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21 Mar

A conversão e a catolização do Rei do Congo.

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #História do Reino do Kongo

 

 

  Por Ronaldo de Vainfas  e Marina de Mello e Sousa


 

D. João II enviou Diogo Cão, no ano de 1485, em mais uma expedição marítima que foi dar no estuário do rio Zaire. Instruídos para estabelecer contatos pacíficos e acompanhados de intérpretes conhecedores de línguas africanas, os enviados do rei português tomaram conhecimento da cidade real no interior do continente e para lá enviaram emissários. Como estes demorassem a voltar, retidos na corte congolesa pela curiosidade que despertou o que contavam, os navios portugueses, recusando-se a esperar, zarparam sem eles, levando alguns reféns. Em Portugal esses foram tratados como amigos e aprenderam um pouco dos hábitos, da religião e da língua do reino. Conforme o prometido, nova expedição trouxe de volta os congoleses capturados, agora “ladinos”, juntamente com uma embaixada e presentes para o mani congo, retorno amplamente festejado.


Disposto a abraçar a fé de Cristo, o mani congo enviou, em 1489, uma embaixada para o rei português, que foi presenteado com tecidos de palmeiras e objetos de marfim, formalizando seu desejo de se converter ao cristianismo e pedindo o envio de clérigos, assim como de artesãos, mestres de pedraria e carpintaria, trabalhadores da terra, burros e pastores. Junto com os pedidos, deixou claro, segundo Rui de Pina, cronista que registrou o evento, seu desejo de que doravante os dois reinos se igualassem nos costumes e na maneira de viver, solicitando que alguns jovens, enviados com a embaixada, fossem instruídos na fala, escrita e leitura latinas, além dos mandamentos da fé católica. E, com efeito, durante todo ano de 1490 os enviados do rei do Congo permaneceram em Portugal, aprendendo o português, os mandamentos da fé católica e os costumes da sociedade portuguesa.


Em dezembro de 1490, nova expedição foi enviada ao Congo, a qual, em março de 1491, chegou à foz do rio Zaire, por eles chamado de rio do Padrão por  lá ter sido colocado um padrão indicador de que o rei de Portugal havia sido o descobridor daquelas terras, em nome do seu reino e de Cristo. A província de Nsoyo (Sonho ou Sono nos relatos portugueses), na qual se encontrava a foz do rio Zaire, era governada por um irmão da mãe do rei do Congo, o mais respeitado dentre os chefes provinciais. Ao receber os portugueses, o chefe local mandou que todos viessem recepcionar os enviados do rei de Portugal. Rui de Pina nos deixou um detalhado relato desses primeiros contatos entre portugueses e congoleses, aludindo aos festejos e reverências com que foram recebidos os portugueses e à pompa do mani Nsoyo, que veio trazendo carapuça na cabeça com uma serpente “mui bem lavrada d’agulha”. Registra o cronista - e isto se reveste de máxima importância -, que as “mulheres dos fidalgos” locais se fartaram de saudar os estrangeiros, dizendo que seus maridos haviam de fazer o melhor de si para o serviço del Rei de Portugal, “a que eles chamavam Zampem-Apongo, que antr’eles quer dizer Senhor do Mundo.


Ao olhos dos congoleses, o rei português passava, pois, a ser assimilado a Zambem-apongo, divindade suprema dos povos banto, senhor que reinava no mundo dos mortos, pois, vale dizer, a festa era também para João da Silva, congolês batizado e embaixador do rei do Congo morto na viagem. Senhor do Mundo, porque senhor dos mortos, o Zambem-apongo dos congoleses foi entendido pelos observadores portugueses como sendo o rei de Portugal, D.João II especificamente. Doravante, e por muito tempo, portugueses e congoleses passariam a traduzir noções alheias para sua própria cultura a partir de analogias que permitiam supor estarem tratando das mesmas coisas quando na verdade sistemas culturais distintos permaneciam fundamentalmente inalterados.


No dia seguinte a essa confraternização, o chefe congolês, provavelmente associando as coisas extraordinárias trazidas pelos lusitanos à sua linguagem cultural, pediu para ser batizado sem mais demora. Assim foi erigida uma igreja de madeira, devidadamente paramentada com os objetos trazidos de Portugal para nela realizar o batismo do mani Nsoyo. Conta-nos Rui de Pina que, apesar de outros nobres expressarem o desejo de serem batizados, o mani Nsoyo só permitiu que ele e seu filho mais velho o fossem antes do rei do Congo, primazia que sua destacada posição permitia, não permitindo aos “fidalgos de sua Casa” que sequer entrassem na igreja. O mani Nsoyo recebeu o nome de Manuel, tal qual o irmão da rainha de Portugal, e seu filho chamou-se Antonio, inaugurando um padrão analógico que regeria os primeiros tempos das relações entre os dois povos. Nessa altura, a narrativa de Rui de Pina deixa bastante clara a relação imediatamente percebida pelos congoleses entre fé e poder. O batismo foi reservado aos maiores do reino, numa certa ordem de hierarquias. Principalmente não podia ser usufruído antes de que o rei o recebesse, fato percebido pelo mani Nsoyo que respondeu negativamente aos nobres que pediram para também serem batizados, justificando o seu próprio batismo antes do Mani Congo por ser tio do rei e mais velho que ele. Após a cerimônia do batismo, seguiram-se festejos, os padres acompanharam o mani Nsoyo até sua casa em procissão com cruz erguida, discursaram contra as idolatrias e superstições e Manuel mandou que todos os ídolos e templos fossem destruídos. Rezas e missas sucederam-se antes que seguisse a expedição para a capital real, dispondo de 200 homens cedidos por Manuel para carregarem os presentes e carga, além dos que levavam os mantimentos e garantiam a segurança. Demorariam 23 dias para chegar à corte, sendo recepcionados no caminho pelos chefes locais.


Ao se aproximar de Mbanza Congo, a expedição foi recebida por um membro da família real que levou presentes para o embaixador. O cronista descreve a recepção da embaixada lusitana pelo rei congolês, usando terminologia familiar aos europeus e que pareciam aos observadores aplicáveis à realidade com que se deparavam pela primeira vez. Assim, o Mani Congo e os chefes que o cercavam foram imediatamente identificados como o rei e sua corte; os nobres congoleses associados aos fidalgos portugueses e os cargos administrativos e honoríficos foram chamados pelos equivalentes europeus.


Conforme as descrições do evento, o Rei ordenou que todos os fidalgos e toda a sua Corte saíssem com arcos, lanças, trombas, timbales e muitos outros instrumentos que eles usavam, e quando os cristãos adentraram a capital, foram recebidos com grandes estrondos e logo hospedados em umas “casas grandes honradas e novas” providas em tudo do que pera eles compria. E chegaram ante El- Rei “que estava em um terreiro de seus paços”, acompanhado de grande multidão e posto em um estrado rico ao seu modo, nu da cinta pera cima, com uma carapuça de pano de palma lavrada e muito alta, posta na cabeça, ao ombro um rabo de cavalo guarnecido de prata, da cinta para baixo coberto com uns panos de damasco presentados por El-Rei de Portugal e no braço esquerdo um bracelete de marfim.


180px-Jean_Roy_de_Congo-copie-1.jpg                                           O primeiro Rei do Congo convertido:  João I

 

           

Enquanto isso as pessoas festejavam, levantando as mãos em direção ao mar e gritando em louvor a deus e ao rei lusitano, ou pelo menos assim o entenderam aqueles que deixaram registro do dia. Foram iniciados os trabalhos de construção de uma igreja, que seria consagrada à Virgem Maria e demoraria um ano para ser levantada. Enquanto isso os clérigos iam falar ao rei sobre as “maravilhosas obras de Deus, para que, com sua agradável conversação, o conduzissem ainda mais à fé de Cristo”8. Este não mais quis esperar pelas maravilhas do batismo e pediu para ser batizado imediatamente, no que foi atendido. Preparou-se um cômodo, de uma casa escolhida, ergueram-se altares, acenderam-se tochas e velas, prepararam-se bacias cheias d’água, e aí o mani Congo foi batizado, tomando o nome do rei de Portugal e os outros fidalgos, nomes de fidalgos da “Casa d’El-Rei de Portugal”, seguindo na linha analógica predominante desde o começo das relações entre os dois povos.


O embaixador português foi, enfim, fartamente presenteado e deixou no Congo quatro clérigos, os ornamentos da igreja usados nos cultos e “um negro que conhecia as duas línguas e que, igualmente, era experimentado nas letras de uma e da outra língua, negro que começou a ensinar a muitos fidalgos e a seus filhos e a muitos homens honrados e virtuosos.


Idealmente a igreja deveria servir de posto avançado no percurso da expansão portuguesa. O retorno da expedição lusitana seguiu com uma embaixada do mani  Congo agradecendo os presentes e favores recebidos, comunicando seu batismo e intenção de multiplicar os conversos (para o que pedia mais padres), oferecendo-se como súdito em troca do apoio militar recebido e finalmente expressando sua intenção de enviar um embaixador diretamente a Roma, a modo de prestar obediência ao chefe maior da Igreja, mas deixando claro que devia a sua fé à ação do rei de Portugal. E, com efeito, entrevendo boas possibilidades de comércio com o reino do Congo e da expansão do catolicismo - as duas faces inseparáveis da expansão ultramarina lusitana -, Portugal iniciou então uma intensa relação comercial com o reino do Mani Congo capitaneada pela difusão da fé cristã.

 

Morto D.João I do Congo, e após uma luta sucessória e fratricida na qual não faltaram tentativas, da parte de algumas facções nobres, em remover o cristianismo de que haviam sido excluídos, ascendeu ao trono D.Afonso I, o mais importante rei da história luso-congolesa, chefe político e espiritual da catolização do reino do Congo. Isto porque, na verdade, seu pai, D.João I, não obstante convertido, logo abandonaria o cristianismo, pressionado por setores da nobreza que não aceitavam a nova religião. Para eles, ela não se mostrou eficaz contra os infortúnios que então assolavam o reino. Além disso, o rei e os nobres resistiam a aceitar a monogamia imposta pelos padres, um dos temas mais polêmicos na aceitação da nova religião, uma vez que a extensão da rede de solidariedades tecida pelos casamentos era peça fundamental nas relações de poder tradicionais.


Com a morte de João I e a deflagração da luta sucessória, subiu ao trono um outro filho seu que não seguia os preceitos do cristianismo, apoiado pelos nobres defensores das tradições congolesas. Mas Afonso conquistou o trono depois de lutas com seu irmão e reinou por trinta e sete anos, de 1506 a 1543, sendo as bases do cristianismo no Congo estabelecidas em seu reinado. Era profundamente dedicado ao catolicismo, impressionando os missionários com o seu saber e com a sua dedicação aos estudos10. Seu filho Henrique chegou a ser consagrado bispo (1518- 1531), o que não foi visto com bons olhos pelo clero e pela coroa portuguesa, pois dessa forma diminuía o controle exercido pelo Estado por meio do monopólio da religião.


Mas não foi apenas o cristianismo que floresceu sob o reinado de Afonso I. Antes de tudo, D.Afonso promoveu um autêntico “aportuguesamento” das instituições políticas do reino, em consonância com D.Manuel, rei de Portugal, que a isto o estimulou. Assim, a justiça do Estado passou a se guiar pela normas portuguesas, a partir da embaixada de Simão da Silva, portador do Regimento de 1512, e os antigos chefes de linhagem das províncias passaram a intitular-de de condes, marqueses, duques. Trata-se de matéria riquíssima que não temos condições de desenvolver aqui, mas vale o registro de que, sob a inspiração política e institucional portuguesa, o Estado congolês foi perdendo as características tradicionais de confederação ou chefatura pluritribal para assumir, ainda que no plano das instituições e da etiqueta política, aspectos da monarquia ocidental, centralizando-se mais nitidamente - traço que sobreviveria ao reinado de Afonso I, perdurando até o século XVIII, não obstante as dilacerantes crises políticas que o reino atravessou no século XVII.


Por outro lado, Afonso I recebeu grande ajuda dos portugueses para incrementar o comércio de cobre extraído em regiões ao norte do Congo que, trazido para a capital , tornou-se um meio valioso com o qual o rei podia adquirir mercadorias européias. Essas importações e o incremento no comércio, ao aumentar a riqueza do rei, permitiram assegurar a lealdade de nobres importantes, construindo a base de um longo e memorável reinado. Também o comércio de escravos com os portugueses, em fase inicial de implantação, tornou-se monopólio real com redes de comércio que chegavam a São Tomé, o centro de todo tráfico da África ocidental, e até mesmo ao Benin.


Quando o comércio de pessoas fugiu do controle do rei, com mercadores desrespeitando as rotas estabelecidas e o monopólio real, Afonso I escreveu ao rei português reclamando que até mesmo nobres congoleses estavam sendo capturados em guerras interprovinciais para serem vendidos como escravos. O comércio de escravos era antigo naquela região, mas as regras tradicionais estavam sendo violadas. Não apenas prisioneiros de guerra ou pessoas endividadas estavam sendo negociadas, mas as rotas tradicionais, controladas pelos chefes locais, estavam sendo ignoradas em prol de novos caminhos que burlavam o controle real. Tudo isso ameaçava o poder real com a evasão de tributos que lhe seriam devidos pelos privilégios tradicionais e o enriquecimento de chefes e comerciantes abalava as bases de seu poder. Somando-se a isso, a região do Ndongo (futura Angola), começava a atrair o interesse dos comerciantes portugueses que buscavam justamente fugir aos monopólios existentes no Congo, concorrendo com o tráfico de escravos controlado pelo rei congolês e pelos comerciantes autorizados pelo rei lusitano.


De todo modo, quando os portugueses chegaram à foz do Zaire, o Congo, assim como outros reinos da região, estava em processo de franca expansão, como os registros de guerras frequentes atestam. A escravização das populações conquistadas permitia aos reis ampliar sua riqueza pessoal assim como fortalecer exércitos e o corpo administrativo composto por dependentes diretos, além de aumentar o volume de tributos recebidos dos territórios ocupados. Assim, a expansão permitia o acúmulo de riqueza e um reforço da centralização política. Quando os portugueses chegaram àquela parte da África, portanto, não só encontraram uma grande população cativa, como as condições necessárias para sustentar um amplo mercado de escravos, no qual havia espaço para os estrangeiros recém-chegados. No caso congolês, o próprio processo de centralização e fortalecimento das cidades frente às aldeias estava baseado na crescente existência de escravos, concentrados principalmente em mbanza Kongo, cujo trabalho era apropriado pelos membros das linhagens nobres que, assim, incrementavam sua riqueza, seu poder, seus sinais de status. Não só no Congo, mas em vários estados da  África centro-ocidental os escravos eram resultado das guerras de expansão, sendo fundamentais na centralização e reforço das lealdades.

 

Afonso I reinou nesse período, e apesar dos problemas que seu reinado enfrentou, expandiu as fronteiras do reino, fortaleceu a centralização do poder real, desenvolveu a capital, disseminou o cristianismo e a educação formal, valorizando sobremodo a leitura e a escrita. Não seria exagero ver em seu reinado, sobretudo do ponto de vista religioso e político-institucional, o processo que Serge Gruzinski chamou de ocidentalização, estudando o México na mesma época. Lembrado até hoje como o mais poderoso rei da história do Congo, Afonso I, esse defensor implacável da fé cristã, assemelha-se em muitos aspectos ao ideal de rei missionário e cruzado, rei que combate os infiéis com a ajuda de forças divinas, amplia e consolida as fronteiras da cristandade. As bases do catolicismo congolês fincaram raízes profundas no seu reinado, que se prolongou até quase meados do século XVI. Catolicismo que, não obstante, foi incapaz de remover por completo as tradições religiosas locais, do que resultou um complexo religioso original, híbrido, a um só tempo católico e banto.

 

 


Obra publicada sob o título: Catolização e poder no tempo do tráfico: Reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII.

 


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