De todos estes factos e de muitos mais tinham conhecimento o soba Nanga, o soba Kiluango, o Soba de Banza Pete quando,
em 1961, orientaram as suas populações para os ataques na zona da vila da Damba, à povoação do 31 de Janeiro e mandaram colocar as valas que dificultaram o avanço das tropas
portuguesas.
Qualquer deles era iniciado nos poderes que lhes tinham sido conferidos pelos seus antepassados, em especial o Nwa
Maza. Traduz‑se por: beber água, no sentido de “purificação da palavra”, ou melhor, invocação dos espíritos, fonte inspiradora, protectora e
premonitória do sentimento Bakongo. As aldeias dos seus antepassados são denominadas Maza. Ao invocar os espíritos esperam a sua protecção para as suas necessidades derivadas de
conflitos internos ou externos.
Com esta achega muitos leitores compreenderão melhor a insistente invocação do termoMaza proferido pelas hostes da UPA, em
1961. De facto, ao invocarem os seus notáveis antepassados, como escudo invisível, apelavam para que as balas dos brancos os não matassem e, se por acaso tal acontecesse, a ressurreição
estava prometida e próxima...
A actividade de caçador de caça grossa impregnava aspectos fundamentais da cultura Kongo. Ainda em 1992 encontrei sobrevivências
culturais, exal tando o espírito Kongo(Caçador), em canções e complexas práticas mágico venatórias a que tive o privilégio de assistir. Não poucos foram os caçadores que deram
origem a grandes aglomerados populacionais. Para se tornar caçador, ao homem era exigida uma excepcional resistência física, perícia, audácia, obstinação e sangue frio. Por isso os pais
caçadores tinham enorme orgulho quando iniciavam os seus filhos varões na caça aos Txitxis (pequenos roedores que habitam as margens dos rios). Nem todos
os caçadores tinham o mesmo estatuto. Alguns eram denominados Capita, termo que tem origem no personagem “capitão de feitoria”. Quando atingiam esse posto eram considerados os
mais destros. Embora não formassem uma classe distinta, orgulhavam‑se do seu estatuto social, associado a poderes sobrenaturais que fomentavam a adivinhação e magia protectora na caça. Os
amuletos, sacrifícios e preces faziam parte dos seus rituais onde se encontrava integrada a sua arma de caça. Não admira que fossem alvo preferido da cobiça das mais proeminentes mulheres.
Tudo faziam ao insinuarem‑se, durante os batuques, com a finalidade de chamar a atenção do “grande caçador”, esperando com isso conseguir os seus favores sexuais e, consequentemente,
engravidar de tão mítica personagem.
O Kasengo não teria mais de vinte e cinco anos. Na caça usava
uma espingarda caçadeira de origem espanhola de dois canos, dos quais só um funcionava, e assim abatia desde pacaças (búfalos) a galinholas. Andava sempre de calções, mesmo em noites frias.
Sabia que o sussurrar do tecido entre as pernas era facilmente audível pelos animais. Era aquele tipo de pessoa que maravilhava qualquer jovem da minha idade.
A primeira coisa que tive de aprender foi andar a corta mato às escuras. Calçava então sapatilhas, para que os dedos fossem mais
sensíveis ao chão irregular. Lia melhor o chão com os pés. Com os contactos diários, fui aperfeiçoando os meus conhecimentos de Kikongo, tanto na forma falada como na escrita,
tal como os laços tecidos pelas relações de proximidade que me permitiram os fundamentos para aprofundar conhecimentos que, de outra forma, me estariam vedados. Aprendi, por exemplo, ao
passarmos pela árvore Mulemba, como vene randa representante matricêntrica do povo, a reconhecer nela a árvore da vida, onde, debaixo das mais velhas e frondosas, os sobas se
reúnem ainda hoje para decidir das suas questões familiares. As famílias Bakongo têm as suas conversas ao serão, os célebres Mambu, no dizer do Norte
de Angola. É fundamental Saber Ouvir os “Mambu”, válvula de escape tipicamente africana que é a palavra tornada conversa. Faz parte da introdução à cultura Bakongo e de todos os
outros povos Bantu. Trata‑se de discussão debate e negócio. Acontecimentos, decisões e preocupações comunitárias dão azo a longas conversas e acesas discussões. A conversa diminui o
conflito e a discussão dilui a violência.
Com o Kasengo aprendi o significado correcto
de nkisi: “a Voz da Terra, ou melhor, a voz dos antepassados. E como os nkisi passavam a
ser Minkisis. De uma forma coloquial e rápida, será o mesmo que dizer: determinada força vivente de um antepassado possui uma pessoa e esta, uma vez possuída, passa a
ser o “Munkisi”, o intérprete pronto para invocar os antepassados Maza.
Entre os Bakongo, como aliás em toda a África negra, existem peritos que se dedicam a estas actividades: o adivinho, o
curandeiro e o feiticeiro. O Kasengo não sendo nem um curandeiro nem adivinho, e muito menos feiticeiro, conhecia bem as praticas que apelam ao sobrenatural. A partir de 1960, deixei
de o ver. Soube, no princípio de 1961, que tinha ido para o lado de lá da fronteira. Encontrei‑o mais tarde, em 1967, no Mercado fronteiriço de Pangala. Por vezes o único estrangeiro e
branco era eu. Aí conversámos sobre muitos Mambu. Só hoje dou o devido valor ao muito que me ensinou sobre o fenómeno Kindoki. Só hoje sou capaz de compreender
o grito: Maza, Maza e a razão porque fomos separados pela vida.
O termo vernáculo Kindoki não é reproduzido
com fidelidade pelo nosso termo feitiçaria. De facto o termo Kindoki só diz respeito a feitiçaria maléfica ilícita. Geralmente o seu agente é exterior à linhagem da
povoação onde o fenómeno se manifesta. O Kindokisugere noite, sabedoria profunda o que confere àquele que o possui um enorme poder sobre os seres e as coisas. Esse poder
permite modificar e desviar o curso normal do universo Bakongo produzindo a maior angústia, a doença e
perdição...
O mito fundador do kindoki conta que ele, na origem, era bom, ou melhor, era uma
propriedade dos chefes de linhagem. Infelizmente um tratado deu este poder aos mais novos, que o utilizaram para fins ilícitos. Isto faz pensar noutras similitudes em tempos recentes e
noutros continentes.
A possessão demoníaca tem lugar próprio na cultura Kongo. Hoje a profunda
crise económica das famílias faz crescer em flecha um florescente comércio da tradicional superstição ambiente, o Kindoki. As famílias vivem uma tal pressão de
necessidades básicas (às vezes miséria) que não encontram outra explicação para a sua precária situação. Acreditam estar debaixo da influência de forças do maligno que encarnam
nos seus fami liares, levando‑os a serem os agentes de todos os males invasores da família. Uma mulher “esclarecida” e interessada afirmou‑me com uma simplicidade desconcertante:
temos duas personalidades: uma de Deus e outra pérfida que é do Diabo. Se não amar a Deus acabo feiticeira. Depois de quarenta anos de guerra fratricida o Norte de Angola está
potencialmente exaurido do seu melhor capital populacional. Pessoas vítimas de conflitos existem em todo o mundo, mas culpados de feitiçarias são um fenómeno
especificamente Kongolês. Abandonados, votados ao ostracismo, não têm nenhuma expectativa de vida a viver. Deambulam pelas cidades vivendo do roubo e da prostituição. As
mulheres e mesmo crianças, absolutamente abandonadas, vendem o corpo para sobre viver. Não têm como se defender e, extremamente vulneráveis, estão no términus da vida.
Resumindo, estas práticas de ontem e de hoje, embora numa escala muito menor não nos são estranhas. Todos os dias, ao percorrermos
com o olhar os jornais diários nos damos conta deste fenómeno. Os homens e mulheres, que dele vivem, não são estúpidos. São mesmo muito inteligentes e hábeis no seu trabalho. Há os
que enganam intencionalmente. Outros, só para conseguirem mais lucro e publicidade,
implicam‑se em práticas
duvidosas
Foi o Kasengo, volto a repetir, quem me abriu as portas de tão fascinante assunto, embora mais tarde tivesse quem me descobrisse o
fio da meada... O fenómeno kindoki ainda vai durar muitas gerações nesta região africana. Apesar de todos os aspectos positivos mencionados da cultura Kongo, esta
influência maligna é um enorme obstáculo à saúde mental e física das suas populações. A verdade é que a coacção mágica doKindoki faz com que sofram e morram todos os
anos muitos milhares de africanos. África tem necessidade urgente de se ir libertando deste tipo de fenómeno.
José Carlos de Oliveira
Mestre em Ciências Sociaise e Políticas
Antropologia Cultural e Estudos
Africanos.