Por Joaquim Coelho.
Percorrer quilómetros de picadas cheias de obstáculos e matas quase intransponíveis era uma odisseia de gente ousada e determinada a vencer. Todo o norte de Angola estava a recompor-se dos dias de terror daquele Março mal digerido. As tropas iam tomando posições e instalando os soldados em precárias condições de sobrevivência; depois era a insegurança e a incerteza dos reabastecimentos, nos primeiros meses, com sucessivos ataques às colunas e a remoção de abatises esgotavam as forças dos militares. Mas a esperança é mantida à custa de grandes esforços! Batidas na picada para Sanza Pombo; as difíceis missões para o Bungo e Mucaba, Damba e 31 de Janeiro, só podiam ser concluídas com apoio das tropas especiais. Estando os caçadores mais para sul, os pára-quedistas avançavam para norte. Percursos agrestes em ambientes hostis, seguem as terras até ao fim... da picada!
Chegam à Damba onde os espera a desolação duma povoação sitiada e entregue à pilhagem. Mal o sol caía para os lados de Lucunga, os colonos resistentes acomodavam-se nas casas à volta do posto e aprontavam as espingardas junto aos parapeitos das janelas. A Damba era o ponto de recurso para tentar suster os ataques dos facínoras vindos de ex-Congo Belga. Para ali convergiam as populações das fazendas e roças de Quibocolo e das encostas do rio Ladi. Apenas meia dúzia de pára-quedistas, com dois cães de guerra, garantiam o mínimo de segurança contra as investidas dos bandidos da UPA.
O Castanheira atou a trela do seu cão à grade da varanda da casa do chefe de posto, enquanto ajudava o Venâncio na confecção do petisco para o jantar. As duas galinhas apanhadas no meio da sanzala abandonada chegam para os seis pára-quedistas aconchegarem o estômago. O tenente Martins Veríssimo dá as últimas instruções sobre a melhor posição na defesa contra os prováveis ataques. Os ruídos vindos da mata parecem chinfungos misturados com batuque em ritmos malucos. Percebia-se o toque a convocar os bandidos para a última chamada dos cazimbas (fantasmas) que os hão-de imunizar às balas dos brancos.
Enquanto os mabecos não limparem os últimos corpos espalhados em redor da povoação, o cheiro pestilento continuará a incomodar os sobreviventes à chacina do mês passado. Nos morros à volta, os bandidos aproveitam para se recompor dos primeiros embates. Mas a vida dos resistentes tem que ser defendida no reduto avançado da Damba, embora pareça uma missão impossível, as vontades teimam em vencer as dificuldades.
Os rostos sombrios mostram os efeitos dos dias de sono em trânsito; as peles tisnadas e os corpos chupados denunciam o definhar dos ânimos para continuar. Três fazendeiros de Pungo Andongo vieram visitar os familiares quando rebentou a hecatombe e foram apanhados na encruzilhada dos ataques de Março. O Manuel Santos lamenta não ter possibilidade de contactar com os que ficaram longe: “Dois meses nesta incerteza deixam-me o sangue a palpitar... Mas tenho o pressentimento de que tudo estará bem. Pelo menos sabemos que a chacina não chegou a Pungo Andongo. E se chegasse, a velha fortaleza daria um grande fortim para acolher as populações da zona.”
O ganir dos cães mostra um nervosismo que o Venâncio tenta descodificar. De orelhas arrebitadas, fitam as casas da entrada. O primeiro grupo de bandidos entra pela estrada de 31 de Janeiro, brandindo as catanas. O Garcês, agarrado à metralhadora Dreyse, montada no parapeito da janela, com dois movimentos varre todos os turras que vinham na frente, tendo um deles ficado quase cortado pela cintura. Um turbilhão de seres embrutecidos, armados de catanas e canhangulos, investira contra a metralha dos defensores da Damba; muitos fugiram para as redondezas, deixando rastos de sangue em todas as direcções. Os corpos feridos de morte nem tiveram tempo de perceber a dimensão do trágico acontecimento. Meia hora mais tarde, já se respirava fundo, sem que alguém tivesse coragem de comentar o horror da inconcebível brutalidade. Ninguém sabia sequer se nas próximas horas estariam perante uma nova carnificina.
Nos dois dias seguintes os ataques pareciam mais ferozes e a matança deixou várias dezenas de cadáveres espalhados no terreiro de terra pardacenta. A massa pestilenta tornava o ambiente insuportável; a água potável e víveres começavam a escassear. Era imperioso alterar o cenário para melhorar as condições de sobrevivência à peste e à doença que se adivinhava próxima. O tenente Veríssimo procura organizar a defesa local, fazendo batidas nos terrenos circundantes da povoação, como forma de prevenir a surpresa. Impressionante o que os olhos viam: cadáveres com marcas das balas permaneciam no meio do capim e dos arbustos, já inchados e deformados; restos de corpos carcomidos, de onde os mabecos já tinham tirado alguns nacos! Dos comentários sobre a situação aparecem ideias oblíquas, tão desconexas como irreais: tentar enterrar aqueles corpos ou metê-los dentro duma palhota, juntar lenha e chegar o fogo? A noite seguinte adensava o pesadelo encadeado no dia atribulado.
Das conversas em tempo de vigília, apareceu o civil António Rola a falar do relacionamento entre os pretos das fazendas. Salientou que os bacongos do Norte nunca se deram bem com os bailundos do Sul de Angola; que a rivalidade joga em favor dos brancos, porque os bailundos, além de bons trabalhadores, são mais amigos dos brancos e respeitam as suas ordens. Desde os ataques de Março, os bailundos são atacados pelos bacongos que têm feitiço para não morrer com as balas dos brancos; dizem os bailundos que eles perdem essa magia se lhes cortarem a cabeça. O Venâncio, que ouvia as palavras do civil Rola, chama o tenente e dá uma ideia:
- Meu tenente, por que não aproveitamos a deixa do senhor Rola e cortamos meia dúzia de cabeças para espetar em paus à entrada da Damba, a ver se os gajos se assustam?
- Realmente, está na altura de respondermos com acções mais pensadas e com impacto. Temos reagido por causa dos ataques que nos fazem, o que começa a ser perigoso. Os gajos continuam com a iniciativa e nós podemos ficar mais vulneráveis a essa pressão psicológica. Mas eu não me quero meter nisso das cabeças!
Não foram muitas as cabeças que apareceram espetadas nos paus; em três pontos laterais à estrada, as carapinhas ensanguentadas espelhavam a raiva que por ali andava e que levou à cumplicidade de alguns para a concretização daquele acto macabro. Os dias seguintes foram de uma estranha calma e permitiram que se começasse a enterrar os cadáveres que permaneciam nas proximidades do posto de defesa. Mas os corpos dos feridos que morreram por ali davam a dimensão da horrenda embriaguês com que se lançavam no ataque de peito aberto contra as balas. Os sinais dos banquetes das hienas agoniavam o estômago dos mais fortes, e o cheiro pestilento era insuportável, mas começava a dissipar-se.
O Jacinto acendeu a fogueira para espantar os espíritos ruins para a mata. Com o seu gesto inocente nem percebeu que a noite se tornou mais calma e o crepitar das chamas embala os que repousam com dificuldades de serenarem o sono reparador de medos. O clarão inunda as casas vizinhas por onde pode andar a morte escondida. Os relógios perderam o sentido da contagem do tempo que retém as horas longas, longas, das vidas improvisadas na obscuridade das noites tormentosas. Só o Jacinto continua a alimentar a fogueira que consome o ar irrespirável da povoação. Pelo menos, o fascínio das labaredas tem a dupla função de purificar o ar e ajuda a esvaziar a memória aprisionada aos horrores dos primeiros dias da carnificina.
O que parecia prevenir os ataques dos bandidos e criar condições para algum sossego, tornou-se num novo pesadelo para a saúde. Passados dias, as cabeças infestavam o ar com as moscas embriagadas nas porcarias provocadas pela contínua decomposição, sendo visíveis chusmas de bichos nas cavidades dos olhos e dos ouvidos. Num arremesso de raiva e determinação em vencer as adversidades, reuniram-se esforços e a peste foi arrastada para longe do posto. Os resistentes da Damba continuaram a sofrer os efeitos do isolamento, mas não houve mais ataques em massa. Com a chegada do destacamento de tropas do Exército, os pára-quedistas avançaram para outro reduto a precisar de apoio: a povoação de 31 de Janeiro.
Apesar da ferocidade dos ataques terroristas, a população que conseguiu reagrupar-se no posto de 31 de Janeiro, teve a sorte de encontrar um chefe bem organizado, o que facilitou a vida aos que se acolheram à sua volta. O chefe Rodrigo José Baião deu mostras de grande serenidade e foi um óptimo colaborador do tenente pára-quedistas Martins Veríssimo. Tal como na Damba, os ataques frequentes deixavam um rasto de destruição e morte, tornando a vida muito difícil. Os ensinamentos de outras situações semelhantes servem para aperfeiçoar o engenho de sobrevivência, e alguém se lembrou das cabeças dos mortos para quebrar o ímpeto ao inimigo, com evidentes resultados práticos! A pressão sobre a povoação durou várias semanas, mas diminuíram as escaramuças. E alguém comentou: “Por aqui se percebe como é fácil aos agitadores angariar adeptos para as suas hordas assassinas. Sendo pessoas muito ligadas a preconceitos dos feiticeiros, são instruídos para enfrentar as nossas balas, porque não lhes causarão nenhum mal. Depois é vê-los por aí a estrebuchar, feridos de morte. Bem instalado e protegido, o Holden Roberto comanda este bando de facínoras sedentos de sangue. Um dia hão-de perceber que o terrorismo também lhes cai em cima!”
Depois de assegurada a tomada do posto de 31 de Janeiro, foram feitas batidas nas matas do rio Zadi para tentar apanhar os bandoleiros que, de lá, organizavam os ataques e cercavam a povoação. Uma coluna de reabastecimento vinda de Negage, foi atacada e sofreu dois mortos e cinco feridos, sendo os atacantes interceptados pela patrulha de pára-quedistas que batia a zona. Pedido o apoio da Força Aérea, saíram dois aviões de Luanda em seu auxílio e deram protecção aérea até ao Bungo. Os PV2 com bombas certeiras neutralizam o grupo de atacantes.
Ultimamente, as batidas a Sanza Pombo a partir do Negage ou de 31 de Janeiro, feitas por pequenos grupos de pára-quedistas vão assegurando a reposição da ordem nas povoações mais próximas, sem descorar o reconhecimento das estradas, até à instalação de tropas do Exército. Os acessos às lavras também são importantes e devem ser assegurados.
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LOUVORES aos Resistentes:
(Publicado na Ordem de Serviço do BCP21)
“Ministério do Ultramar
- O posto de 31 de Janeiro, num espaço de 6 dias, foi atacado 3 vezes pelos terroristas, em grande massa e usando todas as formas de destruição ao seu alcance. A população chegou a retirar da sede, mas voltou a reocupá-la com grande coragem, sentido de dever e patriotismo. Distinguiu-se particularmente nessas acções o chefe de posto Rodrigo José Baião e o pessoal seu dependente, pelo que o louvo pela coragem, tenacidade e espírito de sacrifício demonstrados. É digno do mesmo louvor o Tenente pára-quedista Manuel Claudino Martins Veríssimo, que, com uma secção de pára-quedistas, demonstrou muito elevadas qualidades militares, o que será comunicado a Sua Exª. o Ministro da Defesa Nacional.”
MADIMBA
Quando entro na mata em silêncio
a memória atenta logo me desperta
a proximidade da morte que desliza
na ribeira ondulante e fico alerta;
o inimigo espia cada movimento
esquivando-se ao golpe de mão
mas ataca sempre à traição.
O medo que nos envolve no vento
parece persistir no espaço da vigília
e até no ar que respirámos...
cada caminhada é uma perícia
dentro da madrugada silenciosa
este penetrar na mata adormecida
numa busca atenta, dolorosa
natureza que esventrámos
para combater os inimigos da paz,
com profunda certeza, sonhámos,
nesta Angola que muito nos apraz.