Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (23)
Por Dr José Carlos de Oliveira.
Institucionalização do Trabalho Compelido e a sua Importância para a Sociedade Zombo (1)
Antes de mais, um pequeno comentário: todas as potências colonizadoras tiveram o problema da institucionalização do trabalho
compelido, com uma particularidade para o que se refere à administração portuguesa face à exiguidade de quadros administrativos e militares. Os portugueses mesmo que quisessem, não poderiam ter
exercido a pressão dos ingleses ou dos franceses, porque a densidade demográfica da população branca em presença não o permitia. O conteúdo e análise da nossa dissertação, dos documentos
factuais, atestam a veracidade das nossas palavras.
Os idealistas que julgavam ver, na simples proclamação da república, a cura para todos os males nacionais, também seguiram a tradicional e
mítica via legislativa para tentarem resolver problemas laborais nas colónias. Em 27 de Maio de 1911, foi publicado um decreto com força de lei, que veio substituir o Código de 1899. Foi mantido,
na sua essência, o regime de compulsão.
O caos político, em que mergulhou o país, não deixou de afectar a coerência legislativa. Apenas três anos depois de publicado o enorme
Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas (Decreto 951, de 1914) que basicamente se limitou a sistematizar o regime de 1899, todo o indígena válido tinha
obrigação moral e legal de, por meio do seu trabalho, prover ao seu sustento e melhorar as suas condições sociais e económicas.
Aqueles que não cumprissem voluntariamente a obrigação de trabalhar, deveriam ser persuadidos pela intervenção educativa das autoridades.
Esgotados os meios de persuasão, seriam pura e simplesmente compelidos, ficando sob contrato assinado, pelo empregador e pela autoridade tutelar. Quando os serviços estaduais ou municipais não
estivessem interessados na sua admissão, poderiam ser obrigados a servir nas empresas privadas que os requisitassem (segundo o art. 109). Os que resistissem seriam julgados como vadios e punidos
com trabalho correccional (segundo o art. 96). Esta pena seria, em princípio, cumprida em obras públicas.
Nos seus relatórios anuais, as autoridades administrativas incluíam mapas, dos quais constavam os trabalhadores requisitados pelas – e
fornecidos às – actividades agrícolas e industriais, bem como prémios de engajamento recebidos e a receber. Até 1928, estes elementos foram publicados nos Anuários Estatísticos.
Todavia, o ministro João Bello alterou este sistema. No novo Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique
(Dec. 12533, de 1926) foi incluído um artigo que garantia a liberdade contratual e declarava que o trabalho obrigatório ou compelido só seria permitido em serviços de interesse público de
urgência inadiável. Além disso, deveria ser sempre remunerado. As penas de "prisão correccional" e de "prisão maior" previstas no Código Penal foram substituídas, quando aplicadas a
indígenas, pelas de "trabalho correccional" e de " trabalhos públicos", num evidente esforço, para minorar as carências de mão‑de‑obra. Porém, na prática quotidiana, continuou a aplicar‑se
impunemente, o regime de compulsão, legalizado em 1899, que tinha a virtude de combinar, sem subterfúgios, as determinações da lei com as práticas rotineiras.
Entretanto, o governo português ratificou a Convenção Internacional sobre Escravatura, assinada em Genebra, no ano de 1926.
Três anos depois, foi promulgado, em Lisboa, o novo Código do Trabalho dos Indígenas, monumento legislativo, com 428 artigos e largas centenas de parágrafos e alíneas (Dec. 16.199).
Alarmadas, as associações representativas das diversas actividades económicas, pressionaram o Ministério das Colónias para que a entrada em vigor do novo código, fosse precedida de um
"período de transição", de cerca de dois anos. Porém, toda a estrutura legislativa consagrou, em teoria, o princípio de que o regime contratual de trabalho respeitaria a liberdade
individual e o direito a justo salário e assistência, intervindo as autoridades somente na fiscalização [Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas (1929), Acto Colonial
(1930) e Carta Orgânica do Império Colonial Português (1933)].
Para os nossos presentes propósitos julgamos não ser necessário entrar em mais pormenores. Esta estrutura legislativa foi devidamente referida
por Silva Cunha (1955:305) O trabalho Indígena, Estudo de Direito Colonial. Mas, em boa verdade, a sua aplicação prática sofreu tão graves distorções em todas as colónias africanas de
Portugal, que (acumulados descontentamentos em matéria de tributação, de instrução, de habitação social, de posse de terras, de desenvolvimento rural, de liberdade de expressão) se pode
considerar como uma das poucas causas principais que provocaram a brutalidade das rebeliões que eclodiram na década de sessenta, embora a instrumentalização das massas se prendesse fortemente com
os mesmos métodos aplicados na revolta Buta de 1915, por nós, já devidamente assinalada. Viremos ainda a debruçarmo‑nos, em momento oportuno, sobre os acontecimentos do 15 de Março de
1961 e as práticas políticas, mágico‑religiosas e económicas pouco divulgadas.
Retomando a nossa argumentação, afirmaríamos que, entre 1930 e 1942, em matéria de recrutamento de mão‑de‑obra indígena, se assistiu a uma
proliferação de práticas arbitrárias e díspares, de harmonia com a personalidade de cada autoridade administrativa, desde governadores a chefes de posto. Devemos salientar, no entanto, que esta
época foi marcada pela grande depressão económica mundial e, mais tarde, pela Segunda Guerra Mundial, a qual alterou profundamente o mercado internacional de matérias‑primas de origem
africana.
Convém acentuar, acima de tudo, que a institucionalização do trabalho compelido, das culturas obrigatórias e de outras formas de coerção e
violência, não foi instigada por agentes de execução subalternos. Tiveram nela, intervenção directa, personalidades colocadas nos mais altos cargos da hierarquia do Estado.
Inúmeras circulares deram origem a deturpações, face à legislação regular. Foram elaboradas, em gabinete, por altos
funcionários, sob as ordens de militares, uns e outros, não apenas, esquecidos das enormes carências dos meios humanos e materiais que afligiam as autoridades administrativas, mas sobretudo
ignorantes das próprias estruturas políticas, sociais, familiares, económicas e jurídicas das comunidades tradicionais em que se agrupavam as populações africanas das duas maiores possessões
africanas de Portugal. Essa mentalidade colonial foi devidamente comunicada por Jorge Dias, no seu Relatório da Campanha de 1957, Missão de Estudos de Minorias Étnicas do Ultramar
Português (1957:61).
"(…) Para o comum dos europeus mantém‑se a mentalidade colonial que considera o negro como mão‑de‑obra barata e não procura assimilá‑lo.
No momento em que o preto tem direito ao mesmo salário que o branco, já ninguém o quer, mesmo que seja um bom operário. Daqui sucede que pretos assimilados têm de ocultar, por vezes a sua
situação jurídica, para conseguirem arranjar trabalho como um indígena vulgar. Desta maneira muitos pretos não têm interesse em ser assimilados. Além de não terem vantagens económicas, também não
conseguem ser tratados com mais consideração. (…)"
Outros cientistas de grande renome como é o caso de Placide Tempels, (1949:18) dando conta das dificuldades que se deparavam às administrações
coloniais, neste caso o Congo Belga e que particularmente nos diz respeito, escreveu:
"(…) O facto de que nas altas esferas já nem se sabe a que santo se encomendar para dirigir os Bantos, que cada vez se está mais longe de
uma política indígena estável e que não se progride, sempre que se trata de fornecer directrizes sólidas e dignas de crédito, para assegurar a evolução e a civilização dos Negros, parece‑me dever
ser atribuído à ignorância da sua ontologia, a que ainda não se conseguiu fazer a síntese do seu pensamento e que, por conseguinte, nem mesmo se está em condições de julgá‑los (…)".
Com Tempels passou a haver razões para presumir que os africanos não queriam ser simplesmente assimilados. O desconhecimento da vida do
africano não era defeito nosso, mas sim a regra dos europeus com responsabilidades em África. Outro responsável, na época da Administração Colonial, Narana Coissoró, teceu considerações em
As Estruturas Básicas do Fenómeno Colonial (1963:13):
"(…) Que mais se poderia pedir a um futuro, infeliz colono africano, sem qualquer informação sobre África, senão que, era terrivelmente
longe? A sua primeira atenção incidia sobre a propriedade da terra, e não é preciso ser‑se muito realista para pensar que o indígena só lhe merecia atenção na medida em que tornava fácil ou
difícil a aquisição daquela e prestava maior ou menor colaboração no seu cultivo (…)"
Ficariam irremediavelmente comprometidas as inúmeras tarefas e responsabilidades que recaíam sobre os administradores se, como pretendiam as
circulares, tivessem diariamente que perder horas a procurar patrões, alimentos, alojamentos e transportes, a providenciar quanto à emissão de cadernetas de identificação e à sua inscrição nos
cadernos de recenseamento, a mandar elaborar contratos para os ditos "ociosos".
Recordemos também, o ambiente patogénico, o clima opressivo, as crónicas faltas de pessoal, as enormes distâncias, as frequentes avarias nas
linhas telefónicas, o estado deficiente das pontes, das estradas e das viaturas na época das chuvas, a falta de verbas para alimentar os "ociosos", concentrados na administração, enquanto
aguardavam o contrato, as limitações orçamentais dos serviços públicos e municipais que deveriam absorver os excedentes de "ociosos", entre outros. Daí, a generalidade das autoridades
administrativas ter adoptado, por razões estritamente práticas, a norma de mandarem proceder, com colaboração ou não dos chefes tradicionais, a rusgas de intensidade, localização e periodicidade.
Ocasiões especialmente oportunas surgiam quando eram recebidas ordens dos governadores de distrito para recrutar contingentes de trabalhadores para serviços estaduais e municipais. Assim se
concentravam algumas centenas de homens na sede da administração e se seleccionavam, em face das cadernetas e dos averbamentos nos cadernos de recenseamento, os que mereciam ser classificados
como "ociosos".