Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII
Por Ronaldo de Vainfas e Marina de Mello e Sousa
Introdução
Um dos maiores problemas da historiografia brasileira acerca da escravidão é seu relativo desconhecimento da história e cultura africanas. Desconhecimento injustificável que, no limite, implica considerar o africano apenas em função da escravidão, reificando-o, e tanto mais grave quanto é hoje a história cultural campo dos mais frequentados pela pesquisa historiográfica no Brasil.
É verdade que, talvez, nos últimos vinte anos, este quadro lacunoso tem dado sinais de mudança, bastando citar, sem a preocupação de esgotar o assunto, os trabalhos de João Reis sobre a revolta dos malês na Bahia1, o de Manolo Florentino sobre o tráfico atlântico2, ou o de Robert Slenes sobre a formação de uma “etnia proto-banto” no sudeste brasileiro oitocentista3. Há, porém, muito ainda por fazer nesta área de estudos.
A história do reino do Congo certamente tem muitas lições a dar, quer para os interessados no estudo da África, quer para os estudiosos da escravidão e da cultura negra na diáspora colonial. Afinal, a região do Congo-Angola foi daquelas que mais forneceu africanos para o Brasil, especialmente para o sudeste, posição assumida no século XVII e consolidada na virada do século XVIII para o XIX.
Muito se escreveu, no âmbito da bibliografia etnológica e antropólógica, sobre a importância das religiosidades banto na chamada cultura afro-brasileira e bastaria isto para estimular investigações mais sistemáticas sobre a história da região. Mas a história do Congo revela, no entanto, aspectos surpreendentes e não muito conhecidos de nossos historiadores, embora sejam bem estudados por estudiosos estrangeiros, especialmente belgas e norte-americanos e, em menor escala, franceses e portugueses. Referimo-nos ao extraordinário processo de catolização levado a cabo no Congo, a partir de fins do século XV, e ao “aportuguesamento” de suas instituições sociais e de governo, a partir de inícios do século XVI, processos que não implicaram, porém, muito pelo contrário, o aniquilamento das tradições bakongo ali vigentes. Referimo-nos, em especial, à constituição da monarquia congolesa em moldes lusitanos, réplica da portuguesa, e às complexas relações entre esta e o Estado português, o que, sem dúvida, tem a ver com os interesses do tráfico atlântico.
De todo modo, a famosa “festa de coroação de Reis Congo”, difundida no Brasil ao longo do século XIX, é a ponta do iceberg de uma história que só se pode esclarecer com o deslocamento no espaço e no tempo. Deslocamento rumo à África, ao antigo reino do manicongo, e retorno ao século XV, século da conversão do primeiro soberano congolês ao catolicismo.
Congo descoberto
Quando Diogo Cão chegou à foz do rio Zaire em 1483 e contactou pela primeira vez o mani Nsoyo, chefe da localidade na qual aportara, o Congo era um reino forte e estruturado, cuja chefia máxima cabia ao Mani Congo. Formado por grupos de etnia banto, especialmente os bakongo, abrangia grande extensão da África Centro-Ocidental e se compunha de diversas províncias. Algumas delas, como as de Nsoyo, Mbata, Wandu e Nkusu, eram administradas por membros de uma nobreza local que assumiam os cargos de chefia há gerações, sendo o controle político mantido por uma mesma linhagem, enraizada no local. Outras províncias eram administradas por chefes escolhidos pelo rei dentre a nobreza que o cercava na capital.
A unidade do reino era mantida a partir do controle exercido pelo Mani Congo, cercado por linhagens nobres que teciam alianças principalmente por meio do casamento, mas era também fortalecida pelas relações comerciais e políticas entre as diversas regiões. O centro de poder localizava-se na capital, mbanza Kongo, de onde o rei administrava a confederação juntamente com um grupo de nobres que formavam o conselho real, composto provavelmente por 12 membros, divididos em grupos com diferentes atribuições: secretários reais, coletores de impostos, oficiais militares, juízes e empregados pessoais. A centralização político-administrativa, ao mesmo tempo que conferia estabilidade ao sistema, ensejava intensas e frequentes disputas pelo poder.
A formação do reino parece datar do final do século XIV, a partir da expansão de um núcleo localizado a noroeste de mbanza Kongo. Os mitos de origem registrados no século XVII referem-se à conquista do território por um grupo de estrangeiros, chefiados por Nimi a Lukeni, que teria subjugado as aldeias da região do Congo e imposto a sua soberania pela supremacia guerreira. Nos séculos XVI e XVII, após o contato com os portugueses, o direito do rei coletar impostos e tributos estaria ideologicamente fundamentado na conquista efetivada pelos antepassados das linhagens governantes, o que nem sempre era aceito pacificamente.
A divisão fundamental na sociedade congolesa era entre as cidades - mbanza - e as comunidades de aldeia - lubata. A tradição representava esta divisão como entre povos que vieram de fora e os nativos, submetidos àqueles. Os estrangeiros seriam os membros da nobreza, os habitantes da capital, os governantes das províncias indicados pelo rei, isto é, os que ocupavam as posições superiores do reino. A lubata era dominada pela mbanza, que podia requisitar parte do excedente aldeão. Os chefes de aldeia - nkuluntu - faziam a ligação entre os setores, recebendo o excedente agrícola e repassando parte deste para os representantes das cidades, reconhecidos como superiores políticos. Nas comunidades rurais, a apropriação do excedente era justificada pelo poder de mediação com o sobrenatural do kitomi, ou pelo privilégio do mais velho, o nkuluntu. Como nelas a produção supria apenas as necessidades básicas, não havia um acúmulo de bens que permitisse sinais exteriores de status para os chefes. Enquanto nas aldeias os chefes não tinham controle sobre a produção, baseada na estrutura familiar e na divisão sexual do trabalho, nas cidades eram os nobres - as linhagens governantes - que controlavam a produção, fruto do trabalho escravo no cultivo de terras controladas pela nobreza. As diferenças básicas que distinguiam as cidades das aldeias eram a maior concentração da população e a administração da produção por parte da nobreza, que se apropriava de parte do trabalho escravo.
De todo modo, as características da escravidão existente no Congo confirmam a tipologia elaborada por João Reis em artigo sobre a África pré-colonial 4. No reino do Congo havia, de um lado, a escravidão doméstica ou de linhagem, na qual o cativeiro era resultante de sanções sociais ou mesmo da captura em guerras, integrando-se o escravo à linhagem do senhor. Cativeiro em que se destacavam as escravas concubinas, que geravam filhos para o clã masculino, ao contrário dos casamentos entre linhagens, nos quais os filhos ficavam ligados à família da mãe (mastrilinearidade). Mas ao lado da escravidão de linhagem, mais amena e mitigada, existia o que João Reis chamou de escravidão ampliada ou escravismo propriamente dito: um tipo de escravidão comercial ligada à produção agrícola ou à exploração de minas, a qual seria consideravelmente estimulada e desviada para o Atlântico após o contato com os portugueses.
São Salvador, nome atribuído a mbanza Kongo após a conversão dos reis congoleses ao cristianismo em 1491, chegou a ter cerca de 60.000 habitantes no século XVII, sendo que de 9 a 12.000 desses não estavam diretamente engajados na produção. Desde antes do contato com os portugueses, até meados do século XVII, a capital foi um ímã que unia as diferentes linhagens nobres, e a base da solidez do Congo, pois mesmo quando eram travadas lutas sucessórias entre as chefias, tudo se
diferentes linhagens sempre preferiam aderir ao grupo que no momento dominasse a política da capital, a tentar a separação.
Quando os portugueses chegaram ao Congo, encontraram ali grandes mercados regionais, nos quais produtos específicos a certas áreas como sal, metais, tecidos e derivados de animais eram trocados por outros, e um sistema monetário, no qual conchas chamadas nzimbu, coletadas na região da ilha de Luanda, serviam de unidade básica. O estreitamento das relações com os portugueses intensificou o comércio regional e o internacional e aumentou a importância dos comerciantes, muitos deles não congoleses. O Congo não era uma nação voltada para o comércio, exercido em grande parte pelos naturais de Loango, e posteriormente controlado pelos portugueses de São Tomé e de Angola e pelos holandeses. Mas eram o comércio, principalmente de escravos, e o controle das minas, sempre aquém das expectativas, os principais interesses dos portugueses no Congo quando ali chegou Diogo Cão.