Contactos de Culturas no Congo Português.(32)
CONTACTO DE CULTURAS
NO CONGO PORTUGUES
ACHEGAS PARA O SEU ESTUDO.
Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS. (Administrador da Damba 1945-1953).
NAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS – 1
Quando da sua chegada ao Zaire, os Portugueses devem ter impressionado grandemente a imaginação dos indígenas. Além da novidade que representava a cor da pele, pela língua e pelo vestuário,
deviam também ser tidos como dotados de um poder extraordinário que lhes permitia construir aqueles grandes barcos que os transportavam e fabricar as estranhas armas que vomitavam fogo e tão
grande estrondo provocavam.
Não nos deve repugnar a aceitação da ideia de que fossem considerados como seres sobrehumanos.
Podemos descortinar mesmo essa crença no seguinte passo de Pigafetta: “ e convivendo os Portugueses com o Senhor de Sonho, que era tio de El-Rei, e muito idoso, que ao tempo demorava no porto de
Praça, que é na foz do rio Zaire, eram eles Portugueses estimados daquele Príncipe e reverenciados quase como Deuses terrenos, vindos do Céu àquelas regiões”
Se formos procurar às concepções espirituais dos Congueses uma explicação para a forma respeitosa e de inteira subordinação com que receberam os Portugueses, podemos talvez encontra-la na
ancestrolatria e na crença da existência de um sistema hierarquizado de forças que comanda o universo e tudo quanto nele existe. Quando no capítulo I, procurámos dar uma pálida ideia das
instituições religiosas tradicionais das gentes do Congo, aludimos, numa nota, à crença de que os espíritos dos antepassados, quando chegam à aldeia dos “bakulu”, são encarnados em corpos
brancos, como o dos albinos. Ao verem aqueles homens brancos, cuja existência por certo ignoravam, não os tomariam, pelo menos nos primeiros tempos, por antepassados que tivessem ressuscitado? E
o seu aparecimento na foz do rio não daria ainda mais consistência a essa crença, por julgarem que após a morte os espíritos “ Wenda ku maza” (vão para a água) e se situa sempre debaixo do leito
de um rio ou no fundo de uma lagoa ou suas imediações?
Não passa de uma hipótese, talvez sem base consistente, que a reflexão sobre as circunstâncias especiais de que revestiu o estabelecimento de prontas, amigáveis e duradouras relações entre
Portugueses e Congueses nos sugeriu.
Quanto ao outro aspecto, ao da crença na força vital, não sendo válida aquela hipótese ou depois de se terem convencido de que, na realidade, os Portugueses não eram seus antepassados
ressuscitados, eles devem ter surgido aos olhos dos Congueses como portadores de uma força hierarquicamente superior à sua, que lhes permitia confeccionar aqueles vistosos e apetecíveis trajos,
construir aqueles sólidos barcos, fabricar aquelas estranhas armas e vencer os mistérios do mar. O padre Placide Tempels define magistralmente o complexo de dependência do negro primitivo perante
o branco, baseando-se na sua teoria das forças: “ Le blanc, phénomène nouveau surgissant dans le monde bantou, ne pouvait être aperçu que suivant les catégories de la philosophie traditionnelle
des Bantous. Le blanc fut donc incorporé dans l’univers des forces, à la place qui lui revenait suivant la logique du système ontologique
bantou. L’habilité technique du blanc les frappait. Le blanc semblait être maître des grandes forces naturelles. Il fallait donc admettre que le blanc était un ainé, une force humaine supérieure
dépassant la force vitale de tout noir”
Nos símbolos da religião dos Portugueses, viam por certo os Congueses feitiços poderosos e, nas suas cerimónias litúrgicas, ritos capazes de reforçar a sua própria força vital, tornando-se
equivalente à daqueles. A própria cerimónia do baptismo, pelo papel que nela desempenha a água, relacionava-se com os muitos ritos de purificação das suas práticas religiosas em que predominavam
as abluções. Por tudo isso, com facilidade se faziam cristãos, seguindo o exemplo do chefe da região do Sonho, na foz do Zaire, primeiro conguês que recebeu o sacramento do baptismo e, com ele, o
nome de D. Manuel e também o de rei Nginga, que passou a chamar-se D. João I.
Os nossos missionários usaram na evangelização do Congo o mesmo método que tinha sido adoptado na Europa, na Idade Média, entre os Bárbaros. A conversão dos chefes dava origem à conversão das
massas.
Sem entrarem convenientemente no conhecimento das verdades da Fé Cristã, sem se aperceberem de que a conversão implicava uma mudança radical no modo de vida tradicional, arrastados pela crença de
que a religião dos Brancos lhes daria feitiços poderosos ou lhes reforçaria a força vital, ou apenas atraídos pela novidade ou por simples espirito de imitação ou de obediência ao rei e aos
chefes, muitos milhares de congueses receberam o baptismo logo nos primeiros tempos da estadia de missionários na Banza Congo (Primitivo nome de S. Salvador. Também tinha o nome de Kongo dia
Ntótila, Congo do Rei (Ntótila era o titulo honorífico do Rei). Passado pouco tempo, ao aperceberem-se de que a nova religião lhes proibia a poliginia, lhes vedava a prática do culto tradicional,
os obrigava à destruição dos seus feitiços e lhes impunha uma regra de conduta que contrariava os seus hábitos mais arraigados, começaram a apostatar e a voltar abertamente aos ritos ancestrais.
O próprio rei D. João lhes deu o exemplo, fazendo até com que a maior parte dos missionários abandonasse a Banza real e se estabelecesse em Banza Nzundi, capital da região de Nsundi, governada
por um dos filhos do rei, o futuro D. Afonso I. Com a morte de D. João, a sucessão foi disputada por dois grupos rivais: os do adeptos de D. Afonso, que constituía a facção cristã, e a dos
tradicionalistas, os que regiam contra a introdução do Cristianismo no Congo e queriam a todo o custo a manutenção dos costumes da terra, chefiado por um outro filho do rei, chamado Panzo. A
sucessão real, que se operava por eleição, feita por alguns chefes, entre os filhos ou sobrinhos do rei e que dava sempre origem a graves disputas, muitas vezes sangrentas, tinha agora mais a
questão religiosa a complicá-la. Depois de uma luta que ensanguentou o Congo, assumiu a chefia do reino o príncipe D. Afonso. Como já referimos, o seu longo reinado foi, em toda a história do
Congo após a descoberta, um período caracterizado por intensa aculturação e difusão do Cristianismo. Um filho deste rei, D. Henrique, ordenou-se em Portugal e veio a
ser o primeiro bispo natural da África Negra. Foi neste reinado que o ensino do português se difundiu mais largamente por meio de escolas espalhadas por todas as regiões e cujo corpo docente era
constituído por alguns portugueses, mas sobretudo por mestres indígenas.
Continua (Reinado de D. Afonso)
Em colaboração de Artur Méndes