Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS. (Administrador da Damba 1945-1953).
Caçadas: Prazeres e necessidades.
Antes de ir para Angola já tinha espingarda de caça e a este desporto me dedicava na época própria. Os animais a abater não iam além das lebres, perdizes e coelhos e, acidentalmente, também os pombos bravos.
Quando cheguei à Damba levava na bagagem a minha caçadeira que foi depois constante companheira nas saídas em serviço, e a caça, mais do que mero divertimento, passou a ser fonte indispensável de abastecimento. Carne de vaca era praticamente inexistente, os cabritos raramente podiam ser adquiridos e restavam as galinhas que, apesar de consumidas sob as mais variadas receitas, tornavamse alimento pouco apetecível ao fim de algum tempo. A carne de caça era assim a base essencial das ementas diárias e, como iam variando as espécies abatidas, nunca chegava a haver saturação de um só tipo de sabor. A carne mais apetitosa era a dos pequenos e médios antílopes, consumida sob diversas apresentações, desde os bifes aos assados e das mioleiras às costeletas panadas ou às iscas de fígado. A carne de pacaça (1), dado o seu acentuado sabor a caça bravia, não era tão apetecível, mas fugiam à regra a língua, os miolos e as mãos ou mocotós que, bem preparados, nada ficavam a dever às dos seusparentes domésticos. O cozinheiro, com a sua prática sabedoria, também obtinha da cozedura das mãos uma saborosa sobremesa de geleia.
Os antílopes constituíam a maioria dos animais abatidos e quase sempre em encontros casuais à beira das estradas. Mas quando no frigorífico familiar a carne escasseava, efectuava rápida surtida nocturna pela estrada para o posto de Camatambo. Era rara a vez em que não abatia algum veado (2) presa fácil. Mas também em outras viagens nocturnas, no regresso de visitas de trabalho às fazendas do Huando ou aos sobados do Pete e do Cusso, adregava encontrar algumas pacaças, solitárias ou em manada, , cujo abate não desprezava por fornecerem vultosa quantidade de carne para alimentação de trabalhadores da Administração e também para oferecer aos funcionários, a algumas famílias de comerciantes e também às autoridades que, encandeado pela luz do farolim, constituía tradicionais que viviam perto da vila.
Caçadas programadas e realizadas a pé, com auxílio de pisteiros, eram muito raras. A primeira aconteceu no Huando, poucos dias após a minha chegada à Damba, em viagem de serviço com a administrador Bicúdo Costa. Ambos iamos armados com vetustas carabinas Kropatchek e munidos de cartuchos fabricados há muito e que só de longe em longe deflagravam. A certa altura o pisteiro feznos sinal da presença próxima de pacaças e lá as lobrigámos numa clareira da mata que acompanhava a margem direita do rio Coge. Aproximámonos cautelosamente, o administrador muito à vontade e eu emocionado e com inegável dose de receio perante a iniciação nas lides venatórias potencialmente perigosas. Chegados à distância apropriada, cada um de nós visou a sua pacaça. Obedecendo a sinal previamente combinado, premímos os gatilhos mas os tiros não partiram, porque os obsoletos cartuchos se negaram a deflagrar. O ruido da intromissão de novos cartuchos nas câmaras das espingardas alertou as pacaças que, de imediato, fugiram e se embrenharam na mata, fazendo fracassar a minha primeira caçada africana a sério.
Três anos mais tarde, já como administrador, interino, da circunscrição e quando iniciei a prospecção das possibilidades de desenvolvimento da região do Mucaba, no posto de 31 de Janeiro, que veio a culminar na criação de um mercado e na posterior fundação e uma povoação comercial privilegiada quanto à abundância de manadas de pacaças e entre a população corria a crença da sua invulnerabilidade. Ao conversar com alguns dos sobas sobre o desejo de efectuar caçadas naquela área, eles encolhiam os ombros e diziam que nem valia a pena fazer a experiência, pois as pacaças do Mucaba tinham ndoki (3): eram inatingíveis pelos disparos de qualquer arma, quer das mais aperfeiçoadas carabinas, quer dos seus canhangulos só pelo prazer que essa actividade me proporcionava, como também pela vontade de demonstrar que não era razoável a crença na invulnerabilidade das pacaças. Estava perfeitamente tranquilo quanto ao resultado, pois nessa altura já dispunha de uma boacarabina de calibre 10,75.
Combinei com o soba e com os meus companheiros, o secretário da circunscrição José David Campos, o chefe do posto João Marques Proença e o aspirante Manuel da Silva Barreiros, os pormenores da caçada . Logo na manhã seguinte nos metemos a caminho da zona mais propícia. Andadas poucas centenas de metros, o pisteiro adverte-nos, por sinais, da necessidade de mantermos silêncio e progredirmos com cautela, pois já avistara pequena manada. Apenas o alcançámos logo se tornou bem visível um grupo de quatro pacaças, uma deitada e as outras em pé, a ruminarem tranquilamente a farta refeição matinal. Andados mais alguns passos, chegámos à distância e à posição propícias a boas pontarias. A meu sinal, visámos os animais e desfechámos as carabinas simultaneamente. Por azar, nenhuma das nossas balas atingiu pontos vitais e todas as pacaças fugiram, ficando nós apalermados pelo fracasso inesperado. No soba e nos outros habitantes da sanzala, que a curta distância presenciaram a cena, mantevese e até aumentou a crença referida. Mas a caçada prosseguiu . Vadeado pequeno curso de água e trepada curta encosta, entrámos em zona plana revestida de capim rasteiro e com árvores dispersas, onde logo deparámos com nova manada.. Feita a conveniente aproximação, apoiei a carabina num galho de árvore e com todos os cuidados fiz pontaria à pacaça que me pareceu maior. Desta vez o feitiço não funcionou e o animal foi atingido em sítio que de imediato o prostrou. Houve grande algazarra e algumas dezenas de homens, que a curta distância nos tinham seguido, correram para a pacaça e sobre ela descarregaram os seus canhangulos, ao mesmo tempo que gritavam : "ndoki uela, ndoki uela"(4). Os projecteis expelidos por estas armas pequena mossa fizeram na pele do animal, para além do chamusco de alguns pelos, provocado pelos trapos ardentes que tinham servido de buchas a separar a pólvora dos pedaços de ferro e de pedra usados como projéctil e também a comprimir esta última parte da carga.
Ainda nesse dia abatemos mais algumas pacaças, possibilitando fartote de carne a toda a população. Ainda levámos duas na carrinha, destinando uma ao pessoal do posto de 31 de Janeiro e a outra à gente da Damba.
Mais algumas caçadas às pacaças fizémos no Mucaba, sempre com bons resultados, o que veio consolidar o termo da bem arreigada crença na invulnerabilidade daqueles bovídeos.
(1) - Bovino muito abundante em todo o Norte de Angola, do género Syncerus e da espécie Syncerus
nanus mayi, também conhecida por Bos ( Bubalus ) caffer mayi.
(2) - Antílope de porte médio conhecido em quase toda Angola por golungo e po caio (nkayi) no dialecto
quicongo. O seu nome científico é Tragelaphus ( Tragelaphus ) scriptus.
(3) - Feitiço.
(4) - O feitiço foi-se embora, o feitiço foi-se embora.
Com a colaboração de João Garcia e Artur Méndes.