Contactos de Culturas no Congo Português.(36)
CONTACTO DE CULTURAS
NO CONGO PORTUGUES
ACHEGAS PARA O SEU ESTUDO.
Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS. (Administrador da Damba 1945-1953).
INFLUÊNCIA DO PORTUGUÊS NA LINGUA QUICONGO - 2
O quicongo fala-se actualmente numa grande extensão territorial, repartida pela África Equatorial Francesa, Congo Belga e Angola, tendo como eixo transversal o curso do rio Zaire até
Stanley-Pool, pouco mais ou menos, e cujos limites podem ser definidos, grosso modo, pela forma seguinte: a oeste, o oceano Atlântico, entre a foz do Loge e a foz do Ogoué; a norte, os cursos dos
rios Ougué e Lefini, tributário do Zaire, e o próprio Zaire; a leste, a partir da confluência do rio Cugo no Cuango, a área da sua distribuição interna-se muito, a sul do Zaire, chegando a
atingir o Cassai; a sul os cursos dos rios Loge, Cauale e Cugo, no que respeita a Angola; quanto ao Congo Belga, não conseguimos marcar, com relativa aproximação, este limite, desde a confluência
do Cugo até ao Cassai. Numa grande extensão da zona setentrional, sobretudo na parte situada na A. E. F. (gabão e nas regiões do Médio Congo mais afastadas do Zaire), a língua falada não é o
quicongo puro, mas dialetos influenciados por outras línguas bantas, entre elas o Bateke. De resto, em todas as zonas que marginam os outros limites
terrestres há acentuadas influências das línguas vizinhas. Achamos interessante referir um pormenor curioso, pela coincidência que revela, que não vimos ainda assinalado e que o estudo da
distribuição geográfica da língua quicongo nos sugeriu: é que a zona atlântica em que ela é falada corresponde precisamente nos seus limites à faixa marítima ocidental da Bacia Convencional do
Congo, tal como ficou definida no artigo 1º. do Acto Geral da Conferência de Berlim.
A influência da língua portuguesa no quicongo começou a fazer-se sentir logo no final do século XV, não só através dos descobridores e dos missionários como ainda, se bem que em pequena escala,
dos próprios indígenas que para Portugal vieram com Digo Cão no regresso da sua primeira viagem. Quando em 1485 voltaram à sua terra já sabiam falar o português e passaram a ser, por certo,
agentes da sua difusão. Desde aí nunca mais cessou essa influência.
Ao princípio deve ter-se limitado às regiões vizinhas do desembarcadouro da foz do Zaire e de S. salvador, mas pouco a pouco depois começou a irradiar em todos os sentidos. Já por normal processo
de difusão a partir desses centros, já por intermédio das expedições missionárias e comerciais que de S. Salvador partiam. Com o desenvolvimento do tráfico e a criação de feitorias em toda a
costa, a norte e a sul do Zaire, foi estabelecida uma rede de caminhos por onde circulavam as caravanas, abrangendo toda a zona de distribuição do quicongo e tornaram vias de expansão do
português.
Pelo contacto direto nos centros principais, quer missionário quer comercial, e, sobretudo, pela propagação feita á distancia pelas caravanas dos funantes, pumbeiros e aviados que penetravam
pelos sertões dentro, foi-se alargando cada vez mais a influência do português nas línguas locais. E foi tão grande a radicou-se tão profundamente que ainda hoje, decorridos tantos anos após os
últimos contactos diretos, ela se mantém viva mesmo nas regiões mais afastadas da nossa fronteira, como em grandes zonas do Gabão e do Congo Médio (A.E.F.) e em todo o Baixo Congo Belga. O
francês não conseguiu apagar os vestígios que o português deixara bem impressos no quicongo dessas paragens. Muitas dezenas, se não centenas de vocábulos, sem dúvida alguma derivados do
português, foram aceites e adaptados à fonética e à morfologia do quicongo e passaram a fazer parte integrante da língua, mormente nos domínios da vida material, da antroponímia e da vida
religiosa.
Procurámos fazer um apanhado dos vestígios do contacto da cultura portuguesa com os demais povos do Congo no campo da língua, socorrendo-nos da nossa experiência pessoal, derivada de alguns anos
de permanência no concelho da Damba, e da ajuda preciosa do “Dicionnaire Kikongo-Français”, de K. E. laman – Bruxelas, 1936, cujas 1.183 páginas folheámos com minucioso cuidado para expurgarmos,
de cerca de 60.000 vocábulos nelas registados, umas duzentas e tal palavras que consideramos derivadas do português. Dentro destas, K.E. laman apenas atribui a origem portuguesa a oitenta e seis.
Também nos foi muito útil a consulta dos trabalhos de R. Reynard atrás mencionados.
Dos vocábulos com raiz portuguesa encontrados naquele dicionário já conhecíamos a maior parte, por serem comuns a todas as modalidades do quicongo e a alguns dialetos afins, mas outro há cuja
existência desconhecíamos em absoluto, ou por não serem usados no nosso território ou por serem corruptelas dos que introduzimos, devidas ao afastamento da zona do nosso contacto mais
directo.
O que há a salientar é que os vestígios do português cobrem toda a extensão territorial em que o quicongo é falado e que as palavras que nele introduzimos até ao final do século XIX se
enquistaram de tal maneira que continuam a manter-se nos Congo Belga e Francês, após setenta anos de colonização intensa, sem serem substituídas por outras de origem francesa.
Para darmos uma ordem lógica ao trabalho, dividimos os vocábulos que conseguimos reunir, por diversos grupos, segundo um critério de classificação por afinidades. No primeiro grupo incluímos
todos os termos que têm ligação com a vida espiritual e que foram introduzidos pela missionação cristã, separando os que dizem respeito a formas de sincretismo religioso, isto é, à adaptação de
fórmulas ou de símbolos cristãos à religião tradicional; o segundo é dedicado à antroponímia; o terceiro engloba todas as palavras que têm ligação com a vida material e é subdividido em diversas
alíneas respeitantes à agricultura, à habitação, ao vestuário, aos utensílios domésticos, etc.; o quarto grupo refere-se a verbos diversos e um outro a vocábulos não englobáveis nas divisões
anteriores; no sexto arrumámos as palavras que respeitam à ocupação administrativa e sanitária e à instrução, quase todas, portanto, de introdução mais recente; num último grupo reunimos as
designações de diversas nacionalidades europeias e termos afins.
Da análise desta sistematização poemos tirar algumas conclusões interessantes, por nos poderem dar uma visão esquemática do processo de contacto da cultura portuguesa com a dos povos do Congo,
pela diferença existente entre o número das palavras introduzidas nos diversos sectores da vida indígena. O resultado dessa análise servirá como que de espelho do contacto.
Para não pormos os carros adiante dos bois, procuraremos atingir essas conclusões e fazer os comentários que elas nos sugerirem após a transcrição ordenada, e comentada quando necessário, das
palavras portuguesas que foram adotadas e padronizadas pelo quicongo. Para distinguirmos as regiões em que são usados certos vocábulos, servimo-nos das seguintes abreviaturas:
S ………. Congo Português e Sul do Congo Belga
Vi ………. Dialeto vili (Gabão, zona costeira do Congo Médio e parte de Cabinda
M ………. Maiombe
E ……….. Região de Kisantu, no Congo Belga
NE …….. Região a norte de Brazazville
Be …….. Região do Bembe, no Congo Médio (A.E.F.)
As palavras que não são seguidas de nenhuma destas abreviaturas são usadas em toda ou
quase toda a área de distribuição do quicongo.
Continua ( Vida Espiritual)
Em colaboração com Artur Méndes