Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).
AS VISITAS DOS GOVERNADORES GERAIS (1).
De longe em longe, a pacatez da vida na Damba era quebrada por visitas de personalidades de relevo, nomeadamente do governador geral da colónia, do arcebispo de Luanda e dos governadores, primeiro, da província de Luanda e depois, da do Congo.
Lembro me de que durante os oito anos em que estive colocado na circunscrição e, depois, no concelho da Damba, o norte de Angola apenas recebeu as visitas de um dos governadores gerais: o capitão José Agapito da Silva Carvalho. Uma vez em 1947, era eu secretário, e depois, até 1953, por várias vezes.
De uma maneira geral, as visitas dos governadores gerais eram esperadas com certa ansiedade por autoridades e população, pois delas poderia resultar a solução para os problemas da comunidade considerados como mais prementes.
A recepção era, por tradição, feita junto da Administração, com colonos, autoridades tradicionais e funcionários a rodear o administrador, vestindo todos as suas melhores andainas. Em volta, larga representação da população autóctone, homens e mulheres também bem ataviados e acompanhados pelos melhores tocadores de ngoma(31). Não faltavam, igualmente, grupos de crianças do posto escolar e das escolas e catequeses das missões, acompanhados dos respectivos professores ou catequistas.
Só a primeira visita do governador geral Silva Carvalho se revestiu do pendor solene atrás esboçado. Fez se acompanhar de uma comitiva que, além dos secretário e ajudante de campo, integrava também alguns directores de serviços e ainda dois jornalistas do diário lisboeta O SECULO. Um deles, Amadeu de Freitas, era considerado um dos melhores profissionais de então e sobre a sua visita a Angola publicou uma série de reportagens, todas subordinadas à epígrafe SOB OS CÉUS DE ANGOLA. Das que escreveu sobre o Norte de Angola, conservo recorte da n°. 5, em que dá conta das suas impressões sobre o que viu e sentiu na Damba,em confronto com que notara em outras divisões administrativas. Haverá exagero nas frases altamente elogiosas com que descreve a actuação do administrador e do secretário, mas que reflecte o ambiente de paz e de descontracção em que a população vivia, mercê do seu bom relacionamento com as autoridades administrativas, e que assentava, essencialmente, nas medidas implantadas no que tange ao recrutamento de trabalhadores e que, em outro passo, já foram referidas.
Na Damba, como em qualquer outra sede de circunscrição ou concelho, a casa do administrador funcionava como pousada onde eram acolhidas as visitas oficiais e até mesmo alguns particulares. E quem mais arcava com as preocupações e responsabilidades dessa função, imposta pelos condicionalismos locais e até pela tradição, eram as esposas dos funcionários que, com os escassos meios de abastecimento disponíveis, tinham de fazer prodígios de imaginação para oferecerem refeições requintadas aos seus hóspedes. Como na Damba não era vendida carne de bovinos e nem ali chegava, com regularidade, peixe fresco, havia que recorrer apenas aos cabritos, às galinhas e, mais raramente, aos leitões e à carne de caça. As conservas, devidamente disfarçadas, também contribuíam para suprir ou minimizar algumas falhas. E punham as nossas mulheres especial cuidado na confecção e apresentação das sobremesas.
E estou a lembrar me que na referida primeira visita do governador geral Silva Carvalho, ocorreu curioso episódio relacionado com uma das sobremesas. A esposa do administrador Bicúdo Costa quis servir um pudim que considerava como um dos melhores doces do seu vasto receituário, mas, por azar, já em cima da hora do jantar, ao desenformá lo, não conseguiu que mantivesse o aspecto esperado, ficando reduzido a uma massagada inapresentável. Não havia tempo para uma substituição e o problema foi resolvido através do aproveitamento daqueles restos informes em doce de colher, servido em pequenas taças. Foi afinal apreciadíssimo por todos os comensais, e especialmente pelo governador geral que, gulosamente, dele se serviu e repetiu e quis saber o nome daquela maravilha. E a boa da D. Ondina, lembrando se do estratagema usado e não querendo dar conta do fracasso que o motivara, prontamente respondeu: "Chama se aldrabice, senhor governador geral."
Este episódio traz me à memória outros ocorridos em visitas de governadores gerais a outras divisões administrativas e que eram relembrados em todo o Congo.
Vem à cabeça um que teve como protagonistas o altocomissário general Norton de Matos e o velho colono Cid Adão Gonçalves. O caso ocorreu num dos primeiros anos da década de vinte, durante uma visita de Norton de Matos às minas do Bembe.
O Cid Adão Gonçalves era, nessa altura, o proprietário da primeira e única oficina de reparação de automóveis instalada em Luanda e acompanhava o altocomissário como motorista e mecânico apto a resolver qualquer problema que surgisse nas viaturas que transportavam a comitiva. Decorria então o surto de progresso materialque caracterizou a segunda passagem de Norton de Matos pelo governo de Angola.
Progresso material essencialmente traduzido na construção de estradas e pontes e acompanhado de iniciativas que tiveram por alvo a população africana, algumas em prol do seu bemestar e em defesa dos seus direitos. Esta actuação muito positiva não fez esquecer aos africanos mais alfabetizados uma decisão sua tomada anos antes, quando pela primeira vez governou Angola. Quero referirme à sua infeliz iniciativa de limitar a ascensão dos africanos no funcionalismo público aos lugares de primeiros escriturários. Foi um verdadeiro retrocesso, um quebrar de tradição bem arreigada e que mais tarde veio a ser felizmente posta de lado, voltando os angolanos de raça negra a poderem subir em qualquer carreira da administração pública, desde que possuíssem as necessárias habilitações literárias. Na origem daquele erro de Norton de Matos estará, por certo, o entusiasmo que pôs no incremento do povoamento europeu. Queria reservar para os europeus os quadros do funcionalismo que constituíam o esqueleto de toda a administração da colónia e para os africanos os meros quadros de auxiliares.
Mas voltemos ao episódio a que atrás aludi. Estavase na época das chuvas e em certo ponto do percurso tinhase formado no leito da estrada de terra um extenso lamaçal que imobilizou a viatura que transportava o altocomissário. Todos os esforços feitos para a desatascar foram vãos. Alguém foi pedir ajuda à população de uma aldeia próxima e logo acorreu grande número de homens. O Cid Adão tomou o comando da operação, pondo os homens a empurrar em obediência às suas indicações, mas depressa concluiu que eles apenas simulavam esforço e que, assim, o automóvel não sairia da sua posição. Começou a ferver e a pensar que só com uns safanões bem aplicados o caso se resolveria. Mas foise contendo, pois estava na presença do governante que pouco tempo antes tinha promulgado o decreto nº. 100 que proibia terminantemente a aplicação de qualquer castigo corporal à população indígena. Mas a certa altura, já farto de ouvir a lengalenga do « Xinginca »(32) e do « Vai ou não vai, vai, matabissu »(33) que apenas exortava aos fortes empurrões mas não passava disso, pegou numa verdasca que colheu em arbusto próximo e começou a zurzir com ela alguns dos manhosos, ao mesmo tempo que dizia a Norton de Matos : Desculpe, senhor alto-comissário, mas agora tive de revogar o seu decreto nº. 100 e pôr em vigor o meu decreto nº. 101 ! E o carro, de imediato, foi tirado do atoleiro .
Passados anos, já no meu tempo de administrador da Damba, foi publicada uma portaria que fixava as obrigações dos patrões no tocante a alimentação, vestuário e alojamento dos trabalhadores contratados. Entre os géneros de distribuição obrigatória figurava o peixe, quer seco, quer fresco . Ora peixe fresco, naquela época, só chegava aos europeus ou africanos da beiramar, ou então àqueles, mais abastados, que vivessem em terras servidas por caminho de ferro ou por carreiras de aviação.
Pouco tempo após a publicação daquela portaria e numa viagem para Luanda, parei no Toto, onde, desde há anos, o Cid possuía uma fazenda agrícola em que instalara um hotel e uma oficina de reparação de automóveis. Após a instalação no quarto passei à sala das refeições, em edifício separado, e logo o Cid Adão, como de costume, me convidou para a sua mesa. A conversa foi por ele iniciada com comentários à aludida portaria : « Oh senhor administrador e meu caro patrício(34), então que me diz à obrigação de dar peixe fresco aos trabalhadores? Olhe que esta nem lembrava ao diabo ! Mas sabe o que vou fazer ? Já sei que o senhor governador-geral e meu bom amigo comandante Lopes Alves vem visitar o posto do Bembe e que vai passar por aqui. Nesse dia vou pôr alguns trabalhadores junto da pequena charca de rega que ali tenho, com canas de pesca na mão. O governador-geral por certo me vai perguntar o que eles estão a fazer e já tenho a resposta engatilhada : « Olhe senhor governador-geral, estão a ver se apanham peixe para o almoço.»
31 - Ngoma: tambor constituido por um tronco de cone de madeira escavada e com a superfície de percussão constituida por pele bem esticada. Era tocado em todas as festividades.
32 - Empurra.
33 - Corrruptela de mata-bicho, no seu significado de gorjeta.
34 - Tratava-me por patrício por ter nascido perto de Castelo Branco, quando o seu pai trabalhava na construção da ponte sobre o Tejo que, em Vila Velha de Rodão, liga a Beira Baixa ao Alto Alentejo.
Com colaboração de João Garcia e Artur Méndes.