Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama
De facto, Kôngo e Kimbùndu são, hoje em dia, grupos etnolinguísticos simplesmente vizinhos e, por conseguinte, há possibilidades de laços entre eles. Aqui vamos tentar mostrar o que podiam ser as origens Kôngo, segundo o calendário Kimbùndu.
Um dos autores mais autorizados a respeito dos Kimbùndu escreve:
Eis um pequeno comentário do autor: «durante o período das grandes chuvas, entre os meses de Fevereiro e Abril, as águas do rio Kwânza aumentam de volume, transbordam e inundam as suas margens e toda savana (principalmente a região do Sul do rio, na Kisàma), imergindo todas as aldeias situadas nas terras baixas. Estas inundações obrigam as populações a instalarem-se nas terras altas, onde constroem habitações provisórias à base de “bordão” (ditombe). As populações estabelecem-se aí durante o período das cheias, esperando poder regressar ao seu “habitat primitivo”, após a baixa das águas, em fim de Maio ou início de Junho. O mais tardar em Julho. Este acontecimento marca anualmente a vida das populações e constitui o signo de uma forma de adaptação ao meio».
Na verdade, o período das grandes chuvas está na base ou é causa da emigração provisória das populações para as terras altas. O regresso ao habitat “primitivo” nas terras baixas está fixado em
fim de Maio ou início de Junho. O mais tardar em Julho. O que significa isto? A reinstalação no habitat “primitivo” é o verdadeiro recomeço da vida normal. Ora, isto é possível em Maio, Junho ou,
ainda, em Julho. Por outras palavras, é durante a época marcada pela ausência da chuva ou estação seca, na linguagem de Virgílio Coelho, ou melhor, KIXIBU, em kimbundu. Na verdade, este tempo é
chamado MBÂNGALA nos Kôngo, que, como vimos atrás, lembra as origens (kuna mbângala: há muito tempo).
«Os Ndôngo cultivam durante a estação seca (kixîbu)», escreve V. Coelho. Mesmo para a pesca, isto torna-se possível depois da chuva, isto é, na estação seca. uma coisa é PERíODO DE SEMENtE que se
situa em Agosto-Setembro, quer dizer, em MBÂNGAlA na linguagem dos Kôngo. Vamos explicar melhor ainda:
«Introduzir a semente debaixo da terra tem um termo em Kimbùndu (até Còkwe, umbùndu). Este termo é SuMIKA: semear, plantar, tirar daqui para pôr acolá». A mesma é sinónimo de toteka que
significa
também queimar. temos tendência a voltar a Mbângala que é a estação seca (kixíbu). De facto, princípio diz-se dimatekenu, ndonda ou, ainda, lunda (lundu nyi senga162). Mas, kutoteka (queimar) tem
laços com 1) mateka (primeiro); 2) dimatekenu (origem) ou 3) kuandeka (começar).
Muito claramente, como em outros casos precedentes, a origem está ligada com o fogo, o calor. Para dizer queimada, kimbùndu usa esta expressão: «kitúmba kia uama» (literalmente mata – kitumba,
acendeu ou pegou fogo). Kitumba pega anualmente o fogo, ficando, assim, em convergência com wâma (acender). Essa expressão163 dá a kitumba o sentido de queimadas, que, normalmente, é seguido das
chuvas164. Ora, tûmba é o nome do ancestral principal, que está ligado com o calor ou fogo. Mas
não só. Além dos sentidos fornecidos pelo V. Coelho165, túmba deriva de 1) túmba: semear, plantar, meter ou introduzir na terra (planta ou semente); 2) nascer, formar-se, desenvolver e 3)
assentar, pôr apoiando-se sobre a BASE (mbetekete). Como podemos observar, o primeiro ancestral túmba está ligado com esta época de queimar-e-semear, época que V. Coelho chama de kixíbu e que
outros autores em matéria dos Kôngo deram o nome de Mbângala.
Voltando a kixíbu, V. Coelho informa que é uma época de semear. Os sinónimos são, de acordo com o Dicionário Português-Kimbùndu-Kikôngo escrito por Maia166, 1) BEXI; 2) PIXI; 3) PEXI. Portanto,
FIXI, variante destes termos, significa ORIGEM na linguagem corrente. Mas não só. KUBÀNGA, o outro nome da estação seca (kixíbu) em Kimbûndu, além de Kyângala – também mencionado por V. Coelho -,
deriva de kubângesa que significa originar, começar. Carvoeiro, em Kimbûndu, diz-se Mukua-KUBÀNGA. Ora, a sua especialidade – fogueira – está ligada com o fogo, o que quer dizer que a maioria das
palavras ligadas à origem tem laços íntimos com o fogo ou calor.
Ora, o ano Kimbùndu parece começar com kutanu. Será por esta razão que V. Coelho começa por Kutanu? Maia informa que esta palavra exprime a ideia de «rompimento, dilaceração, rebentamento», tal
como as chuvas. Essa também é uma pressão que as populações têm, visto que a palavra deriva de: 1) tánuka167: rasgar-se (como o pano), fender-se (como a cana), rebentar (como a câmara-de-ar); 2)
tánuna: rasgar, fender, estalar, rebentar (sinónimo de vúla). Em Kimbùndu e até nos umbûndu e no
Côkwe, úla ou wúla significa ser, estar ou tornar-se desalentado, abatido, desmoralizado, sem actividades ou energia ou MORTIÇO.
Na realidade, kutanu é um período SEM ACtIVIDADES. E, neste período, as «inundações obrigam as populações a instalar-se, temporariamente, nas terras altas», escreve V. Coelho. Será por esta razão
que, em Kikôngo, mayânda significa Sul, terras baixas e, ao mesmo tempo, origem, derivando do verbo yândula ou yanduka: aquecer ou aquecer-se? Pelo menos, V. Coelho faz-nos entender que Kutánu é
período das chuvas e de rompimento, que precede a normalização ou o verdadeiro (re)COMEçO
(KYÂNGAlA deriva também do verbo kubângesa). E, logo no COMEçO, deve-se semear, plantar a semente. Aqui, já estamos no kixibu, isto é, estação seca. Porém, neste preciso caso, a estação seca
seria o verdadeiro começo na concepção dos Kimbùndu no seu código cosmogónico. linguisticamente, kutánu parece não ter nada a ver com a primeira época do ano, mas com o período que precede o
verdadeiro começo, o princípio autêntico. «Semeia-se», «planta-se» logo no período kixìbu ou Mbângala.
Ora, semear e plantar relacionam-se com começar. Depois do fim das actividades de «kitumba kya wama» (Mbângala), como presenciamos nas zonas de Kasanda, vêm as chuvas que são assimiladas no período de kutanu – período sem actividade e de exílio.
Vamos insistir neste autor. Escreve que «alguns marcos da toponímia e da antroponímia, como por exemplo, KAluNGA ou MAZANGA NA LUANDA, encontram justificação nos «mitos» mais antigos169
destes
povos, assim como nas ideias que procuram justificar o lugar de PARTIDA, algures em Matâmba, justamente na BAIXA Ou no vale (Samba), de onde é originária a linhagem Samba, materializando, assim,
uma ideologia dos extremos: o princípio (a Norte) e o fim (a sul) do território, ambos de-
nominados de Samba».
Falar do ponto de PARtIDA deste povo, servindo-se particularmente das narrações recolhidas pelos autores, cria uma grande confusão: uns apoiam Matâmba ou Okânga, enquanto outros pensam à Ganga ou
até à Kissama. Aliás, Virgílio Coelho, citando uma das versões de uma região determinada, sublinha esse facto171. Fica, portanto, na opinião do autor, que Norte é início e traduz-se por Mundo dos
Vivos, isto é, Samba=Kabàsà. De igual modo, o Sul, sendo o fim, traduz-se por Mundo dos Antepassados,
ou seja, Samba=Kakùlù.
Vamos tentar interpretar o pensamento contido nestas palavras. Em princípio, entre o mundo dos Vivos e dos Antepassados, a questão primordial seria qual destes mundos serviu de ponto de PARtIDA?
Virgílio Coelho observa «na concepção do seu universo religioso que os Ndôngo falam de um MuNDO DE BAIXO (Bóxi), ou seja, um mundo das trevas, das profundezas, a tERRA DOS MORtOS (Kalûnga). Este
mundo é presidido por Kálùngangòmbe, personagem que, segundo alguns informadores, representa o ANTEPASSADO MÍTICO – uma espécie de DEMIURGO».
Todos os Bantu, assim como os Kimbùndù acreditam que a vida teve origem num ancestral comum. Nessa lógica, Kakùlù seria o começo. Eis a razão pela qual Virgílio Coelho, um dos especialistas que
tem escrito bastante sobre este grupo etnolinguístico em referência, fala de Kalungangombe, antepassado mítico, cujo mundo que preside é Bòxi, em Kimbùndu, isto é, o mundo de baixo, a terra dos
mortos (Kalunga). todavia, entre Kabàsà=Sàmbà (o mundo dos vivos) e Kakùlù=Samba (o mundo dos Mortos), e nessa ordem de ideias, KAKULU não significa somente em BAIXO, mas também traduz-se por
começo ou lugar de partida. O mesmo sentido que leva SAMBA, nome do filho mais velho, verifica-se também como teónimo no sentido em que Deus é o primogénito de todos. O termo tem, entre outras,
esta forma verbal que deriva de sàmbà: marcar os caminhos, começar uma obra, iniciar, abrir a pista ou fundar os primeiros pilares. Nos ritos de nascimento e, especialmente dos gémeos, os
Kimbûndu cantam que os recém-nascidos provêm dos Antepassados ou de Deus (Kalunga) do mar. Em breve, os Bantu pensam, inumanamente, que os recém-nascidos vêm dos antepassados (já mortos)175, do
princípio ou ainda da semente da vida.
Como podemos ver, existe uma ligação entre BAIXO e ORIGEM nos Kimbùndu como nos Kôngo que falam de MAYANDA. E, relativo a boxi Kimbûndu, os Kôngo utilizam mbozi para significar mundo inferior ou
ainda o mundo de baixo. Deriva do verbo vozula que significa, citando laman, «glisser au travers une crevasse au fond d’un trou»176. Nos Vili do Norte da foz de Mwânza177, Yâka, Sûku e de
outras
populações de Kwângu, por exemplo, o termo é usado especialmente para os mortos que, ao morrer vão para fundo das terras, para o fundo da floresta ou Kalûnga, fundo do mar. Consoante nos foi
informado desde a infância, essa passagem é somente para aqueles que, enquanto vivos, eram bons, mas erravam. Mas, eles vão descansar em paz. Aliás, na vozila traduz-se por tranquilidade ou,
simplesmente, lugar de paz ou sítio de harmonia.
Passamos a outra afirmação fornecida por V. Coelho: «O ano ritual está ligado à estação seca (Kixibu) que, como vimos, começa, aproximadamente, em Maio e se prolonga até finais do mês de
Setembro»
Assim, homenageia-se os antepassados durante kixibu ou Mbângala, justamente no princípio do ano. Semanticamente, não só esse facto está ligado ao começo, mas também Kubânga está relacionado com
as actividades do começo/plantar.
Em resumo, as palavras que estão ligadas às origens são:
Tûmba: primo, a palavra deriva dos verbos ligados a plantar, semear; e secundo de nascer; e tercio para dizer queimar usa-se kitúmba, algo queimado; lûnda: (já tratámo-lo com os Côkwe) está
ligada com a origem, fogo, calor, Sul;
TEKE: como raiz das palavras ligadas à origem (dimatekenu), aos verbos começar (kuandeka), queimar (kutoteka) e substantivo (mateka);
Kubânga: nome da estação seca, kubângesa: originar, começar, homem da fogueira, ou carvoeiro (muaku-kubânga); terras baixas: é lógico que começamos sempre de baixo e depois subimos (para acima).
Não somente as terras baixas são reocupadas no período normal de semear, mas também são consideradas como BASE.
A origem dos Kôngo está ligada às palavras Sul-Calor (estação seca), semear (final da estação seca). Aliás, mbângala (dos Kôngo) e kubânga (dos Kimbùndu) têm a mesmas raízes, entre as quais
kubàngesa (Kimbùndu).
Não é somente curioso ver o ritual dos Ancestrais iniciar em estação seca, mas também certas orações reforçam a hipótese de que os Ancestrais vêm realmente de Mbângala, sinónimo de Kânga, ou
melhor, di-kânga que significa «o lugar mais profundo, mais distante, mais longínquo, onde se encontram os «génios» ituta, sinónimo de mbôzi (boxi Kimbûndu), o mundo dos bi-sîmbi (espíritos
santos), de Kalûnga (Deus), da Providência (Sûku), etc.
Extrato do livro: " As origens do Reino do Kongo " editado por:
Mayamba Editora
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