O Reino do Kongo e a História de Angola
Prof. Dra Selma Pantoja (Universidade de Brasília )
In "Prefácio do livro AS ORIGENS DO REINO DO KONGO, do Historiador e Antropólogo angolano, Patrício Batsikama.
A questão das origens dos acontecimentos no tempo são os eternos problemas da História. O acontecimento é um fragmento de realidade captada e como tal fugaz, nunca de caráter simples,
mas complexo e com uma infinidade de sentidos. Neste presente caso de As Origens do Reino do
Kôngo, não será diferente, o pesquisador está perante o heterogêneo.
O texto de Patrício Batsîkama é uma reflexão que interroga o acontecido e daí retira uma possível interpretação. Nesse caminho o autor parte dos vários elementos da língua kikongo comparando-os
com termos dos diferentes idiomas dos grupos etnolinguísticos da região, caracterizados como vocábulos ligados às origens. Com apoio nas tradições orais o
autor trabalha com a intenção de responder e explicar as questões sobre as Origens do Reino do Kongo. Sua busca principal é localizar a dinâmica dessa criação do reino em seus
primórdios.
Assinala as suas localizações, enfatiza os seus achados e chama atenção para o inédito dessa abordagem. Poucos tentaram essa empreitada. Com base em obras já bem conhecidas
no estudo sobre o Kongo, o autor chama atenção para novas possibilidades de se analisar esse nascedouro contando com as tradições orais.
O uso das tradições orais na reconstrução dos percursos históricos faz parte da renovada historiografia africana e sua aplicação ganhou outras dimensões. O grande contributo da História Africana
para uma História Geral, nos séculos XX e XXI, foi o uso da tradição oral, aplicada ao estudo das sociedades contemporâneas capitalistas. Na verdade, deram origem às correntes de estudos que hoje
nos departamentos de História, em toda parte, chamam de campo da História Oral. Assim, temos um número expressivo de organizações nesse campo, a exemplo das Associações Internacionais de História
Oral. O novo campo uniu metodologias várias, ga-
nhou caráter interdisciplinar utilizando tecnologia da informação para a elaboração de entrevistas nos formatos do que os pesquisadores chamam de inserção, intervenção, participação entre
entrevistado/entrevistador. Um problema central da própria construção da História é o do tratamento das fontes, problemática que perpassa igualmente os documentos orais. Enquanto fontes, sejam
elas escritas, orais, imagéticas ou arqueológicas, os documentos serão sempre interrogados, esquadrinhados, e colocados em questão. A desconfiança é postura própria do historiador, afinal, “as
fontes são sempre opacas”. O dilema de seguridade e de fugacidade dos testemunhos históricos continuará como problema a ser equacionado para a História e sua teoria.
Como instrumental para o ofício do historiador o documento oral tem sido usado, debatido e criadas variantes no seu uso para a História Africana. Não há consenso, e isto é um bom sinal. Se no uso de fontes com suporte de papel, os problemas são infindáveis, o que dizer do uso das tradições orais, para a escrita da História?
As fontes orais, antigas ou atuais, enquanto discursos inscritos no tempo, apresentam-se eivadas de marcas pertencentes ao seu contexto, vieses de discursos, sejam no formato de questões
identitárias ou qualquer outra abordagem político-ideológica.
O texto As Origens do Reino do Kôngo poderá ser um bom ponto de partida para discutir esses e outros temas polêmicos da historiografia angolana hoje. A região de Angola tem sido celebrada como o
local da África subsariana de maior potencial em termos de acervo de arquivos documentais, considerando-se as fontes escritas. E muito desse acervo ainda está por ser
trabalhado pelos historiadores, em especial os estudiosos angolanos. No entanto, em geral, os que têm se dedicado aos estudos com pesquisa primária, para período mais antigo na região da África
Central Ocidental, usam somente os documentos escritos. Esta atitude está longe de ser explicada somente em função do ceticismo da parte de alguns estudiosos ao pensarem serem os documentos orais
difusos, tênues, e por isso, não tão confiáveis. Outras explicações, bem mais complexas, têm levado os pesquisadores dedicados aos períodos mais recuados da história angolana a construírem suas
argumentações e a buscarem as chamadas evidências históricas somente com base nos documentos escritos. Situar a história da História de Angola poderá trazer luz a essa questão. Nas poucas páginas
desta apresentação não tenho pretensão de discorrer sobre as tais complexidades, tarefa que considero ousada para um único pesquisador. Essa é uma análise que requer um grupo de
debate.
Posso, porém, dizer uma palavra chave sobre essas complexidades: o colonial. Palavra essa que remete à herança de uma escrita histórica colonial, de um tempo recente que trouxe e traz idéias que
se repetem, se propagam e ganham espaços como verdades eternas. Sabemos que nomear é ter o poder de criar, classificar e chamar alguma coisa a partir de uma simbolização, e faz
parte de uma relação de dominação.
AS ORIGENS DO REINO do KÔNGO
Rei do Kongo, recebendo em audiência embaixadores. Gravura do século XVIII
O tipo de acervo em formato escrito, existente em grande quantidade, e produzido por estrangeiros, parece ser o cerne da questão da História de Angola. Até hoje a grande maioria de historiadores, por facilidade ou não, trabalha somente com esse material. A consequência tem sido uma escrita moldada pelo colonial, informada pela historiografia produzida naquele período. Considerar de maneira articulada as grandes tendências da história no mundo atual e o seu reflexo nos estudos sobre a região ajuda muito a entender o que acontece na produção historiográfica angolana.
Neste caminho, não se pode esquecer que o acesso fácil a um abundante material escrito (nas bibliotecas e arquivos, principalmente portugueses) permite uma produção mais rápida; o segundo ponto,
mais trágico, os que escrevem/publicam sobre a história da região são maioritamente pesquisadores estrangeiros, o que faz retornar à problemática já sinalizada e con-
sidero o cerne da questão da História de Angola. Um senso crítico perante as fontes foi é tem sido exercício praticado por muitos pesquisadores atuais. A diversidade de perguntas “certas” postas
as fontes também faz parte das tentativas. Nada disso elimina o problema do comprometimento da nossa escrita com as intencionalidades que fazem parte de sua produção. Só os ingênuos acreditam que
seus textos estão fora desse dilema.
Por outro lado, urge a sistematização de um grande acervo com documentos orais ou um inventário, como conclama Batsîkama no final do seu texto. Mas, ao avaliar as evidências históricas os
historiadores não devem esquecer “que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionaram, por meio da
possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si”1
uma história em construção parece ser um lema interessante para a historiografia angolana e o trabalho de Patrício Batsîkama insere-se nesta vertente de novos olhares para antigos temas, novos
ângulos e novas fontes.
Brasília, 14 de julho de 2009