Contactos de Culturas no Congo Português.(18)
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Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS. (Administrador da Damba 1945-1953).
O poder dos antepassados manifesta-se na vida material e na espiritual. Eles continuam a fazer parte activa dos clãs; são invisíveis, mas sempre presentes, e seus espíritos encontram-se
permanentemente em comunhão perfeita com os seus descendentes. Os mortos interferem nos actos dos vivos, causando-lhes doenças ou curando-os, isto é, diminuindo ou reforçando a sua força vital,
proporcionando boas ou más colheitas, provocando sonhos agradáveis ou pesadelos.
O culto dos antepassados escalona-se em ordem crescente de importância, desde os chefes de clã e de linhagem recentemente falecidos até aos fundadores remotos desses agrupamentos e mais além
ainda, até aos fundadores da etnia. O mais antigo ascendente é que recebeu a força vital de nzambi e é o mais directo intermediário entre ele e os seus descendentes, tarvés de uma cadeia de
transmissão dessa força, que passa de geração para geração por meio dos chefes das linhagens e dos clãs.
O cesto das relíquias dos antepassados é o elemento material essencial da ancestrolatria , do único culto colectivo obrigatório dos Congueses.
A interligação de vivos e mortos na estrutura do clã, a quase divinização destes e o facto de a prática do respectivo culto caber ao ancião do clã ou da linhagem eram pedras fundamentais da
organização social, que lhe davam coesão e integravam todos os membros dos grupos num todo harmónico, comandando também em grande parte a vida económica, sobretudo no que respeita à terra, à sua
posse e utilização.
Além da crença no Deus Supremo, em Nzambi ou Nzambi Mpngu, e do culto dos antepassados, aparecem-nos na vida espiritual dos Congueses outras manifestações de religiosidade, mas àquelas ligadas e
consubstanciadas na crença do poder (nkixi). Os minkixi ou muquixes, aportuguesando o termo, encerram forças que intervêm benéfica ou maleficamente na vida dos homens, fazendo aumentar ou
diminuir a sua força vital. Havia e há uma imensa variedade de muquixes, cada um com finalidade ou qualidades próprias. Além de individuais u colectivos, os muquixes podem ser ancestrais, legados
de geração para geração, ou feitos por um feiticeiro. A eles se recorre para curar ou provocar doenças, para a obtenção de boas colheitas ou de sucesso na caça e para um sem número de outros
fins.
Quando os indivíduos não conseguem a intervenção desejada dos seus muquixes por outras forças superiores se oporem à sua actuação, recorrem ao “nganga”, na maior parte das vezes um misto de
feiticeiro e de curandeiro, isto é, ao “ shaman”, para nos servirmos do termo genérico adoptado universalmente em estudos de antropologia cultural.
Já atrás vimos o conceito de muquixe. Na sua confecção entram diversos ingredientes, que podem ser de todos os reinos da natureza, mas o elemento primordial é uma argila extraída do leito de um
rio ou do fundo de uma lagoa ou pântano, que, como dissemos, são a residência dos espíritos dos mortos. A força que existe no nhixi foi retirada da água, por meio de argila, por antepassado do
feiticeiro (nganga) que possui, ou por sua própria iniciativa.
Há-os para todos os efeitos: uns proporcionam a fecundidade, quer das mulheres quer da terra, outros favorecem os caçadores e pescadores; há uns que curam doenças e outros que são eficazes contra
os malefícios dos ndoki (Ndoki:individuo maldoso, dotado de força destruidora, que provoca doenças, destruições e toda a casta de desgraças. Pode possuir o dom da ubiquidade, ou transformar-se em
qualquer animal). Há ainda os que ajudam a descobrir e perseguir os ladrões, os que provocam a chuva ou a fazem parar e tantos outros.
Entre os shamans há diversas especializações, quer no aspecto da magia quer no da medicina, sendo todos conhecidos pelo nome de nganga, mas juntando-se a esta designação genérica um outro
correspondente à especialização. Cavazzi aponta mais de vinte.
Todas as formas de religiosidade dos Congueses, quer digam respeito à crença num Deus criador, ao culto dos antepassados ou à magia, estão ligados, segundo a teoria de Tempels aplicável a todos
os bantos, à existência da força vital e à necessidade de a defender ou reforçar perante os ataques de outras forças contra ela desencadeadas, consciente ou inconscientemente.
As concepções espirituais interferem em toda a vida indígena, desde as instituições económicas até à organização social e política, e comandam todas as manifestações.
Desde o nascimento até à morte, em todas as idades e sob todos os aspectos, avida dos Congueses era dominada pela preocupação de reforçar a força vital, o poder, quer individual quer colectivo.
Daí toda a série de práticas religiosas ou mágicas, que acompanham o nascimento, a imposição do nome, as cerimónias peculiares de diversas transições de um status para outro, a preparação e
investidura dos chefes e tantas outras. Dada a índole deste trabalho, não podemos entrar no estudo esmiuçado de todas estas manifestações de religiosidade dos Congueses, pois isso nos levaria à
análise de toda a sua vida, dado toda ela está intimamente ligada às concepções espirituais, formando um todo indivisível.
Propriamente dentro das instituições religiosas, queremos fazer ainda leve referência às seitas secretas tradicionais dos Congueses. De todas se destaca a do Kipaxi, a que já nos aludimos.
Cavazzi descreve algumas das suas características exteriores, fazendo especial menção a alguns ritos obscenos que entram nas cerimónias da iniciação, mas não menciona aquilo que mais interessa,
que é a finalidade da instituição.
A seita secreta do kapaxi, também conhecida por Kimpasi e Kimpasi Kindembo, teve outrora grande expansão e ainda hoje, segundo cremos, influência a vida indígena em algumas regiões do nosso
Congo, sobretudo do Zombo e da Damba, e também de parte do Congo Belga.
A iniciação na seita não tinha época certa. Só em circunstâncias extraordinárias, geralmente em épocas em que aumentava de forma invulgar a mortalidade ou diminuíam os nascimentos, por
esterilidade das mulheres ou abundância de abortos, é que ela se realizava. Um chefe de povoação reunia o conselho dos anciãos e consultava o nganga-ngombo, o adivinho que tem como função
principal a descoberta dos ndoki e das causas das doenças e das calamidades. Se ele, de acordo com a sua corporação, desejava que se fizesse um Kipaxi, dizia que o que se estava passando, isto é,
a diminuição do poder do clã pela mortalidade e baixa natalidade, era devido ao relaxamento do culto dos antepassados e sobretudo dos espíritos nkita (espíritos dos antepassados da linhagem dos
que morreram na guerra, como heróis) era necessário fazer uma iniciação na seita.
A ela eram admitidos jovens dos dois sexos, entre os 12 e os 18 anos, em número variável mas representando todas as famílias, em sentido extenso, das aldeias dos arredores. Não eram admitidos
doentes, ladrões incorrigíveis e, em geral, quem tivesse má reputação. O local das cerimónias era sempre escolhido junto de um rio com margens arborizadas, não só para tornar possíveis as
numerosas abluções que entravam no ritual, como ainda por os espíritos nkita, sob cuja influência se encontrava a sita, serem habitantes da água e das florestas.
A direcção do Kipaxi pertencia ao nganga-kipaxi, que tinha diversos auxiliares de ambos os sexos.
De todo o cerimonial da iniciação os ritos principais eram os da simulação da morte e da ressurreição. A morte-nkita, isto é, a cerimónia que desligava os iniciados da sua personalidade anterior,
realizava-se num local onde tivesse existido uma aldeia que fora abandonada após a morte do chefe e se transformara em cemitério do grupo.
Entre a morte e a ressurreição os dias passavam-se em diversas cerimónias, num regime de fome forçada, e os iniciados aprendiam a fórmula de do juramento da sita, que pela vida fora lhes serviria
de senha de reconhecimento perante todos os membros.
A ressurreição realizava-se numa noite de lua nova. Era nessa ocasião que os participantes mudavam de nome, passando a usar o de um velho iniciado que lhes servia de padrinho, por assim dizer.
Passavam a ser pessoas diferentes, toda a sua vida passada antes da morte- nkita deixava de contar. A imposição do novo nome é que completava a transformação, pois o nome, em qualquer
circunstância, é uma das partes integrantes do ser; sem nome a personalidade não seria completa.
À ressurreição e mudança de nome seguia-se um repasto abundante em que eram ingurgitadas grandes quantidades de vinho de palmeira. Começavam depois cânticos obscenos e danças libidinosas, a que
se seguiam excessos sexuais de toda a ordem, desde a cólula até à pederastia, passando pela masturbação.
Entrava-se depois numa nova fase de iniciação em que os candidatos faziam a aprendizagem da linguagem secreta dos cânticos, das recitativas e das danças da sita, adquiriam hábitos
de disciplina e eram industriados na necessidade de guardarem a todo transe os segredos do Kipaxi. Nas horas vagas entregavam-se à caça, à pesca, à colheita de frutos e lagartas e também a
excessos sexuais.
Nalgumas regiões o Kipaxi funcionava também como escola de iniciação de shamans. Durante este período realizavam-se diversas cerimónias em que os iniciados eram revestidos de argila branca para
parecerem espíritos dos mortos (Os espíritos dos bakulu (antepassados) são encarnados, nas aldeias subterrâneas, em corpos brancos, como o dos albinos). Numa delas o nganga-kipaxi e uma das suas
ajudantes, fazendo gestos obscenos e invocando nos seus cânticos os órgãos sexuais masculinos e femininos, celebram os poderes dos nkita em especial no que se refere ao aumento da potência
geradora de iniciados.
O dia da saída era um dia glorioso. Untados de óleo de palma, dirigiam-se em fila para o local do mercado. Os ajudantes do nganga-kipaxi e os velhos iniciados cantavam ao som de tambores. No
mercado reunia-se grande multidão para ver os ressuscitados. Os iniciados iam falando em surdina na língua secreta da seita, que era ininteligível para os profanos, e simulavam não conhecer
ninguém, nem os próprios pais.
No dia seguinte completavam-se os ritos do Kipaxi, entrando nessa cerimónia a instituição de feitiços individuais destinados aos iniciados e que eram constituídos por pequenos sacos de fibra de
palmeira cheios de cinzas de uma grande fogueira em que tinham ardido ramos de diversas árvores ligadas aos espíritos nkita e de uma outra cujo fruto representa o símbolo da virilidade, de argila
branca e vermelha e de outros ingredientes, tudo isto regado com o sangue de uma galinha.
Durante algumas semanas os iniciados ainda se comportavam de forma diferente da do comum da gente da aldeia, podendo tirar comida das casas dos parentes e amigos, sem a sua permissão, pois tudo
lhes era perdoado em virtude de terem morrido e haverem, portanto, esquecido os costumes da terra. Iam cantando em voz de falsete passos dos cânticos aprendidos no Kipaxi e olhavam com desprezo
os mais novos e os da sua idade que não tinham sido iniciados. Uma coisa que não levavam a bem era que os tratassem pelo nome antigo. Algum tempo depois começavam a entrar na vida normal, mas
nunca mais se esqueciam do que haviam aprendido na iniciação, e passavam a formar com os antigos iniciados uam espécie de confraria em que reinava o mais acentuado espírito de camaradagem.
A instituição do Kipaxi tinha como finalidade principal obter dos antepassados a transmissão das suas forças procriadoras a fim de aumentar a natalidade e, portanto, o ngbongo-bantu, isto é, a
riqueza em homens.
Aqui se encontra por conseguinte mais uma manifestação da preocupação, já aludida, de reforçar a força vital, tanto dos indivíduos como da colectividade, que comanda a vida dos Bantos. Alongámos
talvez demasiadamente a referência à sita secreta do Kipaxi, mas fizemo-lo deliberadamente por termos a impressão de que ela está em estreita ligação com certos movimentos religiosos de tipo
messiânico existentes nos nosss dias e que, apesar da de nascidos no Congo Belga, estendem a sua influência ao nosso Congo e, de uma maneira mais acentuada; às regiões em que esta seita
predominava, isto é, a uma zona que, tendo como eixo longitudinal o curso o rio Nzadi Lukixe ou Nzadi Inkisi, abrange, no nosso Congo, parte dos concelhos do Negage da Damba, do Bembe e do Zombo
e se prologa pelo Congo Belga até ao Zaire.
Continua.
Texto enviado por Artur Méndes