Os Zombos na Tradição, na Colónia e na Independência (11)
Por Dr José Carlos de Oliveria.
Para termos uma noção da diferença abismal do que eram as teorias higiénicas a aplicar e aquelas que foram sendo possíveis conseguir, deixamos
aqui um pequeno excerto do “Guia de Saúde do Soldado Português nas Colónias”, (1913:20/36/51/76), Ministério das Colónias. Prevendo a estranheza do que se escreve, informamos que o mesmo
é feito em discurso directo, entre diversos intervenientes e o soldado que parte para o ultramar:
“– Dão‑se os casos com os homens como com os animais e as árvores. Tu já ouviste dizer que em Portugal há leões ou tigres? Não,
certamente, como não hás‑de ver vinha lá nas terras quentes, nem ver aqui cana‑de‑açúcar. Pois olha que não foi porque dantes os homens menos sabedores não a quisessem trazer para cá. Mas não se
deu, pela mesma razão porque cá se não dão os pretos, nem nós em África, senão nos sítios que se pareçam com a nossa terra no frio, na luz, na falta de grande humidade, enfim naquilo tudo que se
costuma chamar o clima”.
Basta‑nos esta introdução para, à primeira vista, tudo parecer um disparate, mas não era. Necessitamos de ponderar e reflectir novamente sobre
o tal conceito Zeitgeist o tal "espírito da época", ou "espírito dos tempos". Sem ele, faremos críticas apressadas e desajustadas. Porém, continuemos:
“– Comidas? Tens razão. Vamos a isso.
– Dizem que é o mais principal…
– Não tanto assim. O principal eu te direi depois, embora tudo seja importante.
– As comidas são como cá?
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– Regulam. Primeiro, quando se chega, é um apetite capaz de comer ferro!
Assim sucede como com tudo o mais, e até a gente parece sentir‑se mais forte, a não ser com quem comecem as saudades a entrar. E olha que
os cheguei a ver lá quase mortos de saudades!
– Não, que ele é caso…
– Vergonha! Isso é bom para as mulheres, e nem essas. O caso é passar os primeiros meses que tudo se abranda depois. Ah! Bons portugueses
de dantes! Todas terras eram as deles. E como sabiam que não iam para voltar em dois ou três anos, como agora, mas quem sabe depois de quantos, por isso se acostumavam. Agora nós…
– Vamos a ver.
– Está visto; e o contrário é uma vergonha. Mas também nada de ir atrás da força que se sente no princípio. Comer a horas, regrado; poucas
carnes e nenhumas gorduras. Frutas, legumes é o que mais convém. E cuidado que não estejam alteradas, já meio tocadas da podridão…Sucede isso muito por lá”.
Certamente que quem veio de Angola e em especial lá combateu tem noção de que o autor do guia, não terá certamente pisado terras do interior
de Angola. Mas continuemos:
“– Tudo limpinho.
– Sim, Havendo bem limpeza e cuidado, pode bem ser que cheguemos a não os ter a apoquentar‑nos; mas como se uns são limpos outros há mais
porcos que os porcos, o melhor é defender‑se como puder, e para isso nunca dormir, mesmo de dia, sem ser debaixo dum mosqueteiro…”
A 5ª Companhia de caçadores Indígenas (composta por cerca de 25 militares europeus e mais ou menos 150 soldados indígenas) cerca de cinquenta
anos depois, não tinha um único mosqueteiro. Eram então frequentes os ataques de malária, embora a companhia tivesse um ‘competente’ furriel enfermeiro que na vida civil tinha sido
dactilógrafo.
Finalmente, na página 76, o discurso é o seguinte:
“– O que é preciso é não supores que vais para terras onde não chegou ainda a miséria que por cá há. Não sei se me entendes. Pelo
contrário: lembra‑te que, enquanto a isso, tudo é pior por lá e mais ainda, que as doenças venéreas por lá apanhadas são duma qualidade tal…
– Bem mo diziam!
– Pois então é ter juízo, não até fugir das mulheres como um tal José do Egipto, mas muito menos para te prenderes. De resto, ser rapaz,
nenhum mal te pode fazer, e até talvez te sintas por lá mais rapaz que por cá. Coisas do Clima, mas para o caso é ter juízo, e sempre juízo. Depois, tudo quanto é natural se pode fazer sempre por
o melhor. É ter cuidado e quando tiverdes quaisquer relações usar preservativos que se vendem nas farmácias, ou – o mais barato e melhor ainda – lavar‑te logo a seguir com água e sabão e depois,
água de sublimado ou qualquer outro desinfectante, pondo três ou quatro gotas na via.”
Admitiremos que este médico tinha as melhores intenções, infelizmente a realidade mostrar‑se‑ia bem diferente. Os militares portugueses
destacados em França, após o fim da 1ª Grande Guerra, em 1917, traziam na sua bagagem toda a sorte de doenças venéreas desde a simples blenorragia à malfadada sífilis. E se era assim em França,
como seria em S. Salvador do Congo, em Maquela do Zombo ou na povoação da Damba, que eram à altura pequenas povoações com uma ou duas dezenas de europeus, sendo muito rara a presença de uma
mulher e principalmente branca.
No Arquivo Histórico‑Militar de Portugal que tem uma biblioteca extraordinária, encontrámos documentos que necessitávamos para suporte dos
nossos capítulos no referente ao período do princípio da ocupação efectiva no século XX até 1975. Tivemos de fazer uma selecção, e sabíamos fazê‑la, conseguimos fotocópias de documentos
relevantes para o nosso estudo e embora já nos tivéssemos debruçado suficientemente sobre a guerra do Buta, vem a propósito, transcrever‑se parte do “Relatório da Força saída a 15 de
Fevereiro da 2ª Companhia Indígena d’Infantaria de Angola” (1914) (sedeada em Maquela do Zombo):
“Relatório da força saída a 15 de Fevereiro 1914,
às regiões de Quimanandinga, Tunda, Palabala e Maceque
(…) Às oito horas e um quarto, do dia 15 puz‑me em marcha com uma força de doze soldados municiados a cem cartuchos, em direcção à região
do soba Quimanandinga encontrando depois de uma hora de marcha da minha saída dois gentios armados de espingarda a quem logo me dirigi e lhes fiz várias perguntas sobre o seu destino e fim,
respondendo‑me um deles o seguinte: Disse que era irmão do Quimanandinga e que vinha a Maquela pedir ao snor Administrador soldados por causa do Buta que tentava vir sobre a sua região e a do
Tunda e como a minha missão fosse justamente essa, filu voltar e acompanhar‑me fazendo‑lhe então durante o trajeto até ao meu primeiro posto de destino algumas perguntas, entre elas qual o local
onde se encontrava a gente do Buta e como haviam adquirido a notícia da sua vinda ali, ao que ele respondeu: A gente de que dispõe Buta é muita e acha‑se concentrado no Suco povo do Soba
Culanzunzo comandando a guerra Quelacasseca soba do povo Furesedundo a mandado do Buta e que Quimanandinga soube do que se tratava devido a uma rapariga que fugira do local de concentração para a
sua região e lhe contara o sucedido.”
Este relato torna evidente que os sobas não tinham por amigos outros sobas, tinham todos como interesse principal a sua própria defesa, não
tendo demorado a perceber que as armas das forças portuguesas eram “armas finas “enquanto que as deles eram armas de carregar pela boca os célebres kanhangulos. Estes teriam
possibilidades de sucesso numa acção de surpresa, e em que o combate se travasse a uma distância de menos de cinquenta metros entre as forças em confronto.
Num outro relatório, na página 105, secção d), área de Maquela:
“No dia 19 de fevereiro (de 1914), o comandante militar de Maquela, major do quadro occidental, Victor Lacerda, com o auxilio de
importantes sobas fieis Nosso e Buzo e outros, com dois graduados europeus e 32 praças indígenas e dois auxiliares europeus, no effectivo total de 350 espingardas, poz‑se em marcha para castigar
os povos de Sadi, Teco‑Fulege, Gumba, Bongola, Palabala, e Lembele, não encontrando resistencia em parte alguma, destruindo todavia, os povos de Manianga Banza Sadi, Quissundi, Zulumongo, Tengo e
Banza Pambo, de Sad; Idi, Taniquina, Quinanga e Toco‑Fulege, Lucunga, Quimbango, Dimbo e Banza Dimbo do Gumba.
Esta força regressou a Maquela em 21 de Fevereiro, não havendo quaisquer outras manifestações de rebeldia ou suspeita de rebeldia em toda
a região de Maquella.”
Estavam assim reunidas as condições para se concretizarem as intenções da iniciativa de Eduardo Costa, Governador‑geral, ao começar a proceder
à colecta do imposto de cubata. Os povos começavam a abandonar os seus sobas para se recolherem à segurança prestada pela administração colonial portuguesa. Sendo digno de nota que, daqui em
diante, eles como filhos dos antigos pumbeiros zombo e componentes do que restava das elites do comércio zombo teriam de ganhar o suficiente para (por conveniência própria), passarem a pagar
impostos do lado belga, do lado português, do lado do seu mfumu a vata e ainda lhes restarem bens suficientes para sompar (noivar).
Para que tal acontecesse, eram a um só tempo serviçais dos portugueses, caçadores, agricultores nas horas vagas, e ainda iniciariam nesta fase
o contrabando de sobrevivência. Também se encontravam agora reunidas as condições para que os zombo (como já acontecia com outros povos) começassem a aderir à prestação de serviço
militar indígena. De uma coisa tinham eles a certeza, não lhes faltariam mulheres (eles passavam a ser autoridade) e o sobeta, digamos o auxiliar do soba, já não teria
autoridade para se interpor quando ele, soldado, exigisse uma galinha ou duas na povoação. O chefe de posto, por vezes, sentia‑se sem autoridade, porque os vencimentos dos soldados não eram
liquidados todos os meses, e por isso, fechava os olhos às investidas dos soldados à senzala, habituados como estavam aos desmandos que uma operação militar de razia impunha e, a este respeito,
ninguém melhor que Lopo Vaz Sampayo e Mello (1910:499) para sustentar o que dizemos:
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“Embora antes da pacificação da colónia os efectivos militares devam ser essencialmente constituídos por soldados vindos da metrópole, é
certo também que, desde o princípio, os indígenas prestam excellentes serviços como exploradores, carregadores, interpretes e principalmente como eméritos razziadores, o que não é para desprezar
em guerras africanas, onde a razzia, digam os humanitaristas o que disserem, é muitas vezes uma necessidade impreterível para se poder vencer.”
Foi neste contexto, que os zombo se começaram a integrar, incorporando‑se no exército, nas administrações civis e noutros
serviços públicos, nas casas dos comerciantes brancos, aprendendo a conhecer assim as misérias e grandezas dos colonos (comerciantes ou não). A este respeito, voltamos a citar Heliodoro Faria
Leal (1914:348), que ficou conhecido pelo seu pulso firme na condução dos negócios portugueses em S. Salvador do Congo, uma espécie de Marquês de Pombal do seu tempo. Foi certamente criticado
pela igreja católica, porque severamente também lhes apontou o dedo e nem mesmo os capitães‑mores lhe escaparam. “Ficam de fora o Damba e Bembe, ultimamente ocupados e o Zombo, onde as
exigências do comércio e o espírito ganancioso de algumas autoridades teem conservado o preto a eterna besta de Carga”
O termo integração justifica‑se aqui porque entendemos que Neto (1964:22) sabia o que dizia quanto ao significado
político do termo. Por nós o que fazemos é trazer à luz a realidade dos zombo face às suas palavras: “Uma vez assente que a palavra integração pode designar hoje, de acordo com as fontes mais
abalizadas, a acção tendente a criar e fortalecer sociedades multirraciais nas regiões intertropicais, acção essa que, mais concretamente, se poderá designar também por integração multirracial,
interessa saber como, de acordo com as mesmas fontes, se designa a maneira de actuar do órgão que deve de orientar essa acção, e qual deverá ser esse órgão”
Continuemos a ler Pereira Neto, para irmos entendendo o que nos diz, com um senão, onde se lê “diferença tecnológica” (1964:19) e
talvez não seja desajustado colocar o termo poder político:
“Portanto para que haja possibilidades de convivência perene e para que determinada sociedade multirracial esboçada num momento, seja
duradoura, necessário se torna que o grupo portador de cultura material mais adiantada respeite sempre os membros do grupo menos adiantado, na sua qualidade intrínseca de seres humanos, e,
simultaneamente, os padrões sociais, morais e espirituais das culturas em que eles se integram, atitude essa que implica o absoluto repúdio não só de todo e qualquer paralelismo entre as
diferenças tecnológicas e as diferenças entre padrões morais, sociais ou religiosos, mas também do estabelecimento de qualquer escala de valores entre aqueles padrões e os da sua própria
cultura.
O estrito cumprimento desses princípios é condição essencial de sobrevivência para o grupo tecnologicamente mais evoluído, se for
demograficamente minoritário, porque, se assim não proceder, na altura em que for superada a diferença tecnológica a reacção do grupo até então considerado inferior não só destruirá, na sua ânsia
de superar o condicionalismo em que se integra tudo que considere revelador da sua situação de inferioridade como inutilizará também tudo o que de bom houver sido feito pelo outro
grupo.”
Com a colaboração de Associação dos
Bazombos "Akwa Zombo, AKZ"
e-mail: joão_daves@yahoo.fr