CONTACTO DE CULTURAS
NO CONGO PORTUGUES
ACHEGAS PARA O SEU ESTUDO.
Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS. (Administrador da Damba 1945-1953).
INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS (1)
Os autores que temos arrimado, para tentarmos fazer uma pálida reconstituição da vida dos Congueses antes de entrarem em contacto com a nossa cultura, não nos dão elementos seguros, como já
dissemos, para basearmos o estudo das instituições religiosas. A História do Reino do Congo, da Biblioteca do Vaticano, fornece bem reduzidas informações sobre a matéria, e a Relação de
Pigafetta, além de lhe dedicar apenas escassas linhas, pinta a religião das gentes do Congo de forma absolutamente grosseira e fantástica, sem quaisquer laivos de verdade. Achamos que merece a
pena transcrever de uma e da outra os passos que interessam.
A primeira limita-se a dizer: “ Têm uma grande veneração pelos seus feiticeiros e sacerdotes que dominam Ganga e obedecem-lhes em tudo, como se Deus lho ordenassem. Um dia que eles chamam
“Ensona” (Ensona,ou,melhor Nsona é um dos quatro dias da semana conguesa. .Era, de facto, um dia feriado, dedicado ao culto dos mortos), que se sucede de quatro em quatro dias, é observado por
eles da mesma maneira como os judeus observam o sábado. Não se movem do sítio em que estão até à noite. Não preparam a comida e não comem senão o que ficou preparado da véspera. Quebram todos os
vasos que serviram para esta refeição e enterram-nos. Sepultam os mortos nas montanhas e em lugares frescos e agradáveis a que chamam “infindas” (Mfinda, em quicongo, significa: bosque, floresta
e lugar onde pairam espíritos dos mortos nos primeiros tempos após o falecimento). As crianças e os parentes próximos vão durante longos anos chorar sobre a sua campa em cada lua nova. Depois
destas lamentações deixam ficar vinho e víveres. Eles próprios, em seguida, vão comer e beber até mais não poderem”
Se bem que reduzidas, estas informações são, nos seus traços gerais, absolutamente verdadeiras.
O mesmo não se pode dizer, quanto `veracidade, do que Pigafetta escreveu sobre a religião tradicional, depois de narrar a destruição dos feitiços ordenada pelo rei D. Afonso I: “ E, por certo, se
viram inumeráveis cousas tais, porque, como cada um reverenciava aquilo mais lhe agradava sem regra, nem medida nem razão de espécie alguma, que achou grandíssima quantidade de Demónios de
estranha feição e espantosos. Muitos tinham em devoção Dragões com asas, que cevavam em suas casas privadas, dando-lhes de comer das mais estimadas viandas; outros, serpentes de horrível figura;
outros adoravam os Cabrões maiores, estes, as Onças e outros animais mais monstruosos; e quanto mais estranhos eram e disformes, mais os honravam, certos tinham por veneráveis as imundas aves e
nocturnas, a saber: morcegos, corujas, mochos e semelhantes. Em suma, elegiam por Deuses várias cobras e serpes e bichos e pássaros e ervas e árvores diferentes carântulas de pau e de pedra,
figuras
impressas das cousas sobreditas, assim de pintura, como esculpidas em madeira e em seixo e em outra qualquer matéria. E não somente adoravam os animais vivos, mas também as próprias peles chias
de palha.
“ O acto de adoração se praticava em vários modos, todos endereçados à humildade, como seria: ajoelharem-se, deitarem-se por terra de bruços, cobrirem a face de pó, fazendo em palavras oração aos
ídolos, e em actos oblações das melhores substâncias que possuíam. Tinham mais os seus feiticeiros, que davam a entender à quelas gentes ignorantes que ídolos
falavam, enganando-as; e, se alguém se lhes encomendava em suas enfermidades e sarava, diziam os feiticeiros haverem os ídolos obrado tal, e, se não, que estavam irados. Isto é em parte o que no
tocante à religião se costumava entre os Moxicongos, antes de receberem a água do Santo Baptismo e o conhecimento do Deus vivo”( Pigafetta – op.cit.pp. 102-103)
Cavazzi é muito mais objectivo na descrição das manifestações da vida religiosa, se bem que não possamos tirar ilações que permitam entrar com segurança no perfeito entendimento das concepções
espirituais dos Congueses. Tal não podemos estranhar se nos lembrarmos de que ainda hoje essas concepções não estão perfeitamente estudadas, não só em relação a este grupo étnico como a todos os
primitivos. Já se realizou muito trabalho, já se aventaram muitas hipóteses e algumas teorias foram construídas, mas supomos que ainda estamos longe de atingir conclusões definitivas. É que o
primitivo fecha-se e torna-se reticente se procuramos aprofundar o estudo das suas crenças tradicionais. Só depois de se conquistar entre eles uma confiança bem alicerçada, que não se consegue em
pouco tempo, se pode ir entrando a pouco e pouco no conhecimento das suas ideias e das suas práticas religiosas. Mas, mesmo assim, muito fica por entender, ou porque algo é ocultado ou ainda e
sobretudo porque o nosso espírito, carregado de preconceitos e mal preparado para compreender o pensamento do primitivo, está sujeito a fazer interpretações erróneas que podem levar a falsas
conclusões.
Queremos no entanto destacar o livro do padre Placide Tempels, “La Philosophie Bantowe”, que muito nos tem ajudado a ordenar os minguados conhecimentos que trmos sobre esta matéria. É possível
que estudos feitos entre bantos de outras regiões venham a alterar em alguns aspectos, mais no pormenor do que no fundo, as conclusões do padre Tempels, mas temos a impressão de que a sua obra,
talvez a primeira tentativa séria de interpretação do pensamento daqueles indígenas, permanecerá como pedra basilar de tudo quanto no futuro se venha a escrever sobre ele. No que vamos dizer
sobre instituições religiosas dos Congueses, aquele livro será muleta em que com frequência nos apoiaremos.
Mas voltemos a Cavazzi. Em três capítulos do livro I da sua “Descrizione” se encontra matéria avonde sobre concepções e práticas religiosas. São os III e V, que tratam, respectivamente, de ritos
e ministros do culto, juramentos e superstições, e usos fúnebres e manifestações de luto.
Se é certo que as suas observações e descrições não são suficientes para nos darem uma visão precisa, são no entanto superiores, de longe, às contidas nas outras duas obras citadas. Cavazzi foi
um cuidadoso observador da vida indígena e o seu livro é um valioso repositório de informações de carácter etnográfico. Falhou muitas vezes, certamente, na interpretação do que observou, mas, ao
notarmos esses defeitos na sua obra, devemos atender à época em que foi escrita e ter também em mente o que ainda hoje se passa, decorridos trezentos anos, com grande número de autores, apesar do
progresso que tem sido imprimido aos estudos de antropologia cultural. Infelizmente não é livro muito conhecido em Portugal, mas como a sua edição em português deve aparecer ainda no corrente
ano, em Luanda, é de esperar que em breve comece a despertar a atenção dos especialistas, que nele encontrarão abundantes materiais de estudo, nomeadamente no tocante à evolução dos costumes dos
povos a que se refere.
Do texto daqueles três capítulos ressaltam os traços fundamentais da religião dos Congueses: a crença num Deus Supremo, o culto dos antepassados, a intervenção de feitiços (minkixi) encarnando
espíritos, a existência de “shamans” (nganga) a magia e toda uma série de superstições. Nem falta nele a menção pormenorizada da seita secreta do Kipaxi, uma das instituições mais importantes de
parte da zona habitada pelos bacongo, a actualmente ocupada pelos concelhos da Damba e do Zombo.
Encabeçando todo o sistema religioso tradicionais dos indígenas do Congo, encontra-se a ideia de um Deus Supremo que, no seu dialecto, é designado por “Nzambi” ou “Nzambi Mpungu”. ´E um ser
imaterial, invisível, a que não atribuem qualquer forma. É um Deus todo-poderoso que criou tudo quanto existe. É um Deus inacessível a quem não se rende qualquer culto directo. Está tão acima dos
homens, a sua grandeza é tal, que não digna ocupar-se directamente da pobre humanidade. Não se lhe oferecem sacrifícios porque de nada necessita, não se glorifica porque encerra em si a sua
própria glória. Invocam o seu nome em certas circunstâncias, mas talvez sem carácter de prece. Dele diz Cavazzi: “ Dogma fondamentale dell’ idolatria locale è questo: Nzambiapungú, nome
attribuito alla divinitá,è uno in sè stesso e molto grande; egli solo merita ossequio, non l’esercito di dei infiori che gli pullulano attorno in numero sterminato ognuno com li suo nome. Di
qusti si fanno rozze imagini di legno e si crede ognuno
di essi deputato a far scomparire una determinta malattia”
Deste passo ressalta a concepção monoteísta da divindade, a sua grandeza e a inexistência de qualquer imagem que a represente.
Aponta a existência de incontáveis deuses secundários que pululam em redor do Deus Uno Supremo, representados por grosseiras imagens de madeira e tendo cada um deles o poder de curar uma
determinada doença. Há aqui um dos erros a que nos referimos e que era corrente antes e depois da época em que Cavazzi viveu e se mantém ainda nos nossos dias, mesmo entre pessoas com certas
responsabilidades. Essas imagens, quer antropomórficas quer zoomórficas, e toda a longa série de outros feitiços (nkixi,pl.minkixi em quicongo), das mais variadas formas, não representam deuses
secundários. O nkixi não é mais do que um objecto artificial no qual existe um espirito dotado de uma força que é posta em acção pela intervenção de um homem.
O culto dos mortos, e, sobretudo, dos antepassados, é que verdadeiramente dominava e domina a vida religiosa dos Congueses. Os mortos são mais respeitados do que a própria divindade, porque os
seus espíritos dominam os vivos e influem em todos os sectores da vida, quer benéfica quer maleficamente. Daí a necessidade de lhes dirigirem preces e de lhes oferecerem sacrifícios, quer de
agradecimento quer propiciatórios ou ainda de aplacação, sempre que a cargo do ancião do clã ou da linhagem, o “nganga-bakulu”, que traduziremos, ainda que impropriamente, por sacerdote dos
antepassados. É ele o responsável pela conservação das relíquias dos antepassados, conservadas num cesto juntamente com diversos materiais de origem animal, vegetal ou mineral. A ancestrolatria
manifesta-se ainda nas
diversas cerimónias que se realizam antes, durante e depois dos funerais e nos ritos que têm lugar algum tempo após a morte. Para os habitantes do nosso Congo, o homem é composto por quatro
partes distintas: o corpo (nitu), o bafo, sinal aparente da vida (mwanda), a sombra (niinga) e o ser em si próprio, imortal, cujo nome indígena não podemos precisar ao certo. Tempels designa-o
por “muntu”. Em quicongo muntu quer dizer homem, pessoa, mas não sabemos se também se aplica à parte do homem que após a morte continua a viver a sua vida além-túmulo.
Após a morte, só o nitu, transformado em “mvumbi” (cadáver), é enterrado e todos os outros elementos o abandonam. A mwanda e a niinga desaparecem, evolam-se, e a outra parte espiritual, o muntu
de Tempels, onde reside ou que é em si própria a força vital, continua a viver e wenda ku maza, vai para a água. De entre estes espíritos há que considerar diversas espécies, uns benéficos e
outros malignos, como o matebo, os biximbi e alguns mais. Os primeiros, que são aqueles que na Terra levavam uma vida honesta, que sempre cumpriram as leis impostas por Nzambi e pelo costume, vão
para as aldeias bakulu, dos antepassados do clã, que são subterrâneas e situadas debaixo do leito dos rios ou do fundo das lagoas, ou suas imediações, e onde há abundancia de tudo aquilo que o
Conguês mais aprecia: mulheres, caça, vinho de palma, dinheiro e tecidos. Cavazzi refere-se a essa crença numa vida feliz além- túmulo: “Il concetto della morte quale vige tra i Negri non è in
sostanza come di cosa paurosa, imaginandosi que eesa apre la via ad un’altra vita di mille laidezze senza la noia del lavoro e
degli stenti”
Continua...
Texto senviado por Artur Méndes