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29 Jul

AS ORIGENS DO KÔNGO E A ARQUEOLOGIA

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #História do Reino do Kongo

 

 

Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama


 

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1. Introdução

 

Na sua obra Arqueologia Angolana, publicada em 1980 pelo Ministério da Educação, Ervedosa Clark afirma o seguinte:

 

A partir do ano 1000 d.C. assiste-se na África Austral a proliferação de grande número de unidades tribais. Porém, só depois do século XI começa a verificar-se no subcontinente a competição pela terra, e esta rivalidade é talvez uma das razões do desenvolvimento de numerosas autocracias centralizadas, que conseguiram manter a sua individualidade graças à conquista, ao comércio e aos vínculos religiosos. Todas possuíam uma entidade cultural própria, podendo todavia agrupar-se em unidades mais extensas, comum vasto padrão cultural comum… Assim se construíram, entre outros, o reino do Congo e o império do Monomotapa.

 

De acordo com esta afirmação, de base arqueológica, o reino do Kôngo terá sido fundado num período posterior ao século XI. De facto vários autores partilhariam essa hipótese, tal como, entre outros, fez John Thornton, Jan Vansina e Anne Hilton. A maioria dos especialistas africanos contemporâneos limita-se em repetir as opiniões destes últimos, as vezes com abordagens novas. Decerto, isso enriquece a abordagem. Mas nós pretendemos desenvolver uma compreensão diferente por duas razões: (1) a necessidade de questionar hoje as teses consagradas e substrair delas novas pistas de pesquisa; (2) concatenar índices e pistas que indiquem anterioridade do século XI, com suportes arqueológicos, e fazer sua leitura em congruência com outras fontes tratadas por nós muito além de
meras citações.

Com base na arqueologia, é possível no entanto admitirmos uma segunda hipótese de trabalho, a de o reino do Kôngo ter mesmo nascido num período anterior situado pouco depois do século X da era cristã. Vejamos.

Geralmente os arqueólogos situam na Idade de Ferro o início da fundação dos Estados africanos. Neste contexto, seguindo a corrente ocidental dos arqueólogos, a fundação do  reino do Kôngo estaria situada no fim da primeira Idade de Ferro, tal como podemos depreender da seguinte citação de  Phillipson: “Alguns autores pensam que a corrente ocidental nasceu aproximadamente no início da Era Cristã, nas regiões do baixo Congo, de fusão ou interacção de dois grupos distintos de populações de língua banta”.

 

Por outro lado, alguns arqueólogos aproximam a civilização kôngo das civilizações Khoi-San, tais como se nota na seguinte passagem:

 

A expansão da civilização de Ferro para o Sul, do país Kôngo até ao Nordeste de Namíbia, passando por Angola, e com ela, a penetração das línguas bantas, das quais se originaram línguas modernas, como o mundu e o herero, que Bernel Heine classificou na categoria do grupo das terras do Oeste. O único sítio arqueológico datado que podemos ligar a sua fase mais antiga dessa expansão se encontra em Benfica, na costa atlântica, perto de Luanda, onde uma cerâmica muito próxima àquela da primeira Idade de Ferro, das outras regiões tocadas pela corrente ocidental, se situa em um contexto remontando ao século II da Era Cristã. Ademais,
certos elementos da civilização da primeira Idade de Ferro, como a arte da cerâmica e a criação dos bovinos, parecem ter sido transmitidos, no século II ou III da Erra Cristã, às populações de línguas Khoisan do Sul da Namibia.

 

Essa unidade civilizacional parece sustentar-se largamente, embora exista divergências e diferenças entre os estudiosos quanto a datação e os pontos de partida. Em termos genéricos o século II engloba o surgimento das regiões nas quais se situa o reino do Kôngo. Para aqueles que sustentam que o movimento deu-se do Norte ao Sul, a chegada dessas populações entre os Khoi-San no Sul dataria do IV século. Nós optamos por posicionar-se entre aqueles que defendem ter o movimento de população do subcontinente ter se dado do Sul para Norte, e que por isto defendem que o início de Kôngo dya Mbângala tenha ocorrido alguns séculos antes do século II, provavelmente na segunda parte do século I.

 

Nos artigos-sínteses de cerca de 350 especialistas que escreveram a obra História da África, patrocinada pela uNESCO, fruto de mais de 30 anos de trabalho, é categoricamente apontada a fragilidade da investigação relacionada com a corrente ocidental, em favor da oriental. Com efeito, nossos estudos de campo realizados numa dúzia de anos nas regiões meridionais de Angola consolidam a esperança de mais poder ser feito a favor desta última corrente.

De  Sumbe a benguela foi possível identificar vários “axi mundi” antigos, plenamente harmoniosos com os estudos arqueológicos existentes. Em Kandjâla, algumas montanhas hoje inóspitas podem ter sido habitadas a julgar pelas lendas tradicionais das populações da região, que consagram à elas a realização de diversos tipos de ritos dos ancestrais. Considerando que em nossas tradições, usos e
costumes, o culto aos ancestrais é via de regra realizado em locais sagrados, aí onde foram enterrados antigos sobas (no caso das famílias, aldeias e clãs) ou reis (para os reinos ou tribos), podemos indiciar, ainda que hipoteticamente, a possibilidade de serem tais locais “axi mundi” no passado distante. No seu livro sobre os Kyaka de Angola, Mesquitela Lima oferece-nos algumas imagens.

De facto tais indícios abundam nas regiões associadas com o  reino do Kôngo. A região é quase coberta por  axi mundi em todas as localidades de histórica habitação humana, a tal ponto que tornou-se frequente a profanação dos “mazûmbu” (terras sagradas, cemitérios e locais de habitação dos ancestrais) com as construções anárquicas, mesmo aí onde a antiga administração colonial já deixou assinalados como importantes ruinas históricas a preservar. Obviamente deve-se isso em parte à fragilidade actual das pesquisas arqueológicas nos Estados angolano e congolês, e também à falta de políticas governamentais concretas que as amparem, que contribuam para inibir estes acontecimentos
sociais lesivos à nossa história antiga e para o desenterro do passado angolano enterrado na região de Mbânza Kôngo.



Sobre “as origens no tempo” registamos a seguir duas de algumas importantes contribuições da pesquisa arqueológica que contemplou, no passado e no presente, a região do Kôngo:

1) “Pierre de Maquet acaba de estudar vários sítios de fabricação e deles pode, graças ao carbono 14, situar a data nos quatros últimos séculos antes da Era Cristã. Encontramos objectos atribuídos
a esta indústria na região de Kinshasa, na margem Sul do lago Malebo (Stanley) e, mais a Oeste na proximidade da costa atlântica; eles foram descobertos, principalmente, nas grutas e nos abrigos rochosos da província do baixo Zaire, mas também, algumas vezes a céu aberto”.

 

2) “Em Kinshasa, junto à nascente do Funa, um carvão vegetal acompanhado de um pequeno fragmento da cerâmica atípica foi datado de 270±90. Embora essa data pertença inegavelmente à Idade de Ferro Antiga, convém considerá-la com muita reserva, já que a associação do carvão datado com fragmento de cerâmica não está assentada, do ponto de vista formal, do que a associação da outra data relativa a Kinshasa – a das Ilhas Mimosas. ilhas fluviais, amostras de carvão vegetal associado a cerâmica foram datadas de +410±100”.

Há que reparar que os dados arqueológicos na corrente ocidental são sensivelmente incompletos, e são geralmente associados aos dados copiosos da linguística. Curiosamente, a datação da evolução linguística é condicionada pelas datações arqueológicas, não obstante as conhecidas insuficiências. Por isso a nós parece imprecisa ou insuficiente essa metodologia, até por vigorar nela principalmente
a glottocronologia de M. Swadesh. E se, em adição, devemos aqui reconsiderar a lista dos termos ligados à origem, tal como os elencamos no volume I, teremos o seguinte quadro:

 

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Temos então as seguintes convergências semânticas, que se repercutem nas informações arqueológicas: (1) Deus:  Kalûnga e Pûngu parecem ter uma mesma raiz em khoi-san,  hung, que comporta a ideia de “fabricação”, e kumb que comporta a noção de “fogo” sobre a argila, isto é, fabricação; (2) “cerâmica” o quadro confirma-o na íntegra; (3) Calores: associados à fundação das instituições (dijiku, dikôla e Lûndu), indiciam o começo de Estado centralizado numa época do ferro; o termo khoisan Dolo indica a institucionalização da Origem-Mãe de todos, em torno da qual se dá a concentração de pessoas e populações, tal como é sugerido na ideia de “à volta da fogueira”. A versão umbûndu ondyo-kôlo contém a ideia de casa/ondyo e de centralização/kôlo; (4) e (5) parecem referir-se à institucionalização de diferentes formas de relações de amizade, como “casamento” e “nome”.

 

Os fornos encontrados por nós entre os umbûndu, em diversos municípios das províncias angolanas de Huambo (londombali) e Benguela (bokoyo, balômbo) e, particulamente entre os Ngângela na provincia de Cunene (em Angola como na Namibia), são designados de lûndu, ou seja, “pequena montanha onde se acende o fogo/Kola”. Estes factos indicam claramente a origem comum dessas populações, conforme mostraremos mais adiante.

Esses termos explicam também uma certa evolução das redes sociais a partir das origens. É interessante notar que fonologicamente hung passa por kalûnga (em umbûndu) e mais tarde por  ngana  Kalûnga (em tucôkwe) e finalmente por  kalûnga (em  kimbûndu) e  mpûngu  (em  kikôngo). O inverso é uma descontinuidade. Esta acepção é justificável semanticamente, de acordo com a evolução das civilizações africanas (baumann/Westermann). O mesmo se dá com o resto dessas palavras.

Na sua totalidade, essas palavras corroboram com a arqueologia: a Idade de Pedra Nova e Idade de Ferro Antiga, algo que a oralidade curiosamente apoia.

As palavras relacionadas com as origens especificam o seguinte:

 

1) O nome, que entre os Kôngo se diz nkûmbu, teria a sua origem arcaica nos falares dos !Kung: !kum(b), que está ligado a noção de vagina materna. quer isto dizer que o prestígio social com base no nome familiar é matrilinear. Eis porque os nomes tradicionais entre as populações angolanas são portadores de códigos sociais. Em lyumbûndu e tucôkwe, por exemplo, kûmbo pode significar (i) “vagina mulieris” e, ao mesmo tempo, “tempo sem fim” porque, segundo rezam as lendas !kun, a linha uterina não acaba; (ii) “aldeia” (libata), ou a mãe de outras mães. Como era de esperar, seguindo a nossa tese, encontramos a raiz kumb em todas as línguas angolanas, conforme o quadro acima demonstra.

2) Tund, um termo que para os !Kung remete à índice da existência, ou representante de Deus usualmente associado ao Sol/fogo que providencia a harmonia social entre as famílias. Para os Hereros, os !Kung e os Dimbas (povo proto-bantu), por exemplo, tund ou hund (as vezes pronunciado como kund) significa “aldeia da autoridade vigente”, “libata onde saiu o soba reinante” ou “lugar da origem”.

Por designar o Sol, alguns missionários antigos confundiram tunda/sol com a ideia de Oriente/leste, pelo facto de  sol nascer no Oriente. Respeitada a sua evolução gradual, encontramos a raiz !kung dessa palavra em quase todas populações até aqui mencionadas.

 

Como podemos ver, e seguindo as regras, os dados linguísticos indicam um movimento Sul-Norte extremamente ligado a cerâmica antiga, coincidente com os séculos IV antes de Cristo e II da era cristã. No entanto as tendências das teses dos arqueólogos preferem canonizar as versões apoiadas na linguística.

Até aqui dois pressupostos tendem a determinar a fundação do reino do Kôngo: (1) as teorias sobre a Idade de Ferro, antiga, e (2) as teorias sobre a expansão bantu, partindo do Norte. Para o primeiro, o século XI marcaria a instalação total da indústria do ferro; e para o segundo, temos cinco vertentes: (i) presença da Ásia Menor na África/Kôngo = movimento Norte-Sul; (ii) presença das línguas africanas nas línguas antigas dos Faraós = possível movimento Norte-Sul ou Sul-Norte, (iii) ciclos civilizacionais da África central e meridional, com fortes laços, (iv) a tipificação da língua  bantu, estereotipada segundo o modelo de  bleek (África do Sul), não se adapta sistemicamente às dinâmicas das mesmas línguas se considerarmos – no caso do kikôngo – os registos dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX em relação aos séculos XX e XXI; (v) a teoria da glottocronologia, de Swadesh, ainda não é quantitativamente exposta com trabalhos endogénicos, ainda que singularmente autores como Theophile Obenga sejam citados.

Dadas as discrepâncias que apresenta o segundo pressuposto, podemos dizer que o primeiro terá prevalecido a ponto de, directa ou indirectamente, ditar regra sobre a data da fundação do reino do Kôngo. É por isso que o século XI será canonizado, sobretudo com aportes e contribuições de autores como Jan Vansina, Pierre Maret  e b. Fagan.

 

Queremos lembrar neste ponto as lições engajadas de Raphaël Batsîkama, um dos maiores estudiosos deste assunto, nas aulas que proferia para alunos e professores da  universidade de Kinshasa sobre a existência de vários índices, conservados no museu dessa universidade, de possíveis estações arqueológicas em MbânzaKôngo e outras situadas na região de  Noki. Raphaël procurava cuidadosamente explicar como a “engenharia de datação” do acervo
arqueológico parecia confiável só quando feita fora da África, facto que colocava em dependência todas as hipóteses africanas sobre a chegada dos Kôngo na região da foz do Mwânza. Muitas vezes ironizou, tomado de flagrante humor, que afinal de contas tudo passava a depender dos nossos “engenheiros arqueólogos” lá da Europa para sabermos como nós chegamos até aqui, uma outra maneira intelectual de nos colonizar – dizia ele.

A maioria dos Historiadores africanistas partilha a tese segundo a qual a exploração arqueológica do espaço  kôngo é decisiva para se desenhar as migrações dos fundadores do reino do Kôngo (entre eles, Pierre de Maquet, Van Noten, b. M. Fagan, Jan Vansina). No passado a administração colonial tinha identificado já, e arrolado como reservas arqueológicas, algumas áreas para essa exploração (o grande promotor desse projecto – recentemente falecido – era o historiador Emmanuel Esteves, com o seu ambicioso projecto de “Desenterrar a cidade de Mbânza Kôngo”). Desde então o governo angolano – através do ministério da Cultura – tem realizado “Mesa Redonda” sobre “Desenterrar a cidade de Mbânza Kôngo”.

 

Passaremos a resumir, a seguir, alguns principais problemas com que nos deparamos actualmente sobre a matéria:

1) O mapeamento dos sítios arqueológicos de  Angola no espaço Kôngo ainda carece de (i) outras confirmações; (ii) especialistas na área; (iii) planos de investigação científica vinculados à instituições académicas (iv) estudos e pesquisas antropológicas prévias que substanciem esse mapeamento.

 

2) Comprometimento dos dados arqueológicos, pois acontece que nos dias actuais muitas das áreas anteriormente mapeadas pela administração colonial como reservas arqueológicas já foram invadidas pelas populações, construindo sobre as mesmas suas moradias e espaços sociais de utilidade. Este facto, obviamente, levará para situações de maior incerteza e dificuldades epistemológicas no estudo avançado do reino do Kongo.

Conquanto graves e sérios, tais problemas não representam, no entanto, dificuldades desestimulantes. Muitos artefactos arqueológicos preservados permitem avançar nas pesquisas sem temor, como a famosa “pedra do feitiço”, encontrada ainda no século XVIII à margem do rio Mwânza. Por duas razões podemos considerar essa pedra um importante ponto de partida arqueológico para amparar o nosso estudo: (1) os conteúdos das escritas que ela apresenta foram também encontrados em outros artefactos retirados nas estações arqueológicas situadas no Sul de Angola, tal como é o caso das pinturas rupestres nas províncias de Namibe, a escrita ou pinturas parietais dos Côkwe , que se prolongam até os Ndômbe e Nkûmbe, entre várias outras populações meridionais; (2) o hábito de habitar ao pé de montanhas, tal como se tem descoberto em províncias como Moxico, benguela, Huambo, Kwânza Sul e Norte, Malange e Zaire parecem traçar itinerários regulares, pelo menos três
dos mais importantes: (a) uma série das populações zimbaweyanas terá entrado em Angola por Moxico, oriundas do círculo Angola-Zimbabwe (Cf. baumann e Westermann); (b) outra dessas populações terá partido do círculo botswana, passando por Namíbia até Angola, mais propriamente pelo Kwando Kubângu e, finalmente, (c) uma outra leva por Namibe, a partir da Namíbia, estendendo-se ao longo das margens do rio Kunene.

 

 

Extratos do livro: A ORIGEM MERIDIONAL DO REINO DO KONGO

 

 

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