Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (21)
Por Dr José Carlos de Oliveira.
Os “Últimos Filhos do Império Colonial” entre os Zombo(3)
A grande maioria dos homens e pouquíssimas mulheres, que demandavam estas paragens, ia já contratada, desde a metrópole, sendo obrigatória a
célebre ‘carta de chamada’, um documento onde um residente na colónia se responsabilizava perante as autoridades coloniais pelo emprego do novo imigrante. Este documento, no fundo, era um forte
entrave à imigração para Angola. Também se dava o caso de uma larga maioria de colonos neófitos fazerem a sua aprendizagem nas lojas dos muceques de Luanda e, então, já com a cartilha
lida serem contratados para o vasto norte de Angola. Os imigrantes não faziam ideia nenhuma das difíceis condições laborais que iam encontrar, em especial o isolamento que os esperava. A
casa de pau a pique, de cerca de oito metros de comprimento por três de largura, era um barraco muitas vezes coberto de capim, de chão térreo e interiormente sem portas, um pequeno quintal onde
podiam crescer árvores frutícolas como mangueiras, bananeiras, goiabeiras e mamoeiros. Olhando o horizonte, visto pela frente da porta, era o mato sem fim, porque, de uma forma geral, a casa do
europeu não se implantava dentro da senzala.
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A loja do comerciante do mato seria uma forma peculiar de pequena loja de retalho, descrita superiormente por Cyril
Belshaw (1968:96) em Troca tradicional e Mercado Moderno:
“(...) Mas tanto na África ocidental quanto nas Fiji, a pequena loja da aldeia tem um papel a desempenhar. Ela é, em essência, um pequeno
armazém para o abastecimento diário fósforos, querosene, cigarros, sabonete, alimentos enlatados, etc. A loja é um barraco, uma sala, uma varanda e o lojista raramente tem um movimento
suficiente para justificar um funcionamento em grande escala. Os aldeões não dependem dêle para os seus suprimentos básicos, mas apenas para conveniências. Êle próprio, a despeito dos preços
altos, tem um pequeno lucro perceptível, pois raramente pode comprar em quantidade suficiente para obter legítimos preços de atacado, e tem pesadas despesas de transporte. Qualquer lucro
financeiro existente é normalmente despendido na manutenção do estoque e como capital de giro (…).”
O comerciante do mato foi o “principal agente da colonização espontânea europeia” foi uma aventura dramática e engenhosa da difusão de
mercadorias, conhecimentos culturais e ideológicos, levados pelos europeus colonizadores aos sertões de África. Também serviu, superiormente, entre outros estados da colonização europeia, o
Estado Português. Gostava de se iludir em vender um litro de petróleo, uma caixa de fósforos, um espelho e as missangas por mais cem por cento. Não fazia contas às contas da vida, a grande
maioria acabava por perder todas as suas raízes culturais, sem ter tempo, de assimilar as raízes do povo entre o qual viviam.
Hoje, só terá similitudes e mal, com o chamado comércio tradicional que, pouco a pouco, vai definhando. Ainda resiste, porque é ali que na
aldeia que as pessoas ainda compram a crédito, vivem do fiado, deixam que, por vezes, o comerciante acrescente “uns pós” à sua conta mensal, quando o dinheiro não chega ao fim do mês. Sabem que o
comerciante lhes “vai ao bolso”, mas percebem não ter outra solução para atender às necessidades do dia‑a‑dia.
Voltando aos aprendizes de comerciante do mato, não admira que perante tanta solidão, alguns empreendessem com celeridade o caminho de
regresso, e não voltavam mais, pela vergonha de serem considerados ‘fracos’. Pior do que eles se sentiam as poucas mulheres brancas, suas companheiras de infortúnio. As lágrimas que estas
choravam não caíam pela saudade da vida tranquila, embora com muitas necessidades, que tinham deixado na sua terra natal. As lágrimas que choravam amargavam, pela impossibilidade de voltarem
atrás, e choravam‑nas uma vez mais, por raiva contra o homem em que tinham depositado toda a esperança de uma vida melhor. Nas palavras que ele tinha proferido: ‘Fica descansada mulher nunca
mais vais passar pelas necessidades que passaste em casa de teus pais, posso garantir‑te’. Via‑se, de repente, pateticamente assustada no meio de tanto negro e tão poucas negras
(não sabia que elas tinham ficado na senzala). No seu entendimento, eram todos tão iguais. Com esforço, através dos primeiros serviçais que a iam ajudar ao trabalho doméstico, se ia apercebendo
das dificuldades que também eles viviam.
Estes dramas fazem parte de um processo histórico recente, da emigração centenas de milhares de homens e mulheres jovens. Lentamente muito
lentamente o processo de integração dos europeus entre os zombo ia‑se processando, muito ao revés, do que acontecia na maioria da vasta Angola. Os homens solteiros, em idade de casar e
considerava‑se, nessa época, idade de casar, logo a seguir a ir às sortes, isto é, ir à inspecção militar. Como isso não acontecia no norte de Angola, entendia‑se que, em seu lugar, a
idade de casar seria quando o novo aspirante a comerciante do mato estivesse em condições de ter a sua própria casa comercial (aqui podemos encontrar alguma similitude com o
lumbu zombo). Tal costumava acontecer logo após os primeiros quatro anos de experiência comercial. Sempre que uma nova família de imigrantes chegava à área zombo, e desde que nela viesse
incorporada uma moça púbere, a notícia corria célere. Os mais expeditos afoitavam‑se e aproximavam‑se do chefe de família com os mais diversos pretextos, outros limitavam‑se a recordar a imagem
de alguma conterrânea a quem tivessem deitado os olhos, na ‘santa terrinha’ e com quem tivessem conversado ou mesmo namorado, à maneira antiga, ou seja, à janela e com a mãe à espreita.
A solidão só era quebrada quando algum camionista passava, quando se ia à vila, ou recebia as tão esperadas cartas da família, e isto
acontecia, com intervalos de largos meses e às vezes de anos, também havia homens que, vá lá saber‑se porquê, nunca recebiam cartas. Eram homens sós, na solidão do mato. Para a maioria dos
solteiros e, alguns com quarenta e cinquenta anos, não lhes saia do pensamento arranjar companheira, aliás, em algumas cartas que recebiam da mãe, esta, nas parcas fotografias que lhes enviavam,
assinalavam no grupo da fotografia a moça que entendiam que melhor servisse o filho distante no lado de lá do mundo. Recomendavam‑na como a melhor rapariga, a mais simpática e a mais recatada.
Quando isso não acontecia, o aspirante a novo comerciante do mato, mandava então publicar um anúncio no jornal mais adequado da metrópole, o Diário de Notícias. Seria
interessante uma consulta ao matutino dos anos quarenta, cinquenta e especialmente sessenta do século passado, lá encontraríamos, com frequência espantosa, anúncios do género: “Comerciante,
agricultor, funcionário público, deseja contactar, menina casadoira, não importando ser pobre mas ser boa dona de casa, para fins matrimoniais, se possível enviar fotografia recente”.
Não era raro receberem, em resposta, dezenas de cartas, algumas das pretendentes que já se dispunham embarcar no primeiro navio a zarpar de
Lisboa, chegando ao cúmulo de, na primeira carta, afirmarem a sua incondicional dedicação e amor. A ansiedade de um era muito idêntica à do outro. A breve trecho, aquela mulher via‑se no navio, a
despedir‑se da mãe que, muito baixinho, lhe sussurrava ‘filha lembra‑te de nós e das necessidades que passamos para criar os teus irmãos, manda algum dinheirinho assim que puderes’. Ao
fim de alguns dias, o navio atracava no porto de Luanda, Lobito, Benguela ou até Moçamedes. Vestidas com o maior cuidado, de forma recatada, mas não deixando de retocarem a face com
baton suave e rouge iam ansiosamente passando os olhos, por uma dezena de homens, que esperavam no cais, a ver se vislumbravam alguém que se assemelhasse à fotografia que
traziam consigo.
Era frequente não se reconhecerem logo (um deles tinha mandado a fotografia que mais o/a favorecia, e assim começava o primeiro esmorecimento)
aquele homem, de tez tão escura, queimada pelo sol, com as mãos e unhas negras, desalinhado, às vezes já calvo, não se parecia nada com o da fotografia, enfim uma tragédia. Nada podia preparar
aquela mulher ansiosa para começar a aceitar tão grande susto, aquele homem que só conhecia através de foto iria ser, ainda naquele dia, efectivamente seu marido. Por vezes, acontecia que o nosso
‘africanista’ também não podia reconhecer naquela, já tão cedo, cansada mulher, a moçoila sorridente e simpática que a fotografia que trazia consigo não permitia reconhecer.
Depois, era a ida para o mato, as peripécias do trajecto e a chegada ao barraco de chão térreo: duas simples divisões, uma servia de quarto,
com uma pequena janela sem vidros, a cama, muitas vezes imunda (o homem havia tempo que deixara de ter as mais simples noções de higiene) e sobre a qual pendia a velha rede de mosquiteiro. A
outra dependência, tinha só e, quando muito, uma roçada mesa sobre a qual repousava o candeeiro colonial a petróleo com a chaminé enegrecida e duas desengonçadas cadeiras, um pequeno armário
também forrado a rede de mosquiteiro onde os pratos e canecas de esmalte estavam colocados a esmo. A cozinha, no cercado não tinha porta, lá dentro, uma lareira elevada do solo, a cerca de um
metro, terminava com uma grelha com três ou quatro ferros colocados à distância suficiente do pequeno lar, por cima, usualmente, uma cafeteira, ao borralho, estava pronta com água para fazer o
café de saco. A latrina era um pequeno cubículo, com duas tábuas atravessadas no chão, a servir de retrete. A nova dona do barraco sofria em casa de seus pais necessidades, mas não
esperava aquele horror, porém estava disposta a aceitar o seu destino. Aquele homem seria o seu companheiro de futuro, para o bem e para o mal, gostasse ou não dele, não tinha outro remédio. Ele,
por seu lado, se a moça não fosse na realidade aquela com que tinha sonhado, também teria de se aguentar.
Acabavam por se compreender, anos depois, a vida acabaria por sorrir, viriam os desejados filhos. Frequentemente o parto já era participado
pela lavadeira da casa e, em alguns casos, mesmo pelo marido. Conhecemos o caso de um agricultor, que a mulher, sozinha, preparava o que era necessário ao parto e explicava ao trémulo marido como
devia proceder para a ajudar. Este ao assistir ao parto do quinto filho já se ufanava de ser experimentado parteiro. Esta estirpe de mulheres, em breve, encorajavam o companheiro a alargar as
suas actividades comerciais ou industriais. O país já era o seu, os seus filhos não conheciam outra pátria, por isso, investiam todo o seu pecúlio naquela terra. A metrópole já não lhes dizia
nada, era um país estranho e, se alguns se deslocavam de férias, com um intervalo de muitos anos, à metrópole, sentiam‑se muito deslocados, quase estrangeiros, só desejavam era regressar. Foram
estas as gerações, filhos da Segunda Guerra Mundial, que tiveram de enfrentar a brutalidade do 15 de Março de 1961, e que, na sua grande maioria, ficariam em Angola até 1975.