Metodologia e Pressupostos teoréticos da tradição oral.
Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama
Nesse primeiro volume de “As Origens do reino do Kôngo”, utilizar-se-á o método paremiológico uma vez que a Tradição Oral veicula como a fonte predominante. Por tradição Oral, entenda-se o mito,
na linguagem do levi-Strauss, o provérbio (Vansina), o rito (Heusch), etc. Primeiramente, apresenta-se a tradição em língua original, isto é, em Kikôngo, de maneira a oferecer ao leitor a
oportunidade de um julgamento livre sobre as análises a efectuar. O autor mais citado, repetimo-lo mais uma vez, é o Bispo Jean Cuvelier, o antigo vigário Apostólico da Diocese de Matadi, no seu
interessante trabalho Nkutam’a mvila za makanda mu nsi’a Kôngo, publicado nos Irmãos de tumba. Este trabalho do Jean Cuvelier tem um duplo interesse, além daquilo que evocamos atrás:
Primeiro, a obra exclusivamente editada em Kikôngo ainda não é traduzida. O curioso ainda é o facto de muitos relatos referenciados no livro serem logicamente semelhantes aos relatos do resto dos
Kôngo de
Angola e Congro-Brazzaville) não referenciados pelo Padre. Essas semelhanças remontam até aos Kwanyama,
Segundo, Nkutama mvila makanda foi escrito numa retórica sustentada por dois aspectos: 1) a sacralidade que consiste a evitar adulterar o relato levou os informantes de Cuvelier a cautelar a
infiltração imprópria de outros “elementos exterior” a estrutura nuclear, e o autor recopie estas tradições com conformidade, atribuindo a cada linhagem o seu idioma (talvez sem o saber); 2) a
recolha data antes de luc de Heuch observar que as transformações rápidas de África ameaçam a existência do seu património literária tradicional» (Mythes et rites bantous. Le roi ivre ou
l’origine de l’Etat, Gallimard, Paris, 1972.).
Após a apresentação seguida por vezes de citações, prossegue-se a construção do trama semântico. Isto porque no estado simplista, as tradições são constituídas de MEtAlINGuAGENS, ou linguagens
pouco ordinárias. Nesse ponto desconstrói-se primeiro o relato a fim de compreender as relações semânticas e sintácticas e a função assertiva/directiva enquanto suporte oracional. Com duas ou
três tradições exploradas, integrar-se-á nas análises sintagmáticas/paradigmáticas, uma vez que o significado oracional é o resultado de soma dos significados. Ao verificar o status, notar-se-á
que a “reconstrução”comporta-se como contra-variante da estrutura canónica e, sabendo que os có-
digos mudam, os conteúdos invertem-se (conforme rezam os estruturalistas) na dinâmica expressiva.
A análise de qualquer oração da oralitura necessita antes que lhe seja reconhecida uma estrutura cuja leitura deverá ser metódica. Convém sublinharmos que “cada tipo tem os seus cânones e a sua
presentação formal”. Eis o dos Kôngo: (1) “Mazînga wazînga makânda mawônso…”; (2) “Ne Masaki
masakidi Nsûndi ye Mbâmba”; (3) “Mvimba wavîmbila bankwa mambu”85; (4) “Nene wa Nkûmba, tukumba vwa, ka tukûmba ko diambu”, etc.
Esses quatro “relatos” constituem um tipo de orações com prosódia, embora nem todos a tenham. tratar-se-ia aqui de “relatos factuais” na linguagem de Jan Vansina. O termo “prosódia” que
preferimos não é aqui apenas o que é gramaticalmente correcta, mas essencialmente é a “oração/ versão da tradição que não pode ser alterada” por duas razões principais: (1) explica correctamente
a origem do relato e mantém uma conformidade entre o patrónimo e o seu verbo: Mvîmba é patrónimo, e wavîmbila o seu verbo patronímico inseparável, ou ainda Mazînga é patrónimo enquanto wazînga é
o seu verbo patronímico inelutável. Isto canonicamente é: a→a’; (2) dado que a oração proverbial é metalinguagética, as relações paradigmáticas (a→b/a→b) ou sintagmáticas (a→a’/b→b’) obedecem a
uma “ordem” de fre- quências que levam com elas as possibilidades de alteração formal da oração, sem portanto alterar fundamentalmente o conteúdo: a→b/a→b’: (a→b).
Razão pela qual – em conformidade e tendo em conta a teoria da estrutura social (Nadel) – o luvila Nzînga sequenciou Mvînga tal como reza a tradição: “Mono Mavînga (ma Nzînga) wazîngila mu vumu,
vo ka nkento ko, mwâna yakala”. Pois a prosódia se alastra para sequências que, grosso modo, parecem ser imortalizadas em objectos concretos (ñkisi Nkôndi, por exemplo), ou tornam-se
factos/eventos hidromorfizados (Mvula za zangôlo) ou ainda antropomorfizados (Nsânda Nzôndo).
A esse nível, a tradição completa-se pela cultura material, pela organização social, territorial… mas, também, pelas crenças ou cultura imaterial. é por isso que – como vamos ver dentro do texto
– um provérbio banal junta “seko” (farinha de mandioca) e “maza” (água) para fazer “lûku” (funge de bómbóm) e relaciona-se com Kôngo (Mbânza-Kôngo) que deve ser dirigido por um dos eleitos dos
três “kuku”89. Ou seja, as relações a’→b/ a→b’ estão imortalizadas no comportamento social e na vivência comportamental individual. Pois dizíamos, essas frequências e sequências (que podem ser
frequenciais ou sequenciais) estão presentes na língua, nos ritos e a sua penetrabilidade, em quase todos domínios da actividade humana (Kôngo), permite que toda “tradição” tenha o seu reflexo na
própria inter-
pretação da existência. Baseando por exemplo nas teorias do símbolo de Tzvetan Todor ,estimar-se-á – Levi-Strauss e Luc de Hesch o fizeram também – a cultura material e componentes sociais como
fontes auxiliares e inelutá- veis na sustentação da língua (tradição Oral) como fonte e a sua possível análise. O estruturalismo de Ferdinand De Saussure é diferente do A. Martinet na
linguística; na antropologia social/cultural, Levi-Strauss lança os fundamentos do estruturalismo ortodoxo na sua obra sobre o parentesco e as suas mythologiques. Essa postura já terá sido
relativamente assumida pelo Malinowski que notou a “função pragmática da linguagem”, pintura, escultura, dança…). Com os pragmáticos, as leituras paradigmáticas e sintagmáticas são visíveis não
só na linguagem mas, de modo igual, nos ritos, a funcionalidade da organização social e disposição divisional ou distribuição territorial são possessores da mesma estrutura oracional. É da mesma
linha inicial do Heusch93 que prosseguir-se-á na análi-
se das fontes aqui referenciadas. A única peculiaridade, talvez, seja a aplicação da teoria: a→a’/a→b’ como função da estrutura sustentada pelas relações paradigmáticas e sintagmáticas (Morris,
Pierce, Eco). Exemplo-1:
Eu te odeio
Uma vez que
Trouxeste mágoa
Embora disfarçadamente…
Até o Inferno vomita-te
Mal aparece, o mal invade
Ocultamente as nossas alegrias…
Estão nitidamente expressos nesses versos os sentimentos de ódio, de modo que a primeira frase assume ser o genitivo definicional de todo texto. Mas sintagmaticamente, se devemos ler verticalmente as iniciais, encontramos uma bela frase: Eu tE AMO. De modo igual, os ritos, organização social e territorial constituem uma leitura (vertical auxiliar) na compreensão da tradição Oral. Exemplo-2:
“Nsûndi tufila ntu…
Mbâmba tulambudila malu”
É literalmente respeitado no seu sentido literal. Curioso é ver que Nsûndi passar a ser “o ponto atingido” e Mbâmba “de onde se vêm” (sequência). Essas duas frases passaram a significar
“objectivo atingido”, “conclusão”. uma revisão linguística explicita ainda mais essa lógica. Mas nos ritos dos ancestrais, essa “frase” torna-se o condicionalismo de ordem, evocando os ancestrais
dos países das Origens (descontinuidade) que se resume em (Kôngo-dya-)Mbângala. Porém, compreende-se porque várias linhagens, ao contar sua história das origens, se interessam menos em detalhes
depois de evocar “Nsûndi … Mbâmba…” (ou Mbângala). A morfologia cénica dos especialistas (ngâng’a ñkisi, ngâng’a vutuki, ngâng’a ngômbo, ngâng’a bilôngo, etc.) e o status comportamental do
público misturado
e ordenado realçam explicações adicionais. Pois assim estaria justificada a descontinuidade da tradição Oral: a→b e a←b’. é abominação entre os Kôngo reverter “Nsûndi… Mbâmba…” em “Mbâmba
tulambudila malu, Nsûndi tufila ntu”, embora o sentido não esteja mudado. No entanto essa não-permissividade explica a razão de todo cidadão Kôngo bem-educado responder “Kalûnga” ou “Kôngo”
quando é chamado. Kalûnga é o nome de Deus como fonte da existência, eis porque não se pode responder “Nzâmbi”. “Kôngo”, ou seja “mu nzîla Kôngo” implica que a pessoa que assim responde admite
nunca desvirtuar-se do caminho da “união original” (Kôngo) que se formou consoante “Nsûndi…, Mbâmba…”
Resumidamente, dissemos que entre dois “condicionalismos estruturantes” de natureza diferente (a e b) ao testemunhar um facto, nasce ipso facto, a Oralitura junto das subsequências (a’ e b’) e
são cimentadas através da socialização formal ou informal, instrumentalizada (institucionalizada) ou desprotegida e isso concerne a língua (De Saussure), a cultura (Sapir/Derrida), a sociedade
(Zelling Haris/levis-Strauss): mubati (velha forma) é canonicamente o principal (a), e a nova forma m’bâti (a’) é subsequente. Salienta-se que a→a’ verifica-se também nos ritos: no contexto
histórico Kôngo, rito dos
ancestrais/ñkîsi (a) foi assimilado ao culto de Domingo (a’).
Historicamente: um evento vivido pelos a e b nunca é completamente descrito na total fidelidade, deixando lugar as especulações para as idiomaticidades e sequências de modo que, ainda assim,
sobrevive a sua “essência” além do tempo/espaço dos testemunhos (a e b): quer dizer, os subsequentes a’ e b’ podem alargar a mais gerações posteriores nos espaços diversos (a” e b”) e com isso
parece que em momento algum essa alteração inevitável (dinamismo) poderá tomar lugares intrínsecos na matriz do relato. Em outras palavras, a ou b será sempre generativo de a’ ou b’: (a→a’
ou b→b’) pois não o contrário (a→a’ ou b→b’). No entanto, pela estrutura (composicional) da palavra/rito/sociedade justificar-se-ia: será sempre o pai (a ou b) a transmitir alguma
oralitura/experiência a seu filho (a’ ou b’); os escultores angolanos terão sempre as suas “tradições” (a) presentes nas suas obras realistas/abstractas que aprenderam na escola romana (a’).
Esse facto pode se alargar em cinco ou mais gerações, mas haverá sempre uma larga “convergência” dos subsequentes em relação aos seus diferentes generativos94: essa convergência se define pela
“convencionalidade” e “composicionalidade” que há na língua (sujeito→verbo→complemento ou complemento→sujeito→verbo9), rito9 e organização social97: a’→b e a→b’. a História narrada na tradição
não se desfaz destes.
Extratos do Livro: "As origens do Reino do Kongo* editado por :
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