Factos e Documentos Históricos Relativos ao Reino do Kongo nos Primórdios do Século XX
Por Dr. José Carlos de Oliveira
As autoridades portuguesas depararam-se com graves problemas na imposição da soberania, sendo que o maior de todos foi a falta de quadros militares e, mais tarde, também administrativos. Para obviar este problema, dou um exemplo paradigmático: Faria Leal, Residente do governo português em São Salvador (hoje Mbanza Kongo), encontrou a solução mais adequada às circunstâncias quando promoveu o filho do Ntotila e seu legítimo herdeiro, Pedro Kavungo Kalandenda, a guarda-fiscal de primeira classe. Na fotografia acima apresentada julgamos ver no indivíduo que está vestido de branco (farda de funcionário) e que se encontra ao centro a segurar a urna, é Pedro Kavungo Kalandenda3.
O facto de Pedro Kavungo Kalandenda envergar um fato branco com traços da farda de funcionário da administração pública portuguesa e de se encontrar em posição de destaque ao suportar a urna (posição em princípio somente concedida ao parente mais próximo) corrobora a nossa hipótese, já que é o próprio Heliodoro Faria Leal4 que afirma que
“… Pedro Kavungo Kalandenda, hoje guarda fiscal de 1ª classe, podia ter sido rei do Congo, em vez de D. Pedro M´Bemba, se tivesse querido abjurar do protestantismo. Tinha mais direito a sê-lo do que D. Pedro VI e tanto direito como Pedro d’Agua Rosada, Lelo, por ser sobrinho, filho de uma irmã, do rei D. Pedro V … ”5.
Para que posto teria ido ele prestar serviço? Para Maquela do Zombo no posto da Kimbata frente ao importante mercado do Kimpangu (já em território de administração belga) ou para o posto fronteiriço do Luvo? De qualquer modo, era extraordinariamente vantajoso, especialmente para os interesses do Ntotyla (rei), ter alguém de família a comandar um posto aduaneiro, embora os comerciantes pagassem algumas taxas que sempre exibiram ostensivamente perante as autoridades portuguesas, até ao final da sua administração. Este negócio de estar, com um pé na legalidade e outro na ilegalidade, parece ter sido feito para os kongo, mas tal não é verdade. Eles são, isso sim, actores experientes da vida entre fronteiras políticas.
Sobre a secular tendência comercial têm os Kongo no seu sub-grupo Zombo os especialistas mais eficazes para o comércio. Ferreira Diniz, Secretário dos Negócios Indígenas e Curador Geral da Província de Angola, no tempo a que se refere o presente artigo, refere o seguinte relativamente aos zombo e às mulheres zombo face às kongo6:
“ (…) [as mulheres Zombo] são de apresentação mais feminina, têm o rosto mais bem desenvolvido, os ombros, as espáduas, os braços e as pernas bem torneadas […] Os homens têm uma fisionomia insinuante, um ar inteligente activos e desembaraçados […] São de índole pacífica, vivendo de um comércio activo […] gostam muito de casacos de veludo e em dia de festa acrescentam ao seu vestuário um avental de pele de gazela. O que caracteriza os Zombo é a actividade comercial que existe entre eles e é exercida por homens e mulheres em mercados (quitandas). (…) ”
Aqui Ferreira Diniz, por falta de melhor informação, em relação aos bazandu ou simplesmente zandu – ‘mercado’ dos zombo – chama-lhes quitanda, o que é incorrecto porque este termo é utilizado pelos kimbundo.
Outros dados históricos são-nos fornecidos por Roberto Correia, natural do Namibe, Moçamedes, que nos seus compêndios de Angola Datas e Factos, neste caso o quarto volume (2001), compilou, de forma sistemática, os acontecimentos mais relevantes desde o último quartel do século XV até ao recente ano de 2002. No seu quarto volume 1912/1961, encontramos factos e datas que importam para este capítulo (o sublinhado é de nossa autoria):
1913, Julho 03 – Proibição da venda de armas e pólvora em todo o território angolano”7.
1913, Setembro – Tropas portuguesas avançam para o POMBO e o SOSSO (zona do Kuango) mas encontram bastante resistência da parte dos Bakongo, o que não esperavam, tendo sido morto o capitão Praça. Foi o início da Grande Revolta do Congo, onde se verificava uma enorme anarquia político-militar. As suas repartições tinham ao serviço funcionários colocados por castigos, que ali cumpriam as suas penas disciplinares, ou que eram então transferidos, por falta de bons padrinhos!”8
1913, Outubro – Verifica-se uma mais acentuada procura de trabalhadores em Cabinda, com destino às fazendas de S. Tomé. Em consequência disso cria-se um certo vazio nessa região, o qual foi tentado suprir com trabalhadores do Congo (zona sul), ou indo estes mesmo directos para S. Tomé. Em seguimento dessa solução, o próprio chefe de posto, Paulo Moreira, sucessor de Faria Leal, manobrou bastantes sobas da região para fornecerem umas largas centenas de trabalhadores, num total de 1.500, para seguirem sob contrato para aquela ilha.”9
1913, Novembro 22 – O soba dissidente, Álvaro Buta, que havia sido afastado das suas funções, protesta contra o facto do chefe (D. Manuel), ter sido subornado nessa transacção dos trabalhadores, pelo que devia anulá-la, devolvendo o dinheiro já recebido.”10
1913, Dezembro 10 – Buta entra em conflito directo com as poucas forças do chefe Moreira (partidário de D. Manuel), sendo apoiado pelos missionários contrários aos católicos.
1913, Dezembro 11 – Buta, reforçado, entra em S. Salvador para manifestar o seu desagrado, sendo ouvido por todos os europeus ali residentes. Foi seu intérprete o catequista Miguel Nekaka. Exigiu a demissão de D. Manuel Kidito e a cessação do contrato dos trabalhadores para Cabinda e S. Tomé.
1913, Dezembro 31 – Norton de Matos ordena o envio de forças militares da Huila para o Congo e ali se desloca.”11
1914 – Janeiro – A abolição da realeza no Congo era já um facto consumado e, num Estado Republicano, já nem tinha lugar nem qualquer apoio em S.Salvador, ultrapassado mesmo por Maquela do Zombo.”12
1914, Janeiro 25 – Início dos ataques a S. Salvador do Congo efectuados por Buta e seus apoiantes, instalados em Banza Puto e Zamba.”13
1914, Fevereiro 19 – Os portugueses prenderam o Reverendo Bowskill, acusando-o de ser colaborador e fornecedor de munições aos revoltosos […] Avançou então o governador Castro Morais para S. Salvador.
1914, Fevereiro 24 – Castro Morais chega a S. Salvador e manda libertar Bowskill.
1914, Fevereiro 26 – Buta, que tentava recuperar o antigo poder do Congo, ataca de novo S. Salvador mas foi derrotado e perseguido até passar para a região de Maquela do Zombo. A sua presença suscita novas revoltas.”14
A carta geográfica acima, representa o que na minha tese de doutoramento designei como zona de influência da União das Populações do Norte de Angola, mais tarde UPA e depois FNLA, ou seja a Frente Nacional de Libertação de Angola. Como é visível, a Norte entra francamente adentro do sul da República Democrática do Congo; a sul acerca-se do Rio Bengo (quifangondo). Por coincidência ou não, foi aí que a FNLA, parou a sua progressão sobre Luanda em 1975. Sintetizando o sonho dos Bakongo mais propriamente da Alliazo.15