Por Filipe Zau (Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais).
Após ter sido estabelecida a ligação entre a Europa e o Oriente através do Oceano Atlântico com a chegada a Calecut, em 1498, de Vasco da Gama e Bartolomeu Dias ficou, pela primeira vez, descoberto o Caminho Marítimo para a Índia, ao tempo do rei D. Manuel, de cognome "O Venturoso".
D. Manuel ascendeu inesperadamente ao trono, sucedendo ao seu primo direito e cunhado, o rei D. João II, que havia perdido o seu filho herdeiro num acidente, o príncipe Afonso de Portugal, quando
cavalgava. Não conseguindo obter a legitimação de um outro filho seu, D. Jorge de Lencastre, este bastardo, morreu sem deixar herdeiros legítimos ao trono. Foi ainda no reinado de D. Manuel, que,
na sequência das iniciadas explorações marítimas levadas a cabo pelos seus antecessores, que os navegadores ao seu serviço chegaram à Índia, ao Brasil e às ambicionadas “ilhas das especiarias” –
as ilhas Molucas – tendo sido ainda o primeiro monarca a assumir o título de “Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”.
Mbemba-a-Nzinga (1509-1540), baptizado com o nome de Afonso, deve o seu nome cristão ao filho herdeiro de D. João II – o príncipe D. Afonso de Portugal – tal como seu pai, o manicongo
Nzinga-a-Nkuvo, por similaridade foi baptizado com o mesmo nome cristão do seu homólogo, o monarca português D. João II. Porém, foi após o descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia e na
sequência do lucro crescente com a venda de escravos, que, a ambição desmedida dos comerciantes portugueses levou a que o proselitismo religioso passasse para segundo plano, a coroa portuguesa
começasse a desinteressar-se pelo Congo e as relações entre os dois reinos começassem a perder o fervor dos primeiros tempos. Eram frequentes as queixas apresentadas pelo rei do Congo, ao monarca
português, mas elas começaram a ser linearmente ignoradas, desde que, em 1495, D. Manuel sucedeu a D. João II.
Antes da publicação do “Regimento Simão da Silva”, em 1512, os religiosos de Santo Inácio de Loyola – António de Santa Cruz e Diogo de Santa Maria –, mal haviam chegado ao reino do Congo, em
1508, solicitaram de imediato o seu regresso a Portugal. Desta forma evitavam presenciar os excessos praticados pelos seus colegas missionários, envolvidos em situações nada dignas para o
exercício do sacerdócio: “o Padre Aleixo ‘moreo de nojo’ pelo que via. Outros escolheram a Pêro Fernandes por seu ‘mayorall’ e ‘em tam se apartaram todos cada hum em sua casa e tomaram certos
moços que cada huum emsynava’, ‘começaram todos a tratar em comprar e vemder’, e, vendo o rei do Congo ‘o seu devasamento {lhes rogou} per amor de nosso senhor Jesus Christo que se comprasem
allgumas peças que fosem esprivos e que nom comprasem nenhuma molher por nam darem máo exempro nem {o} fazerem ficar em mentyra com {sua} gente do que lhe {tinham} pregado e sem embargo disto
começaram a ençher as casas de putas em tall maneira que o Padre Pêro Fernandes emprenhou huma molher em sua casa e pario huum mulato’”. Este é um extracto da Carta de 5 de Outubro de 1514, de D.
Afonso rei do Congo a el-rei D. Manuel.
Numa outra carta dirigida, a 6 de Julho de 1526, ao monarca português D. João III, afirmava Mbemba-a-Nzinga, que existiam muitos mercadores em todas as partes do seu reino e que só provocavam
ruína e devastação. Todos os dias escravizavam e raptavam pessoas, incluindo nobres e membros da própria família real. Afonso do Congo enfureceu-se tanto, que baniu todo o comércio e ditou uma
ordem de expulsão de todos os brancos, com excepção de professores e missionários. Porém, alguns meses mais tarde, acabou por revogar esta sua ordem.
Vejamos ainda o teor de duas cartas completas do rei do Congo. Em primeiro lugar, uma dirigida a D. Manuel, pedindo licença para comprar um barco (26 de Maio de 1517) e a segunda dirigida a D.
João III, sobre o não cumprimento das instruções régias por parte dos oficiais portugueses (6 de Junho de 1526). Os comentários interpretativos que surgem no decurso de cada uma destas duas
cartas são da autoria do historiador António Luís Ferronha.
Primeira carta
Muito poderoso e muito alto príncipe e Rei meu irmão: depois de beijar as Reais mãos de vossa alteza lhe ofereço saber que já por algumas vezes lhe tenho escrito que tanta necessidade tenho de um
navio [o rei do Congo solicita um navio ao de Portugal para fazer comércio de escravos, o que realça que a escravatura não tem cor, mas faz parte de um tempo e de um processo histórico]
dizendo-lhe tanta mercê me faria em mo deixar comprar: não sei a causa porque vossa alteza o não quer consentir porque não o vejo para outra coisa somente por me parecer que mais inteiramente
poderei com ele ser provido das coisas que cumprem para o serviço de Deus, o que terei em mercê a vossa alteza não haver por mal comprá-lo D. Rodrigo meu sobrinho que leva recado para isso
dando-lhe vossa alteza licença para isso. E caso que não, faça-me mercê de um alvará que em todos os navios que a meu Reino vierem possa meter certas peças sem delas pagar direitos [alternativa à
compra do navio seria exportar escravos sem pagar direitos. Uma nova receita para o Estado do Congo] porque tantas quantas que tenho mandadas de todas vejo mau recado e todas se vão em direitos,
no que me vossa alteza fará mercê. Nosso Senhor acrescente os dias e estado Real de vossa alteza como por mim é desejado, escrita nesta cidade do Congo a vinte e seis dias de Maio. Rui (…) a fez
de mil e quinhentos e dezassete anos. El-Rei D. Afonso. [Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Corpo Cronológico, Part. 1, Maço 21, Doc. 109]
Segunda carta
Senhor. – Em vinte e seis de Julho desta presente era nos chegou recado como um navio do trato de Vossa Alteza era chegado ao nosso porto do Soio, com a qual vinda nos prouve muito, por haver
muitos dias que navio não veio a este nosso reino, para por ele sabermos novas de Vossa Alteza, o que muitas vezes desejamos saber como é razão que seja e isso mesmo pela grande e estreita
necessidade em que estávamos de vinho e farinha para o santo sacramento e disto nos não espantamos tanto porque muitas vezes temos a mesma necessidade. E isto senhor, causa o muito esquecimento
que os oficiais de Vossa Alteza de nós têm, e de nos mandarem visitar com as sobreditas coisas como temos sabido que lhe por Vossa Alteza é mandado e dado em regimento por ser tanto serviço de
Deus e seu como é.
E estando com este contentamento por termos com que os seus ofícios divinos celebrasse o que as nossas gentes é muito necessário para sua confirmação e salvação nos veio outra nova de grande
tristeza e nojo para nós em nos certificarem como a rainha D. Leonor nossa Irmã, era falecida da presente vida o que tanto sentimos e a tanto nojo nos obrigou quando Nosso Senhor é aquele que o
sabe. E não fora pequena mezinha para nossa desconsolação e sentimento o sabermos por Vossa Alteza ante que por outra nenhuma pessoa de seu Reino por ser o estilo dos Reis cristãos e assim passou
do Rei vosso pai, que santa glória haja, Vossa Alteza é certo que fomos feitura sua assim como o somos de Vossa Alteza e temos muita antiga e justa razão chorar e sentir seus falecimentos como
por verdadeiro princípio e fundamento do bem que nos Deus Nosso Senhor tem mostrado. Em o crermos de que suas altezas, que santa glória hajam, tem tanto em crescimento ante Deus quanto foi o bem
e o fruto e que em seu louvor neste Reino deixam fruto, o qual esperamos em sua misericórdia que para sempre seja firme, onde nunca haverá esquecimento para suas almas de contínuo se encomendarem
a Deus, nos sacrifícios e bens que se nestes Reinos fizerem, o qual esquecimento não podemos a Vossa Alteza, o não haver assim por bem e seu serviço pois que o é, mas aos muitos grandes carregos
e cuidados que sobre Vossa Alteza carregam com tais falecimentos e os outros que cada dia lhe acorrem estes seriam a causa de lhe não lembrarem nossas coisas. Senhor: Vossa Alteza saberá como
nosso reino se vai se perder em tanta maneira que nos convém provermos a isso com o remédio necessário, o que causa a muita soltura que vossos feitores e oficiais dão aos homens e mercadores se
virem a este Reino assentar com lojas, mercadorias e coisas muito por nós defesas, as quais se espalham por nossos reinos e senhorios em tanta abundância que muitos vassalos, que tínhamos à nossa
obediência se levantam dela, por terem as coisas em mais abastança que nós, com as quais os antes tínhamos contentes e sujeitos e só nossa vassalagem e jurisdição que é um grande dano assim para
o serviço de Deus como para a segurança e sossego de nossos Reinos e estado [proliferação de comerciantes, denuncia o “rei”, tendo em atenção que destrói o desenvolvimento económico do “reino” e
cria insatisfação popular].
E não havemos este dano por tamanho como é que os ditos mercadores levam cada dia nossos naturais filhos da terra e filhos dos nossos fidalgos e vassalos e nossos parentes [e continua a sua
denúncia, afirmando que os comerciantes de escravos já levam familiares seus, e o que queria era sacerdotes e não comerciantes] porque o ladrões e homens de má consciência os furtam com desejo de
haver assim as coisas e mercadorias desse reino que são desejosos, os furtam e lhos trazem a vender; em tanta maneira Senhor é esta corrupção e devassidade que nossa terra de despovoa toda o que
Vossa Alteza não deve haver por bem nem seu serviço. E por isso evitarmos não temos necessidade destes Reinos mais que de padres e algumas poucas pessoas para ensinarem nas escolas [sacerdotes
para ensinarem] nem menos de nenhumas mercadorias [também denuncia a importação de mercadorias que ao fazerem concorrência com as do Congo criam uma situação conflituosa com o povo] somente vinho
e farinha para o santo sacramento, porque pedimos a Vossa Alteza nos queira ajudar a favorecer neste caso em mandar a seus feitores que não mandem cá mercadores nem mercadorias, porque nossa
vontade é que nestes Reinos não haja trato de escravos nem saída para eles; pelos respeitos sobreditos, outra vez pedimos a Vossa Alteza que o haja assim por bem, pois doutra maneira não podemos
dar remédio a tão manifesto dano Nosso Senhor por sua clemência tenha sempre Vossa Alteza em sua guarda e lhe deixe sempre fazer as coisas de seu santo sacrifício a qual muitas vezes as mãos
beijo. Desta nossa cidade do Congo escrita aos seis dias de Julho. D João Teixeira o fez de mil quinhentos vinte e seis anos. El-Rei D. Afonso.
No verso da carta lê-se o seguinte: “ao muito poderoso e excelente príncipe D. João Rei nosso Irmão”. [Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Corpo Cronológico, Part I, Maç.34, Doc. 94]
J.A