O lugar do Kimbanguismo na Europa
Por ANA PAULA POLL
Resumo
Interpretado pela antropologia clássica, em meados da década de 1950, como um
movimento de resistência ao colonialismo belga, o kimbanguismo tornou-se igreja. O
lendário Reino do Congo dizimado na batalha de Ambuíla, em 1665, e berço de
nascimento do fundador da igreja, Simon Kimbangu é contemporaneamente exaltado
como ‘terra sagrada’. A esperança na reunificação do lendário reino, hoje dividido entre
Angola, República Democrática do Congo e República Popular do Congo é reatualizada
através de ‘hinos inspirados’, sermões do atual líder espiritual da igreja, em
imagens e fotos de divulgação produzidas e utilizadas pelos fiéis durante as cerimônias
religiosas realizadas em Bruxelas, Paris, entre outras capitais européias. A descrição do
antigo reino como ‘terra sagrada’é parte de uma teologia bastante sui generis
compartilhada pelos fiéis. Nela a África aparece como berço da humanidade e, portanto,
o palco de uma cena célebre: a do pecado original. No entanto, na interpretação bíblica
kimbanguista o pecado cometido por Adão, um homem negro, não acarretaria apenas
sua expulsão do paraíso, mas, também a condenação de seus descendentes à danação e a
subjugação frente aqueles que foram criados por Deus mais tarde, a saber, o homem
branco. Essa interpretação poligenista da criação está fundada, sobretudo, na percepção
da feitiçaria como pecado original e, obviamente, na re-apropriação do discurso
racialista introduzido naquela região pelo colonizador.
O profeta Simon Kimbangu e a sua esposa Mwilu
Introdução
O presente ensaio é resultante das inquietações geradas no âmbito da realização do
trabalho de pesquisa, desenvolvido ao longo do ano de 2005. Como objeto de estudo
figurava a Igreja de Jesus Cristo por seu Enviado Especial Simon Kimbangu, ou
simplesmente, igreja kimbanguista. O kimbanguismo tornou-se conhecido nos círculos
acadêmicos após a publicação de “Sociologie de l’Afrique Noire”, na década de 1950.
Analisado por Balandier (1951) como uma espécie de movimento político de resistência
ao colonialismo belga, o kimbanguismo transmutou-se, ao longo do século XX, em
igreja. Uma igreja que sobreviveu ao período colonial e, igualmente aos conflitos pró e
pós-independência. As vicissitudes do kimbanguismo, que chegava ao Brasil de 1992,
tornaram-no objeto de meu interesse antropológico.
Foi após o trabalho etnográfico acerca das cerimônias desta igreja, realizado no
Rio de Janeiro, que parti rumo à Bélgica objetivando a compreensão da rede de
sociabilidade que fora identificada. A escolha do novo local para a realização da
pesquisa não ocorreu, estritamente, em função da relação colonial envolvendo a Bélgica
na história do kimbanguismo, mas, sobretudo, porque deste país, provinha à maior parte
do material fonográfico digitalizado que circulava entre os kimbanguistas que viviam na
capital carioca. Deste modo, a Bélgica tornou-se meu destino. Os DVDs e CDs
produzidos no coração da Europa ocidental divulgavam os ‘hinos inspirados’ contendo
antigas e novas profecias atribuídas à Simon Kimbangu, o ‘enviado especial’, aos seus
filhos e, mais recentemente, ao seu neto, Simon Kimbangu Kiangani, atual líder
espiritual da igreja. Arquivos de imagem, alguns disponíveis no site da EJCSK
na
internet, também continham interpretações teatrais acerca da teologia kimbanguista.
As
encenações proféticas ora representavam o passado, ora apontavam o devir desta igreja,
de seus fiéis e dos negros em geral.
A partir da circulação desse material e das mensagens veiculadas através deles era
possível observar a rede de apoio mútuo que os kimbanguistas residentes na Europa,
especialmente em Bruxelas, teciam, bem como, os conflitos produzidos no interior da
igreja. Mas, sobretudo, era possível identificar a atualidade da EJCSK(1) naquele contexto
tão distinto do cenário onde o kimbanguismo emergiu. E através da análise dos fatores
que contribuíram para sua continuidade, pretendi elaborar uma compreensão acerca da
atualidade dessa igreja, dos sermões e, sobretudo, da interpretação bíblica disseminada
entre os kimbanguistas que entrevistei em Bruxelas e em Saint-Denis.
Assim sendo, trata-se aqui de explorar o kimbanguismo contemporâneo, e
contribuir para compreender a construção de uma identidade que emerge, sobretudo, a
partir do lugar que o congo ocupa no imaginário dos kimbanguistas residentes na
Europa. Esse estudo nos remete ao passado, bem como, assinala para o presente. Do
colonialismo (dos séculos XIX e XX) ao mundo pós-colonial, do antigo Reino do Congo, dizimado na batalha de Ambuíla, em 1665, até Nkamba(2) (na atual República
Democrática do Congo) e à contemporânea Europa ocidental, esses recortes espaciais e
temporais podem ser analisados para além da descontinuidade que também representam.
Proponho aqui esse exercício.
África: O Berço da Humanidade, A Terra Prometida
Durante a pesquisa de campo foram inúmeros os relatos que apresentavam a
África como berço da humanidade. Entre os depoimentos destacavam-se: a reapropriação
do antigo testamento para indicar com certa precisão a localização da terra
prometida, o Congo
, e a correlação entre essa narrativa bíblica e as constatações da
paleontologia acerca da origem do Homo Sapiens ter se dado no continente africano.
Esses foram o resultado do agrupamento dos discursos (após algumas alterações quanto
à forma). Eles foram construídos a partir da análise de outras variações pouco
substanciais que compuseram a narrativa dos meus informantes.
A descrição da África como berço da humanidade não era obtida apenas em
entrevistas ao longo do desenvolvimento da pesquisa, ela também compunha uma parte
central da cerimônia religiosa realizada habitualmente aos domingos. Nessa ocasião,
invariavelmente, três fiéis ajoelhavam-se próximos ao púlpito representando: Angola,
Congo-Brazzaville
e Congo-Kinshasa.Essa representação era física, marcada pela presença dos três indivíduos7 perfilados de joelhos, mas, sobretudo, observava-se na composição daquela cena uma esperança projetada
para o futuro, um vir a ser que não
parecia representar ruptura com o passado, como veremos, pois está ligado a ele para que se cumpram as mudanças desejadas.
Os fiéis ajoelhados recitavam preces rogando para que o sofrimento das pessoas,
daqueles países, fosse dirimido, para que o sofrimento em todo continente africano
encontrasse seu fim e, esperavam a reunificação daqueles Estados num único: o Congo.
Essa reunificação representava o cumprimento de uma profecia e com ela, o fim do
sofrimento do homem negro!’, dizia uma das preces. Essa exclamação não era
reveladora apenas das idiossincrasias de um fiel ajoelhado frente ao púlpito, se tratava
de uma narrativa recorrente durante esse momento ritual, bem como, na descrição
acerca das expectativas daquela igreja para o futuro e, nos cânticos, chamados de ‘hinos
inspirados’, revelados aos fiéis através da inspiração divina, geralmente em situações
rituais.
Kimbangu não era apenas o anunciador da ‘boa nova’, segui-lo, assim como, aos
seus ensinamentos seria uma forma de abreviar a redenção aguardada por todo um
continente. Falava-se da salvação da alma dos indivíduos, mas, sobretudo, do fim do
sofrimento de todos os negros, seja no continente africano ou alhures.
Exclamações como aquela, acima transcrita, representavam, portanto, um recurso
discursivo capaz de explicar a manutenção da fé em Simon Kimbangu como salvador do homem negro, em geral e dos bacongo, em particular. Esse ritual que dá
centralidade ao Congo reunificado é fielmente repetido nas cerimônias dominicais da
igreja de Kimbangu – em Bruxelas e em Saint Denis –, ele torna vívida a história do
reino dizimado por brasileiros e angolistas, como descreve Alencastro (2000), e destaca,
simultaneamente, seu devir: o renascimento, através da reunificação dos países que no
passado compunham seu território.
Essa ligação do kimbanguismo com o passado glorioso de um reino africano
também foi destacada por outros pesquisadores que objetivaram compreender a
transmutação de um movimento religioso em igreja e as razões de sua abrangência,
principalmente, no ex-Congo belga pré e pós-independência. Em geral, tal ligação foi
tratada como evidência de uma manifestação religiosa bacongo. Essa análise que
remonta aos primórdios do kimbanguismo como campo de investigação antropológica e
sociológica, apresenta certas limitações depois de algumas décadas.
Limitações provocadas menos pela passagem do tempo, e mais, em função do movimento diaspórico experimentado pelo continente africano pós-colonial. Na Europa contemporânea a centralidade do discurso pró-bacongo teria sido sublimada pela construção do que Gampiot (2005) chamou de ‘identidade social positiva para os negros’. Para o autor de « Kimbanguisme et L’identité Noire », a construção de uma identidade social positiva não é resultante da simples réplica do discurso negro face ao discurso branco, mas, de uma auto-identificação baseada na crítica ao status minoritário do homem negro no mundo, o que entre outros fatores explica sua continuidade e vigor.
(1)- Abreviação de Igreja de Jesus Cristo pelo seu enviado especial Simon Kombangu.
(2)- Aldeia natal do profeta Simon Kimbangu, situada perto de Mbanza-Ngungu, na via de Kinshasa-Matadi.
OBS: Trabalho apresentado na 27a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil, sob o título : O lugar do Congo na Europa.