Por Dr. José Carlos de Oliveira
Não vale a pena argumentar, os factos, neste caso as fotografias, falam por si, e aqui, mais uma vez, me sirvo das palavras do missionário António Barroso:
“Senhores, os sentimentos nobres, a dedicação e o desinteresse não são exclusivo da raça branca, da raça civilisada… Um preto no Congo sabe o nome de três reis; o actual, o do seu antecessor e o de D. Afonso I ”.
Este foi o estado em que o Residente Faria Leal encontrou o “Panteão Nacional Kongo”
Fotografia do acervo do autor e da autoria de Veloso e Castro, 1910.
O que está aqui em causa é o seguinte: Demoliram-se os monumentos para aproveitar as pedras na construção da muralha militar para defender os interesses do Estado Português. A Igreja Católica e a Missão Inglesa também demoliram muros das igrejas católicas antigas. Está dito, mas não se vandalizaram as sepulturas dos reis do Kongo, bem pelo contrário, tratou-se delas. Não vale a pena discutir isso, porque o resultado desta atitude da governação portuguesa foi o modo como as missões religiosas e os administradores da autoridade portuguesa foram olhados pelos Kongo.
E mais, Faria Leal estava a ser orientado de forma a que o contentamento dos kongo passasse primeiro pela vantajosa troca das mercadorias (incluindo ainda escravos vendidos pelos Kongo entre si) em condições que lhes fossem favoráveis, senão estes iriam vendê-las a 2 ou 3 horas de caminho, aos comerciantes do Estado Independente do Kongo; e, se por acaso, ainda assim não ficassem contentes, poderiam vender os seus produtos nas casas inglesas, francesas, alemãs, holandesas do Nsoyo, Landana ou Boma, prejudicando fortemente as receitas da fazenda portuguesa.
O que interessava, na óptica de Faria Leal, era perceber minimamente as questões de justiça consuetudinária, ou melhor, os assuntos do Lumbu dya Ntotyla. Explico-me: como sabia até onde devia ir a sua “Vara”, e, a partir daí, respeitar as questões sob a tutela dos notáveis Kongo, mais propriamente dos Ngudikama, (os conselheiros do rei), os que pela tradição descendiam uterinamente da 1ª rainha, por isso Ngudikama quer dizer os filhos legítimos da “Mãe dos Cem”. O número Cem tem aqui o sentido de grandiosidade.
Fotografia do rei D. Álvaro (1896), Faria Leal está sentado em baixo
Note-se que poucas décadas antes, a autoridade portuguesa não existia, (e nunca existiu) no reino do Kongo. O que existiu foi uma relação de interesses muito fortes, entre comerciantes, missionários e notáveis (Ngudykama) bakongo, ao longo de séculos esses interesses passavam essencialmente pelo domínio dos negócios da escravatura, depois do marfim e mais tarde da borracha. Foi assim com o primeiro governador de Angola, Paulo Dias de Novais, no último quartel do século XVI. A primeira machadada dada nos interesses do rei do Kongo aconteceu quando os cristãos (os jesuítas) e os judeus, ambos de acordo nesta tarefa, começaram a controlar a moeda Njimbu, o tal búzio apanhado pelas mulheres na ilha de Luanda, criando assim condições para a conquista do reino do Kongo e de Ngola.
Note-se aqui um aparte, se não fosse este espólio da família Faria Leal e que parte me foi entregue (como fiel depositário), os Bakongo teriam perdido para todo o sempre, a possibilidade de ver confirmado, e às vezes desdito, o que se passou com as relações das suas linhagens e os portugueses daquele tempo. Deste relato, mais uma vez se constata que os intervenientes destes documentos históricos nada tinham de santos…
Fotografia de um momento do óbito do Rei D. Álvaro M’Bemba.