O essencial da doutrina do Kimbanguismo
Por ANA PAULA POLL
Minha investigação aponta para outra conclusão no que diz respeito à
contemporaneidade do kimbanguismo, sobretudo, na Europa, talvez porque
diferentemente do que propôs Gampiot (2005), eu tenha analisado a elaboração da
teologia que vem orientando as práticas e os discursos desses fiéis.
No entanto, é inegável, para ambos, que apesar da sublimação do discurso pró-bacongo
em face da inserção dessa igreja em um novo contexto histórico e político, a
religião kimbanguista acomoda sua recomposição identitária sobre as histórias que
foram contadas acerca do lendário reino do Congo. É, também, inegável que este ganha
projeção e importância no imaginário dos kimbanguistas; inclusive dos que são
descendentes de imigrantes e refugiados. Pois, embora, não tenham nascido em solo
africano, para os kimbanguistas, a África abriga um lugar socialmente construído, o
Congo. A imagem do lendário reino, bem como, a esperança na sua reunificação dá
sentido e organiza práticas sociais e relações concretas entre os kimbanguistas e, entre
eles e o entorno. Assim sendo, posso, seguramente, afirmar que para os kimbanguistas
residentes em Bruxelas, o Congo não é apenas o território dos bacongo, mas, a terra
prometida onde os negros podem buscar e aguardar sua redenção.
A constituição do Congo como berço da humanidade e terra prometida foi
elaborada simultaneamente a construção de uma história (bíblica) comum e,
produziram, portanto, uma identidade compartilhada, um sentimento de pertença a
“família kimbanguista”, termo que ouvi inúmeras vezes durante a pesquisa de campo.
Essa “família kimbanguista” produz uma rede de apoio mútuo que se traduz em
acolhida para novos imigrantes, kimbanguistas vindos da África ou do Brasil, como
observei, e que precisam iniciar suas vidas no velho continente.
Os principais membros da fámília do profeta, são divinizados e venerados.
Essa relação com o continente africano e, particularmente, com o lendário Congo ocupa o imaginário social sob diferentes perspectivas. Por exemplo, quando algum kimbanguista falece na França ou na Bélgica, a família almeja e torna-se uma honraria (para o defunto e seus familiares) realizar o enterro na África, especialmente, no Congo.
E como a memória social age de forma seletiva, também é possível identificar a
centralidade do Congo (no presente) para os kimbanguistas através das narrativas sobre
a história da igreja. Nelas o lendário reino aparece como lugar sagrado. Em minha
pesquisa de campo, sempre que falávamos sobre o surgimento ou a história do
kimbanguismo descrevia-se o episódio de extermínio desse reino. Tal episódio conta
com a presença de uma personagem anunciadora da igreja congolesa, ora em questão,
Béatrice
Kimpa Vita. A profetiza é reverenciada, inclusive no catecismo da EJCSK,
não só como opositora à dissolução do antigo reino, mas, como a anunciadora do
salvador que seria responsável pela reunificação do Congo, prevista para ocorrer séculos
mais tarde, Kimbangu.
Balandier (1992[1965]) em seu estudo sobre a vida no Congo do século XVI ao
XVIII também apresenta a história da jovem heroína congolesa, de família aristocrática,
que lutava pela unidade do território daquele Reino, quase um século após a batalha que
decretou seu fim. O autor descreve sua condenação e morte, fora queimada sob
acusação de heresia, aludindo-a ao papel da heroína francesa, Joana D’arc. E o faz,
sobretudo, porque buscava razões para explicar como se forjara uma unidade política
nos termos que procurava demonstrar ter ocorrido naquele local.
Para além da conexão entre Simon Kimbangu, a história pregressa do antigo
território do Congo e a leitura bíblica da terra prometida como berço da humanidade,
conexão re-atualizada através do ritual descrito acima, destaca-se o papel de Kimbangu
na teologia elaborada durante a consolidação do movimento por ele liderado. Em
princípio apresentado como profeta, sua nomenclatura foi alterada ao longo das últimas
décadas do século XX, agora é chamado “enviado especial”, termo que compõe o
extenso nome oficial da igreja kimbanguista.
Mas, de fato, ele é apresentado pelos fiéis
na capital carioca, em Bruxelas, assim como, em Saint Denis, como o Consolador, o
Espírito Santo, anunciado por João
em texto bíblico.(João
14:16 -18)
A sede da Igreja Kimbanguista em Kamba, no Baixo Congo, RDC.
‘Kimbangu é nosso Deus! Nós os negros’, explicação várias vezes registrada por mim frente à interpelação acerca da natureza de Kimbangu. E seus três filhos, responsáveis pela rotinização do carisma do pai, e fundação da igreja, são descritos como a representação da santíssima trindade. Cada qual a reencarnação de Deus, ora pai, ora filho e, finalmente, Espírito Santo. Durante as últimas décadas do século XX, essa alocação bíblica de Kimbangu e de seus filhos foi negada pelos herdeiros de Simon Kimbangu, embora amplamente divulgada entre os fiéis.
Diangienda Kuntima, filho mais novo, e o que por mais tempo dirigiu a igreja
kimbanguista, atribuiu em publicação intitulada, L’Histoire du Kimbanguisme, o caráter
sagrado de seu pai ao fato dele ser um enviado especial de Deus na terra. Enviado,
segundo Kuntima, para divulgar Sua mensagem e trabalhar em Seu nome. Mas, após a
morte do último herdeiro, e com o subsequente conflito deflagrado pelos netos para a
sucessão da liderança da EJCSK, a explicação que era regra entre os fiéis aparece em
sermões oficiais divulgados no site da igreja. Para além das polêmicas geradas pela
dupla interpretação, em Bruxelas e em Saint Denis não observei nada diferente da
exclamação acima transcrita, “Kimbangu é nosso Deus!”
Para Balandier (1970[1955]) o papel do kimbanguismo na década de 1950 não era
só resultado da dinâmica social provocada pela introdução de uma nova organização
societária caracterizada por elementos estranhos à cosmologia bacongo, mas,
igualmente, pelas características dessa organização social representada naquele
território pela administração colonial belga. E antecedida pela intensa exploração
privada a qual fora submetido aquele território sob o comando do rei Leopoldo, L’État
Independent du Congo foi descrito como um dos episódios mais sangrentos do
colonialismo dos tempos modernos.
Não obstante as mudanças na representação acerca do sagrado que o
kimbanguismo tornava evidente, a proliferação de movimentos semelhantes, ao longo
da primeira metade do século XX, por extensa parte do território compreendido entre o
norte de Angola, o Congo-Brazaville e o Congo-Kinshasa e, igualmente, combatidos
pelas respectivas autoridades coloniais, levou Balandier (1970[1955]) à conclusão de
que tais movimentos de inovação religiosa significavam efetivamente “uma tomada de
consciência” em curso. Análises como essa e, as que se seguiram, objetivavam a
compreensão do kimbanguismo a partir da análise da cosmologia Congo e da fricção
interétnica inegavelmente produzida pelo controle europeu daquele território e mais
tarde, pelas subsequentes décadas de contato direto com as administrações coloniais,
leia-se dominação colonial.
Observei que a própria igreja e os padrões de comportamento que distinguem os
kimbanguistas dos não-fiéis, sejam negros ou brancos, forjaram-se em meio ao diálogo
que os Scholars produziram com líderes e fiéis dessa igreja, ora através do contato
direto no campo de pesquisa, ora com a publicação e, consequente divulgação dos
resultados das mesmas. Mas, faz-se necessário destacar que a teologia kimbanguista e a
abrangência desta teologia entre os bacongo e, mesmo alhures, deveu-se, sobretudo, a
apropriação dos episódios bíblicos contidos no antigo testamento. Episódios que
também ofereciam uma história e memória coletiva aos negros sob o jugo da intensa
dominação colonial. Entre eles a condução dos filhos de Israel da escravidão do Egito à
liberdade na terra prometida, uma caminhada longa e penosa conduzida por Moisés. A
vitória de Davi sobre o gigante, o indestrutível, Golias.
Gampiot (2005) analisou essa apropriação como uma espécie de arma ideológica
necessária ao renascimento identitário, seja como bacongo, seja como homem negro.
Assim o kimbanguismo que atribuía, com as lições de catecismo bíblico ministradas por
Kimbangu, materialidade às passagens bíblicas, através da própria realidade objetiva
dos colonizados, se tornava parte de eventos já sacralizados desde o início do trabalho
missionário de católicos e de protestantes naquela região. Seguindo essa perspectiva, a
leitura kimbanguista da mensagem bíblica foi determinante, sobretudo, no processo de
construção de uma identidade negra. Afinal, não eram só os bacongo a serem
subjugados pelo regime que as potências europeias instauraram naquele território,
outros grupos étnicos também eram afetados pela política colonial praticada em todo
continente.
Mas, a proposta que ensejou minha pesquisa não era compreender como o
kimbanguismo forjou certa unidade em torno da negritude, em oposição ao
administrador colonial branco, como destaca Gapiot (2005). Tratei de compreender
como se exprime essa ‘nova’ religião, mantida num contexto pós-colonial e,
principalmente, bem longe (compreenda-se aqui, plano espacial) do local e das
condições em que emergiu.
O
Profeta Simão Kimbangu, a direita e seus companheiros, prisoneiros do regime colonial Belga.
Mas para compreender a continuidade da fé em Kimbangu como salvador do
homem negro, e particularmente, dos kimbanguistas, eu também precisei fazer o
caminho de volta ao passado para, só então, analisar a centralidade que o antigo
testamento ganhava nas cerimônias contemporâneas. Analisando a apropriação
kimbanguista do antigo testamento, foi possível compreender o lugar do Congo e do
próprio Kimbangu na teologia construída ao longo de quase um século de existência
desse movimento religioso. Assim como, também foi possível compreender que desta
apropriação emergia uma explicação bíblica da diferença, já tão acentuadamente
marcada pelo colonialismo, entre os brancos e os negros.
Essa explicação bíblica da diferença, em função de sua capacidade de produzir
uma compreensão muito particular e elaborada nos termos daqueles que vivenciaram (e
continuam a fazê-lo) as consequências mais nefastas resultantes dessa distinção,
consegue manter todo seu vigor na atualidade. E sua manutenção tem relação direta com
o status minoritário do homem negro no mundo, sobretudo, seu status no atual contexto
europeu. Continente que tem recebido considerável fluxo de imigrantes e refugiados
africanos, principalmente, no período pós-colonial.
A Produção das desigualdades
A construção de uma identidade negra no seio da igreja kimbanguista, uma
‘identidade social positiva’ como insiste Gampiot (2005) teria sido resultante da auto-identificação
produzida a partir da crítica (resultante da apropriação das histórias do
antigo testamento) ao status minoritário conferido ao homem negro. Para Gampiot
(2005), como destaquei acima, não se tratava de uma simples réplica ao discurso de
supremacia branca amplificado em tempos coloniais. A auto-identificação se dava com
a apropriação de passagens retratando a libertação dos judeus do cativeiro, ou a vitória
de Davi sobre Golias, e as mensagens e profecias de Kimbangu apontavam um devir
promissor para os negros, como na bíblia, um devir promissor para os que foram
escravizados e subjugados pelo agigantado (armas, automóveis, sistemas de controle de
pagamento de impostos sobre a produção) administrador colonial.
Contudo, dentre as apropriações do texto bíblico que ouvi nos sermões, nas
preces, nos cânticos e, mesmo, li em publicações de circulação restrita, entre os pastores
e os fiéis, a interpretação ‘sui generis’ da origem da humanidade parece ser o ponto
nevrálgico da teologia kimbanguista e suspeito que seja o fator primordial, dentre
outros, obviamente, a tornar as mensagens, desta igreja, atuais em plena Europa
ocidental.
De acordo com as narrativas kimbanguistas acerca da origem da humanidade,
trata-se de uma gênese poligenista. O homem negro e o homem branco teriam sido
criados por Deus em dois momentos distintos. A primeira criatura humana foi negra e
originária da África, especificamente no território do lendário Congo. Para reforçar a
autenticidade dessa leitura bíblica acerca da localização do primeiro ser humano sobre a
face da terra, meus entrevistados citam artigos de jornais divulgando recentes
conclusões arqueológicas.
A criação do homem branco só ocorreu mais tarde, foi posterior a expulsão do
homem negro do paraíso. Essa expulsão, tradicionalmente explicada no ocidente cristão
pela relação sexual entre Adão e Eva, ganha surpreendente versão quando se trata de
Eva e Adão negros. A expulsão do paraíso fora provocada pela utilização da ‘mauvaise
intelligence’, ou feitiçaria. Um pastor me disse certa vez: “ se Deus nos ordenou:
‘crescei-vos e multiplicai-vos’, como poderia nos castigar por cumprirmos o que nos
ordenou?”. Ele alegou que o primeiro ser humano, invejoso de seu criador almejou Seu
poder e Sua sabedoria, e para alcançá-la estabeleceu acordo com forças maléficas
conquistando, deste modo, mesmo que parcialmente, um poder que deveria ser
prerrogativa do Criador. Expulso do paraíso o homem negro teria amargado por
milênios o castigo por seu pecado. Castigo que se estende aos dias atuais.
Vários episódios históricos contidos no antigo testamento me foram relatados para
demonstrar que o homem negro não se redimira e, ao continuar empregando a feitiçaria,
perpetuava sua maldição ao longo do tempo. O mais surpreendente acerca dessa leitura
tão particular do livro de Gênesis é a distinção ontológica entre os negros e os brancos.
Pois, sobre essa distinção esta baseada a argumentação que explica a diferença entre
eles e, o status minoritário do homem negro no mundo. Trata-se de uma maldição que
não afetou apenas Adão, mas, todos os seus descendentes, e entre eles, não figura: o
homem branco.
Os brancos jamais utilizaram sistematicamente o feitiço, não acreditam na sua
eficiência ou no poder que ele acarreta. Eles não carregam no corpo a herança maldita
de seus antepassados. Diferentemente, objetivando um conhecimento somente acessível
ao Criador, o homem negro havia condenado seus herdeiros na linha sucessória à
danação. Essa é uma interpretação capaz de explicar o status minoritário do homem.
OBS: Trabalho apresentado na 27a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil, sob o título : O lugar do
Congo na Europa.