑obra, facilmente fiscalizáveis e interessados em manter o seu prestígio, procuravam cumprir as normas respeitantes a salários, alojamentos, horários de trabalho, tabelas de alimentação. Embora estas práticas não se possam considerar como desumanas, há que reconhecer, com toda a frontalidade, que elas foram mal aceites, pela generalidade da população rural, até à sua extinção em 1961.
 
Alguns chefes tradicionais, mais autoritários, instados a reprimir a "ociosidade", aproveitavam as rusgas para proceder a oportunas depurações internas, entregando elementos marginais e anti‑sociais como os delinquentes, os acusados de terem poderes de feitiçaria maligna, os que tinham desafiado a autoridade dos anciãos e chefes de linhagem, os que haviam recusado a prestação de tarefas e oferendas consuetudinárias, enfim, os que, de qualquer modo, caíssem no desagrado pessoal ou provocassem a repulsa pública.
 
Outros, mais timoratos, viam‑se perante situações de extremo melindre, tentando conciliar as exigências da administração com o seu papel costumeiro de protectores e de árbitros. Viviam, em permanente temor, quer da vingança dos descontentes, que, por vezes, assumia a forma de maldições e de outras práticas de magia negra, quer das punições, por vezes corporais, que poderiam advir de autoridades administrativas, iradas com os comportamentos que consideravam como sendo de "resistência passiva". Em qualquer caso, o trabalho compelido contribuiu poderosamente para minar o prestígio dos chefes tradicionais que se viam transformados em simples auxiliares da administração.
 
O Estado, por vezes, dava graves exemplos quanto ao uso e abuso do trabalho compelido e dos "contratos com intervenção da autoridade". Recorriam a eles, sobretudo os municípios, as obras públicas, os portos e os caminhos‑de‑ferro. Aparentemente incapazes de planificarem, com a devida antecedência, as suas necessidades, em mão‑de‑obra não qualificada, obrigavam os administradores, após receberem urgentes ordens telegráficas dos respectivos governadores, a proceder ao recrutamento em condições apressadas e frequentemente desumanas.
 
Que explicação se pode aventar para a prolongada persistência das práticas de trabalho compelido na África portuguesa em geral? Acentuam alguns que, o norte de Angola sofria a influência das condições dadas pelos empregadores do vizinho Congo Belga. Os belgas, graças a uma boa congregação de factores, puderam atingir níveis de desenvolvimento comparativamente superiores, bastante visíveis até à década de sessenta. A superioridade belga teria sido manifesta em recursos de capital, conhecimentos tecnológicos, capacidades empresariais, quadros qualificados e, enfim, no maior dinamismo e nível educativo dos agentes colonizadores. A preferência dos zombo pelos empregadores belgas era naturalmente facilitada pela permeabilidade das fronteiras, (não esquecendo que a etnia Kongo se estendia e se estende ainda fortemente até Kinshasa), cuja fiscalização se mostrava praticamente impossível. Assim, a grande escassez de mão‑de‑obra na região norte de Angola, só poderia ser minorada pelo recurso intensivo e sistemático ao trabalho compelido visto ser indispensável para a grande tarefa agrícola de exportação de café (Angola chegou a ser na década de cinquenta, o quarto produtor mundial de café e a zona do Uíje era a que dava o maior contributo de fabulosas receitas para os cofres do Estado e não só). Esta perspectiva, baseada unicamente no interesse do assalariado por remunerações mais elevadas, esquece que uma forte proporção dos emigrantes normalmente classificados como "clandestinos" repudiava conscientemente o contrato prolongado. Preferiam gozar a maior liberdade possível na escolha de patrões, horários, benefícios sociais, espécies de serviço, cordiais relações, entre outras condições de trabalho.
 
No mesmo ano de 1946, o próprio Marcelo Caetano (1946:72) relatou (muito subtilmente) que, a grande migração de mão‑de‑obra era causada pelo egoísmo cego dos patrões portugueses acicatados pelo sistema de trabalho forçado, o qual utilizava os africanos como mera energia animal sem cuidar dos seus interesses, desejos e necessidades como seres humanos. Logo, no ano seguinte, Henrique Galvão, (1974: 87/113) na qualidade de deputado por Angola, fez a entrega, na Assembleia Nacional, numa sessão secreta, realizada em 1947, do célebre relatório em que denunciou, vigorosamente, as violências de toda a ordem, cometidas sobre as populações para as obrigar ao trabalho por conta alheia. De novo Marcelo Caetano, (1954:29/30) em outra das suas obras, calculou que o número de assalariados que tinham sido deslocados das suas povoações ascendia, nos anos de 1949 a 1951, a mais de 150 000, ou seja, entre 20 a 25% da população masculina válida. A reacção das populações rurais Angolanas foi semelhante à verificada em Moçambique, isto é, o refúgio massivo nos países africanos limítrofes. Em 1954, as Nações Unidas calcularam, em meio milhão, o número de angolanos que viviam fora do seu país natal.
 
Mesmo após as almejadas reformas de 1961, que conduziram à eliminação do trabalho compelido, Afonso Mendes, director do Instituto de Trabalho, apresentou em Janeiro de 1969, ao Conselho de Contra‑Subversão um relatório secreto em que verberava os "erros e abusos cometidos pela nossa estrutura político‑administrativa num passado que vem até há bem poucos anos" (nota 79:221 a 224). Aí citou os abusos de poder, as violências físicas, o trabalho forçado, os abusos da tutela durante o indígenato, as deportações administrativas, a expropriação das terras comunitárias, a deslocação das populações, as culturas obrigatórias, os inúmeros atentados contra o direito consuetudinário, entre outras denúncias. Este relatório secreto veio a ter divulgação internacional por inconfidência de um missionário católico, estrangeiro, que fazia parte do conselho. Foi publicado, em 1972, pelo Comité de Angola, sedeado em Amesterdão e citado por Gerald Bender (1980:221 a 224) na obra Angola sob o Domínio Português: Mito e Realidade.
 
Como nota final desta secção, importa sublinhar, que a particular violência dos ataques iniciados, em Março de 1961 e no que se refere à sua brutalidade (que teve como consequência a resposta das populações e forças militares portuguesas) se deve à cultura tradicional guerreira kongo, onde as praticas mágico‑religiosas tiveram primacial importância. Muitos foram os autores que se debruçaram sobre este assunto, mas dois bastam para que fique o mesmo anotado. Lemos atentamente a dissertação de licenciatura O Feiticismo de Hugo Benigno de Almeida Laborinho Rodrigues (1974:V) e registámos o seguinte como suporte para o respectivo título:
 
“(…) Mischa Titiev diz‑nos que “um feiticeiro pode ser definido como um indivíduo de qualquer idade, de ambos os sexos que use o poder do “mana” para fins anti sociais. Assim ele causa a doença e a morte, faz com que as colheitas sejam más, diminui a caça, ou traz mau tempo. O que quer que um feiticeiro faça para afectar uma sociedade deve portanto de ser neutralizado ou superado por alguém que use o “mana” para fins pró‑sociais. É este o papel do Chaman. Em muitos casos pensa‑se que os feiticeiros quando chegam ao ponto de causarem doenças e morte, têm o poder de enviar substâncias estranhas causadoras da doença para o corpo da sua futura vítima. Onde prevalecem crenças deste tipo um chaman, é frequentemente chamado para remover do corpo do paciente os objectos maléficos (…)”
 
Outro reconhecido investigador e conhecedor do assunto é Eduardo dos Santos (1965:17) que, logo ao iniciar o prólogo, escreve acerca do termo ‘Maza’:
“A força dos slogans ajudou. Maza (é água) foi de entre todos o de mais influência. A fé na magia, numa magia omnipotente, convenceu que os projécteis saídos das armas dos Europeus se tornavam água por acção dos feiticeiros, consentida pelo mandado divino de os Anjos do Bem (os Africanos) expulsarem do Jardim do Paraíso (a África) os Anjos do Mal (os Europeus). No furor dos ataques Maza era o apelo a todas as energias, a todos os cometimentos, por julgarem de nenhum poder mortífero as espingardas dos Brancos.”
 
A vivência dos acontecimentos, a posterior razia e consequente fuga das populações kongo continuam bem presentes na nossa memória. Quando se vivem anos de intermitente sobressalto como os que (quer queiramos quer não) ainda invadem o nosso onírico, o que mais pedimos à vida é que os afaste de nós e, o mais possível. Por isso, dissertaremos unicamente sobre a guerra colonial (1961/1974) do Norte de Angola (mesmo a que diz respeito aos vinte anos de guerra civil) o estritamente necessário.

 
 

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