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07 Sep

Provérbio como Tradição (Oralitura)

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #História do Reino do Kongo

 

 

 

Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama


 

Batsikama

 

 

 

“Ao estudo da descrição, da classificação, da etimologia e da pragmática dos provérbios dá-se o nome de paremeologia, palavra derivada de parêmia, sinónima de provérbio, tal como se admite que o são: adágio, aforismo, apotegma, ditado, dito, exemplo, máxima, rifão, sentença. Embora haja algumas diferenças, mais ou menos acentuadas, entre todos estes conceitos, elas não têm sido enfatizadas pelos autores que os antologiaram nem pelos escritores que nas suas obras a eles recorreram, pelo que se torna particularmente difícil distingui-los entre si, tanto mais que, na maioria dos casos, não há também da parte dos autores qualquer identificação das fontes utilizadas ou das formas importadas”.


Exemplo: “Quem dá ao pobre, empresta a Deus” é um provérbio muito comum entre os cristãos. Mas confunde-se com “Quem empresta ao pobre empresta, adeus!”. Marcio Gatti chama isso “provérbio parodiado”. Terá esses dois provérbios a mesma “trama semântica”? Ao que dever-se-á essa “mudança”, se assim é realmente uma mudança? Qual das versões seria anterior e qual seria o princípio regente e regular dessa mudança?


Antes de fazer face a essas perguntas, convém começar por definir “oralitura”. Admite-se que o forjador do termo terá sido o professor (linguista) Pio Zirimu. Ele fala de “orature” em francês, o que seria “oratura”
em português. Para o professor e segundo o uso actual, o termo significa “literatura moderna oriunda da tradição oral, nomeadamente contos, advinhas, provérbios, etc. que os escritores modernos se inspiram”. Ngugi wa thiongo sustenta que além dessa definição, a oratura é tida como “fonte estética”, como filosofia, mas também como método. Nessa linha, Joaquim Dias Cordeiro da Matta, Heli Chatelain são assinalados como autores mais destacados no século XIX74 que, de certo modo, terão dado corpo a “oratura”, mas é curioso notar que os contos (publicados em línguas angolanas) continham mais substância histórica do que simples estética ou filosofia. Evidente é a “carga filosófica” dum evento memorizado75 e purificado pelos séculos da sua duração: a sua estética só pode encantar-nos hoje
em dia. O mesmo acontece quando recuamos dois ou três séculos antes, com as recolhas dos Padres missionários e outros autores que vinham em África central para o comercio e outros afins76. é o caso das recolhas dos padres capuchinhos que irão compor o velho dicionário das línguas ditas bantus (kikôngo-italiano). Nota-se que a oratura de Ngugi thiongo, independentemente das frequentes transformações, se subsidiam na História vivida. é bom assinalar que l. Souberge qualificou a frase «Quem são os teus avós…», como advinha, provérbio. Ora, como se viu, a sua substância histórica parece realmente profunda. Por essa razão, far-se-á aqui uso da expressão oralitura, em vez de oratura.


Pois agora, começamos por responder as perguntas iniciais. Encetamos por considerar todo “enunciado proverbial como dispositivo de verdades”. Consideramos a metrificação de dois provérbios termos: 1)
“Quem dá ao pobre empresta a Deus” (quem-dá-ao-po-bre-em-pres-ta-a-Deus/ dó-mi-dó-sol-fá-mi-mi-fá-mi-dó); 2) “Quem dá ao pobre empresta, adeus!” (quem-dá-ao-po-bre-em-prés-ta-a-deus/dó-mi-dó-sol-fá-mi-mi-fá-mi-dó).


A materialidade discursiva desse enunciado é mais rítmica do que semântico. Mas a sua contextualidade desconhece a importância melódica. Perante esta dualidade pragmática/definicional, “a estrutura proverbial evidencia o movimento que marca continuamente a aproximação e o afastamento do locutor em relação ao nível de responsabilidade pelo dizer, o que caracteriza formalmente uma dualidade entre os enunciadores individual e colectivo. Na nossa opinião, essa dualidade está afectada por um simulacro de continuidade entre individual e colectivo. é como se o pensamento do Eu, tornando-se comum ao pensamento da Colectividade, de uma pretensa totalidade, fosse elevado a um patamar maior de “razão”, de “verdade”.


Realçamos, também, a característica “religiosa” do provérbio entre os Angolanos em geral e os Kôngo em particular. Num “tribunal tradicional”, nos makônzo do casamento ou nkûwu de óbito, o uso de provérbio é constante. Os mpovi (advogados) sabem utilizá-los e em devido lugar e enquadrá-los nos devidos contextos na busca de “verdade coerente” ou na justaposição das verdades parciais. O enunciado proverbial, independente mente do seu locutor, é um tipo de vox populi, logo é sagrado.

Nesse termo, o provérbio não muda enquanto elemento sagrado porquanto é impessoal, pois são as pessoas com as suas culturas dinâmicas que mudam e junto das suas linguagens. A Bíblia fala da “semente de mulher” em Génesis, ora não é fácil compreender tal expressão hoje em dia, sabendo que foi escrita muitos anos atrás: não há mulher que tenha semente. Profeta Elias, a seu turno profetisou que uma “virgem será concebida”, o que é paradoxo na compreensão racional, mas não necessariamente em metalinguagem.


De ponto de vista hermenêutico, “semente da mulher” seria a variante de “virgem será concebida” que, finalmente, terá sido corporificada em Maria (Evangelho segundo Mateus). Como podemos notar as linguagens mudaram com os seus usuários, sem portanto mudar o sentido nuclear. Assim acontece com os provérbios, as tradições como vox populi, pois é preciso acompanhar toda sua diacronia para compreender a sua “mensagem”. Em outras palavras, é normal que um provérbio seja formalmente alterado na sua estrutura, mas a sua metáfora proverbial (ver Aristóteles: Poética, 2003, p.34) continuará a mesma.


Qual das duas versões seria a nuclear? Entre 1) “… a Deus” e 2) “…, adeus!”, a trama semântica faz crer que a versão nº1 seja a versão antecedente. Mas a ancianidade não pode se limitar na medida semântica. A sintaxe, por exemplo, também intervém na ancianidade dos termos. Há outros exemplos: 1) “Quem muito abarca, pouco abraça” terá gerido: 2) “Quem muito abarca, pouco aperta”; 3) “Quem muito abraça, pouco aperta”; 4) “Quem muito aperta, pouco arrocha”; 5) “Quem muito abarca, pou-
co ata”. A razão principal é o valor semântico e importância sintáxica de “abarca” que ao longo do tempo e da sua existência, significou tour-à-tour, abraçar, apertar. Mas tal não poderá, talvez, ser o caso entre “… a Deus” em relação a “…, adeus!”, se partimos do pressuposto que “…, adeus!” seja pri-
meira expressão literal de “paraíso”. Nesse caso, faria sentido que “Quem empresta”, depois da morte, vá “…, adeus!”, isto é paraíso, um dos destinos dos seres humanos de acordo com as grandes religiões. Aliás, “…a Deus” não é um nome designativo, pois uma qualidade de Iavé. logo “…adeus!” prevaleceria, nesse caso.


Assim sendo, tornar-se-ia difícil dizer qual das versões seria a mais antiga, se consideramos a vertente semântica por um lado, e por outro a vertente sintáxica. Parece que as origens não ressuscitam e não pertencem a razão humana alguma. No entanto, é nesse momento que urge a sistematização das relações sintagmáticas de cada versão, e a sua comparação axiológica permitem, de certa forma, compreender a possível ideia primordial, e com ela estabelecer-se-ia a “versão impessoal”. A versão impessoal seria a versão histórica que em princípio, tem outros suportes noutros domínios humanos: crenças, rituais, cânticos, esculturas, etc.


Nessa senda, a apreciação paremeológica seria justificável não só para os provérbios mas também para os “relatos” das linhagens (zimvila) e outras expressões como ritos, cânticos, cultura material, etc.

 

 

Extrato do livro: "As origens do Reino do Kongo" editado por:


Mayamba Editora
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E-mail: mayambaeditora@yahoo.com
 

 

 

 

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