A SAGA GLORIOSA DO BAT.CAÇ. 141 (2)
Por Abertino Almeida
Estávamos em 1961. Fins de Março, talvez... Não me pareceu que o assunto fosse comigo ou me viesse a envolver. O meu serviço militar obrigatório tinha terminado em Janeiro. A minha especialidade de guerreiro miliciano adquirido na Escola militar de Mafra era a de sapador de Infantaria, e na altura do grito «às armas por Angola» a voz esganiçada do chefe máximo da horda sob o seu comando soou-me a rebate de alarme sério, sim, porém para mim falso e dissonante, visto que uma previsível mobilização imediata de militares de incorporações já passadas não parecia que chegasse ao ponto de implicar o regresso às fileiras de um número de oficiais sapadores de infantaria de tal ordem que acabasse por ainda me apanhar de novo também a mim... Qual quê? Pois não é que apanhou mesmo?! E até outros mais antigos, de «fornadas» anteriores de milicianos da mesma Escola Prática de Infantaria foram abrangidos...
Em breve ficaria a fazer parte do Batalhão de Caçadores N.º 141 expressamente constituido para aquele fim assim previsto, tal como estava acontecendo com outras unidades militares, em cumprimento
da voz de comando que o Primeiro Ministro do Governo de Portugal, António Oliveira Salazar, ordenara às Forças Armadas do País, de que também era, ao tempo, Ministro da Defesa.
O mostrengo da guerra esperava por nós para matar ou morrer... ou nos ensinar a viver no mundo da nossa Humanidade, de que fazíamos parte. Na verdade, a espantosa experiência humana em que se
traduziu a guerra a que então fomos submetidos, sofrendo-a, acabou mesmo por se tornar na mais importante e profunda lição de vida que alguma vez pudessemos imaginar, recebida na carne e na alma
directamente dos medos e dos sofrimentos exalados por quantos os produziam para logo a seguir os receberem devolvidos à proveniência na mesma onda de vai-vem de espanto avassalador.
Marcou-nos para sempre. Mas, enfim, Vai fazer agora cinquenta anos em que tudo isso aconteceu, e os que aí estamos a celebrar ainda as datas desse segmento histórico das nossas vidas, vividas em
conjunto de angústias várias, mas também de intensa solidariedade e camaradagem, queremos uma vez mais evocar os passos mais representativos dessas memórias, esconjurando assim o que porventura
ainda resta das sombras e sofrimentos que nos acompanharam na lembrança e antes realçando alegrias e demais momentos válidos desses tempos da nossa juventude.
ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO...
- 15 de Junho de 1961! Era ainda noite quando nos meteram em combóios especiais a caminho de Lisboa, e mal rompia a madrugada quando chegámos à gare marítima de Alcântara. Havia outros
Batalhões e outros navios com o mesmo destino em preparativos de partida. Entre transporte de homens e de material, cinco(?) ao todo.
Atulhada de gente de todas as idades e condições, nesse dia, a gare marítima de Alcântara despedia os primeiros grandes contingentes de guerra com destino a Angola. O Bat.Cac. 141 era
precisamente um deles. O nosso barco era um paquete de nome Moçambique, aprestado para esse efeito.
A multidão apinhada nas varandas da gare tentava conter-se e evitar expressões de sentimentos complicados de emoção cruzada de ressentimentos e de paixão que, todavia, aqui e ali ressaltavam em
palavras de acusação ao regime político que consideravam responsável pelos extremos a que se chegara nas relações das populações envolvidas, e que, inevitavelmente, acabariam por desembocar em
situações de violência crescente, e, inclusivamente, de guerra verdadeira. E também ali se distinguiam mães e irmãs, e ainda namoradas dos que partiam e que em muitos casos saudavam em lágrimas e
gritos lamentosos de despedida e desconsolo visivelmente sentidos. Já embarcados e debruçados da amurada respondiam-lhes depois os visados mais com alongados olhares de tristeza do que com
palavras ainda assim murmuradas baixinho, para si mesmos, como se rezassem: adeus, adeus, até ao meu regresso...
Lá dentro, no salão da primeira classe, que passara a servir de sala de oficiais da Unidade embarcada, estava a ultimar-se a cerimónia de despedida oficial dos batalhões embarcados, com a
presença de patentes políticas e militares em representação do Governo. Nesta qualidade falou o general Mário Silva, da parte da Defesa Nacional, exortando a tropa a honrar dignamente os
compromissos assumidos para com a Pátria, em juramento de bandeira, e a estarem prontos os seus homens a dar por ela a vida, se necessário, devendo, nos combates que, seguramente os esperavam no
destino para onde estavam a ser enviados, portarem-se aí com exemplar heroismo e galhardia, e não hesitarem sequer em usar da "máxima dureza nos combates, sem contemplações, contra os bandidos
terroristas a soldo de Moscovo, arregimentados contra Portugal e sua obra em África. São esses os inimigos a abater. Não os poupem”. E se não foram exatamente estas as palavras proferidas, outras
o foram de conteúdo semelhante ou mais explicitamente belicistas e enraivecidas.
Respondeu-lhe o nosso Comandante em tom cordato e sério, salientando, no entanto, que em todas as circunstâncias, adversas que sejam, sempre será possível manter o respeito devido a princípios
fundamentais em que assenta a nossa civilização sem , todavia, se perder de vista o cumprimento rigoroso da missão que nos está atribuida. Em relação a esta - acrescentou por fim – era seu
propósito fazer o máximo que pudesse para que o Batalhão, cumprida tal missão, pudesse regressar com a consciência do dever cumprido e sem nenhuma ou com o menor número de baixas que fosse
humanamente possível evitar.
Foi na verdade para nós todos uma referência inesquecível de homem e militar excecional, que entendeu a guerra em que nos vimos envolvidos sem nunca perder sobre ela a perspectiva de humanidade e
de respeito pela vida de todos, e que marcou claramente, e aliás caracterizou muito impressivamente, toda a acção que viria a desenvolver no comando que desempenhou.
Chamava-se Jorge Inglês Gancho Pereira de Carvalho. Coronel de Infantaria. Militar de Abril, antes e depois de Abril.
Já morreu. Porém ficou e permanece vivo entre nós, até que também de nós outros se apaguem de vez os últimos sinais da passagem e da memória que deixarmos.
Mas, naquela manhã de 15 de Junho de 1961, cumpridos que foram todos os ritos da partida de um barco carregado das sombras e lendas dos antigos mareantes descobridores de novos mundos, e
aventureiros do acaso, a caminho do desconhecido, já nada impedia o belo Paquete Moçambique a desamarrar do cais de Alcântara e fazer-se às ondas e marés do grande mar oceano azul sem fim que os
nossos olhos estavam naquele momento a querer medir para lá das lágrimas. Por isso ergueu a prumo as pesadas âncoras do fundo do Tejo, arrecadou-as nos suportes e cremalheiras da nau, aproou
direito ao Bugio, e finalmente, ao sol a pique desse meio-dia de Junho , lá partiu a navegar. Adeus adeus, até ao meu regresso... ou até nunca mais. “Tá bem, dêxa...resmungou o Xico Sapador ao
ouvido do Grande, ambos alentejanos de gema; e logo acrescentou “ Éh! Entre mortos e feridos alguém há-de escapar!”
A viagem até Luanda, ao terceiro dia estava a ser de pesadêlo, especialmente entre os das casernas instaladas nos porões. Era o calor, e os cheiros do suor colectivo, e o sufôco crescente da
angústia incontida de uns a contaminar dos outros os mais desanimados e entristecidos pela incerteza e desesperança daquela mala-ventura ensombrada rumo ao desconhecido.
Depois animou um pouco, a "malta" foi-se conhecendo e até se improvisou um sarau recreativo de algumas "estrelas" imprevisíveis e artistas espontâneos que constituiu, afinal, uma interessante
confraternização do pessoal embarcado sem preconceitos de hierarquia ou escala na participação que se verificou.
Ao décimo dia, pelas 18:00 horas, o transporte de tropas "MOÇAMBIQUE" em que viajámos, lançava amarras de atracação no porto de Luanda, capital de Angola para onde havíamos sido destinados.
A comissão militar que cumpríamos entrava assim numa nova fase.
Continua...