AS ORIGENS DE ACORDO COM O CALENDÁRIO KÔNGO
Por Patrício Cipriano Mampuya Batsikama
Tentaremos restabelecer agora o calendário antigo kôngo e, a partir dele, problematizar a datação da fundação do reino do Kôngo.
Partir-se-á do pressuposto de que a “fundação do reino do Kôngo” seria uma obra de 27 heróis civilizadores cujos “traços civilizadores” constituem os fundamentos essenciais que precederam a
existência de um poder centralizado no actual Mbânza-Kôngo. O 27º herói civilizador seria o primeiro rei de todo o país, aquele que é chamado Mutino/Ntinu’a Lukeni, por um lado. Por outro,
dizermos desde
já que o espaço temporal que separa este rei de outro rei, Dom João Nzîng’a Nkuwu Mani Kôngo, cnstitui um debate ainda aberto.
É de conhecimento geral que:
- Domingo significa “dia do Senhor”. Dedicado ao Sol, este sendo aqui uma representação simbólica do Senhor. O sol faz desaparecer as trevas associadas ao medo e à angústia. Por essa razão o povo
primitivo quase sempre assimilou Deus ao Sol.
- Segunda-feira é associada ao dia da lua, considerada muitas vezes como fonte da maternidade, que por sequência astronómica vem depois do Sol.
- Terça-feira é o dia de Marte. Na mitologia grega e latina, Marte era símbolo de força/resistência: era o senhor da guerra e, por conseguinte, essência na constituição da nação. Por sua
importância, o terceiro mês do ano do calendário romano ser-lhe-á também dedicado.
- Quarta-feira é o dia de Mercúrio, deus do comércio, dos viajantes e dos... ladrões! Mensageiro de Júpiter, protegeria os comerciantes e seus negócios.
- Quinta-feira é o dia de Júpiter, uma distinção conferida ao pai dos deuses pagãos, comandante dos ventos e das tempestades.
- Sexta-feira é o dia de Vénus. Nascida da espuma do mar, Vénus representava para os pagãos os ideais da formosura, da harmonia e do amor.
- Sábado é o dia de Saturno, deus romano da agricultura, justiça e força. Dedicado inicialmente a Saturno, provavelmente com a influência cristianismo, este dia terá também passado por
Shabbath, que significa dia de repouso: dia reservado às orações. Mas graças aos ingleses ainda é preservado o sentido de dia de Saturno: Saturday.
Quadro comparativo dos nomes dos dias da semana nas línguas latinas
Quanto a tradição temporal kôngo o calendário comporta quatro dias principais e consecutivos: Nsôna, Nkându, Nkônzo e Ñkênge. No entanto, algumas vezes os Kôngo utilizavam termos que
levam-nos a considerar que estes quatro dias seriam, ao mesmo tempo, quatro unidades de dias, da seguinte forma:
1) Nsôna é a unidade utilizada para identificar o dia. Em outro índice, no entanto, designa também série de dias, isto é, uma semana de quatro dias: (a) Yîka kya Nsôna; (b) Kându kya Nsôna
ou Nsôna ya zôle; (c) Nkônzo kya Nsôna ou Nsôna ya tatu ou ainda Nsôn’a buñkisi; (d) Nkênge kya Nsôna ou Nsôna ya ya;
2) Nkându, nome do segundo dia (terça-feira), também considerado como nome para uma série de dias, isto é, uma semana de quatro dias: (a) Nsôna ya Nkându; (b) Nkôyi/Nkôzi kya Nkându;
(c) Nkônzo kya Nkându ou ainda Nkându simplesmente; (d) Nkênge kya Nkându, Nkându kya ya;
3) Nkônzo, nome do dia e de uma semana específica, de quatro dias: (a) Yika kya Nkônzo; (b) Nkându kya Nkônzo; (c) Duki dya Nkônzo ou Nkônzo simplesmente; (d) Nkênge kya Nkônzo;
4) Nkênge, nome genérico de quatro dias: (a) Nsôna ya Nkênge (Nkênge kya ntete); (b) Nkându kya Nkênge; (c) Nkônzo kya Nkênge ou Nkênge; (d) Nkênge.
Semana Kongo
Como se vê, de acordo com esta lógica a semana kôngo teria 16 dias, espaço de tempo que em princípio
princípio não corresponderia com a tradição romana. lembramos que foi Roger bacon que, no século XIII, terá dado o nome de “sete dias” sucessivos que se derivam da antiga prática astrológica dos planetas na gestão das horas que têm o dia.
A noção de semana abstracta, embora designe uma sequência cíclica, comporta o sentido de uma unidade que a caracteriza ou uma actividade religiosa, ou simplesmente uma actividade civil.
Se a semana romana é civil e determina os dias laborais, a semana kôngo parece indicar a unidade de uma série de actividades, ligadas especificamente a terra (tal como no antigo Egipto) e ao
comportamento climatérico. Outros factores de tempo – que obedecem as mudanças de clima – permitem-lhes separar essas unidades em cinco grandes meses. Para melhor compreender isso, comecemos por
explicar o sentido de dia/noite.
Os Kôngo concebem o dia como lumbu ou como suku. Estes termos indicam que o dia não começaria com o “sunrise” (levantar do Sol). lumbu é o espaço temporal que o ser humano disponibiliza para
trabalhar pode ser de “dia”, “lumbu lwa mwîni” (tempo de luz), ou “mpîmpa”, isto é, “tempo da noite”.A noção real que se faz do “dia” é o “tempo da luz” (ntângwa), isto é, o Sol à vista, ou a Luz
à vista. Esse “tempo da luz” tem início em masiku (madrugada, antemanhã) e masuku (período de manhã). utiliza-se mbata para
referir-se o “meio-dia”, isto é, quando o Sol está acima da nossa cabeça, seguindo-se depois“ki(m)pâdi”. Quando o Sol muda a sua luz pela cor de fogo, começa o “nkokila” e quando escurece,
estamos perante masika (crepúsculo). A diferença entre madrugada e crepúsculo entre os Kôngo é que a primeira é domínio do ntângwa (Sol)e a segunda é nutrida pela ngônda (lua).
O termo ngônda, designando o mês com a ideia de maternidade, parece ser já uma interpretação europeia. Masika ma ngônda (crepúsculo) e masiku ma ntângwa (madrugada) são as vezes
simplesmente diferenciados pelos seus finais: masîka e masîku. Pode-se ir prestar homenagem ou “invocação” à tumba de um antepassado somente no período de masiku, de tal modo que aquele que vai
ao cemitério no período de masika será considerado um “feiticeiro”. O Ngânga nkisi que protege a aldeia vai rezar de madrugada. Mas o ñlôki (feiticeiro) vai e opera logo no começo de “masika”.
Resumindo, a noção do dia (lumbu/suku) só tem uma função divisional das actividades a desempenhar geralmente durante “o tempo da luz do sol” e em caso extremo durante “o tempo da luz lunar”.
Voltemos agora à noção de semana. lembramos que o calendário, na verdade, seria apenas um sistema de ordenamento do tempo com o fim de organizar a vida corrente (a vida civil), embora
fundamentalmente com base em suportes religiosos.
De modo geral, todos calendários são de inspiração religiosa.
O primeiro dia no calendário imortaliza a origem do universo ou o nascimento de um ser regulador divinizado ou o começo convencional de uma sociedade. Entre os kôngo este começo convencional
chama-se Mbângala, e abarca, como designação de estação temporal, a ideia de transição.
Ao nos basearmos nos fenómenos naturais que definem os meses, nota-se uma larga discrepância entre o que os Kôngo concederiam como mês em comparação com o sistema romano de 20 dias. Isto por um
lado. Pelo outro, entre os dois sistemas há ainda incompatibilidade na divisão dos dias como via definidora dos meses. Entre os Kôngo os dias não são definidos em meses, mas pela divisão civil do
comportamento climático e regime de agricultura. Consenquentemente o que veio a chamar-se de “mês”
não comporta entre eles a noção divisional de 30 dias, pois pressupõe apenas um ciclo de organização e acompanhamento de fenómenos da natureza. Cada mês assim compreendido é distinguido e
definido pelo nome que recebe: Ntômbo, Kyânzu/Mwânga, Mazânza, Mpângala, etc.
Já as semanas, dentro do mês, prolongam-se por três ou quatro vezes, especialmente quando as chuvas são longas ou o cacimbo se prolonga além do normal. Mas, a princípio, o prolongamento desses
dias depende fundamentalmente das actividades relacionadas aos trabalhos do campo. logo os meses nunca seriam regulares pelo facto de as semanas variarem regularmente.
O ano termina e simultaneamente inicia quando Mbângala acaba, e o início do novo ano significa também o “começo da sociedade” com o novo “ciclo agrícola”, tal como reza a tradição: Kuna Mbângala
atûkidi ambûta.
Extrato do livro: A origem meridional do Reino do Kongo