A SAGA GLORIOSA DO BAT.CAÇ. 141 (1)
Por Albertino Almeida
INTRÓITO
Era o ano de 1961. E começava mal esse ano, tão carregado de notícias sombrias, boatos medonhos e agoiros de morte que estavam a espalhar-se pelas sanzalas da fronteira do Norte de Angola com a
vizinha República do Congo, tornada esta independente da dominação colonial belga desde Junho do ano anterior! Ainda se não haviam extinguido as ressonâncias largamente festejadas in loco da
proclamação assumida nas palavras claras e de grande dignidade cívica proferidas por Lumumba, que a posteridade jamais iria esquecer, e todavia já elas retornavam amassadas em sangue e martírio
do herói que as usara com um espírito de remissão das afrontas e humilhações longamente suportadas pelo povo em cujo nome se erguera a interpelar os autores que as haviam praticado.
Esses e outros sinais do interior periférico vinham a aumentar a desorientação e medos crescentes no espírito de todos quantos já vinham temendo por vidas e fazendas ameaçadas, sentindo por dentro o despertar de vozes nas consciências perturbadas, a tornar ainda mais insuportáveis os receios e incertezas que os sinais aprofundavam.
Oficiais do Batalhão de caçadores 141 na Damba. (imagem de A. Méndes)
Ouvia-se e falava-se de violências brutais a esmo mas, ainda assim nada que se comparasse com as notícias que surgiram de repente da Baixa de Kassange, terras de algodão e dos crimes hediondos que ali se cometeram sobre trabalhadores e pequenos produtores revoltados pelos baixos preços de exploração agravada que lhes quiseram impor à força as algodoeiras estabelecidas; factos comprovados que se avolumavam descontroladamente; relatos fantasmagóricos de brutalidades inomináveis; e de outras paragens apelos e recados lancinantes de humanidade ferida, ou friamente desprezada, que dali chegavam, e das terras do café e das fazendas e xitacas de outras paragens de contratados. Assim se foi tecendo e reforçando a negra teia de ódios explosivos à solta que não tardaram muito a deflagrar em vastas áreas do Norte de Angola estilhaçando a paz fingida em que por aí a presença e autoridade colonial se ia louvando e mentindo.
É, pois, neste contexto que a quatro de Fevereiro se dá o assalto armado às prisões de Luanda, preparado e executado por um grupo de guerrilha do MPLA. Estala o pânico nas ruas da cidade bem como nos musseques da periferia. Os numerosos jornalistas estrangeiros que então se haviam concentrado em Angola na expectativa da chegada do barco Santa Maria que Henrique Galvão, num golpe de audácia singular, aprisionara em alto mar, mudando-lhe o rumo e desde logo o pavilhão beato para Santa Liberdade, com que tentava, conjuntamente com os seus seguidores, alcançar Luanda, puderam expedir dali, mesmo sobre a hora, despachos noticiosos para o mundo inteiro a relatar o começo da luta armada de libertação nacional em Angola, desencadeada pelo MPLA de, (entre vários outros nomes carismáticos do Movimento), Viriato da Cruz, Mário de Andrade (e, pouco após, também Agostinho Neto), à cabeça dos acontecimentos.
Menos de mês e meio passado, a 15 de Março, também a UPA de Holden Roberto (sob inspiração de uma rectaguarda atribuída a agentes políticos americanos e designadamente à CIA) se lançava, de forma sangrenta e brutal, em operações de guerra marcadas por grande radicalismo racista e tribalista nas acções desencadeadas, por entre povos bakongos, mais precisamente Kicongos, e indiscriminadamente contra brancos e mestiços onde os próprios negros eram declarados brancos, pelo simples modo como se apresentavam vestidos ou calçados, e sobretudo se falavam ou não português ou simplesmente possuíam qualquer documento que indiciasse ligação ou relação com brancos ou mestiços de qualquer raça alheia…
Tais eventos iam-se tornando conhecidos em Portugal na versão que lhes era dada por jornalistas e outros serventuários do regime, tornando-se muitas vezes necessário lê-los nas entrelinhas dos
textos, ou apurá-los na baba dos noticiários, que os iam reportando em estilo fortemente carregado de dramatismo e emoção.
De repente, pareceu que o chefe sentiu com exactidão a gravidade extrema que a situação representava para a Nação Portuguesa, e a urgência duma decisão sobre ela, pelo que imediatamente
convocaria os órgãos da comunicação social disponíveis para a transmitirem. As imagens ficaram registadas, para que conste. E vê-se então a falar às massas com com ar solene e de Estado. Por cima
dos óculos encavalitados no nariz adunco, fitando intensamente sabe-se lá que longínquas regiões interiores, os olhos acesos do velho, mais do que a voz de cana rachada, ditaram nos microfones
eriçados à sua frente o comando de rebate geral às tropas: “Para Angola depressa, e em força!”
E foi então a guerra da nossa inglória. Guerra decidida, como tudo sempre o fôra, no silêncio implacável do seu gabinete de fantasmas e de sombras.
Pesadamente, a máquina militar começou imediatamentea mover-se nas vastas arrecadações dos quarteis e paióis, e por entre sacudidelas e engulhos, lá foi arrancando.
Continua...