A Damba está aberta a todos nós.
Por Miguel Kiame
Eram aproximadamente sete horas, numa manhã fria e cinzenta, densamente abonada de nevoeiro, quando me despedi da Damba. Na véspera da partida, depois de uma tarde assolada por uma chuvinha intermitente, por volta das 18.00 horas, alastrou-se de forma assombrosa, uma vaga de nevoeiro cuja opacidade não permitia identificar um poste de iluminação a uma distância de cerca de duzentos metros. É recorrente este comportamento do micro clima da banda que venho experimentando nos últimos anos. A título de exemplo, ano passado, na mesma altura do ano, os termómetros registaram a antipática temperatura de 12º C, em plena estação quente. Na Damba, é bem possível ligar o Natal ao frio e à lareira, como acontece no hemisfério norte.
Dias antes, estava eu e o Tony Tungo (na imagem) a fazer exercícios de medição comparativa das altitudes de várias localidades e chegamos a conclusão de que as regiões que apresentam maior
incidência quanto aos níveis pluviométricos, frio e nevoeiro, são exactamente aquelas situadas a altitudes acima dos 1.150 metros. Isto, em parte, justifica a existência de micro climas tão
díspares entre regiões tão circunvizinhas como Damba, 31 de Janeiro e Nkama-Ntambu, por exemplo, em que a primeira apresenta um clima mais húmido e mais frio do que as duas últimas.
Desta vez, quebrei o record de permanência ininterrupta na Damba, dos últimos quarenta anos. Foram 15 dias, tempo que me permitiu fazer esses ensaios e brincadeiras. Nesse período, também tive o
privilégio de tentar voltar a ser o que havia sido naquela longínqua e briosa época pueril e juvenil. Porém, foi uma tentativa vã porque os tempos não voltam mais e são outras as motivações,
diferentes os interesses, as prioridades, os argumentos de razão…Mais do que isso, os contextos político-sociais e económicos. Essa tentativa teve o condão de não evitar um recôndito sentimento
de saudade cuja satisfação jamais encontra eco e uma sensação de impotência em despir-me totalmente dos impulsos e hábitos dessas modernices a que nos tornamos irremediavelmente reféns.
Oportunamente, eu divulgara por esta via, o convite / repto sob o lema que adoptei como título desta crónica, com o objectivo de levar à graciosa vila a nossa solidariedade, o nosso calor e
habilitar-nos a uma generosa descompressão que sempre experimentamos quando largamos o desvario e o stress de Luanda que fazem cair aos pés o coração de qualquer citadino. O convite era viver a
Damba tal como a conhecemos com a sua ambiência social desprovida de pruridos e esquemas de classe, enfim, saborear a brandura e frescura do clima temperado, em detrimento do sufoco da grande
Luanda.
Pessoalmente, minha decisão sobre a matéria já faz parte do passado. Há mais de cinco anos que por essa ocasião mobilizo o meu aparato logístico em busca daquele conforto. Infelizmente, este ano
não me fiz acompanhar da “família real” por motivos de vária ordem. Não foi fácil sustentar a minha decisão perante a inclusão desse novo elemento tão desmotivador, mas a certeza de que a decisão
não era o resultado de um acto inadvertido, deu-me uma alma nova, por isso, segui viagem.
Perante a situação de excepção, viajar sozinho, confesso que muitos fantasmas passaram pela minha retina e, vezes houve, em que o tremor provocado por essas ideias fantasmagóricas quase que me
faziam recuar na minha decisão. Porém, não se tratando de uma decisão intempestiva porque devidamente amadurecida, a viagem a Damba sempre aconteceu e, por sinal, mais cedo do que o previsto.
Viajar, nesses moldes, significava, por outro lado, assumir sozinho, os riscos da imprevisibilidade da viatura e das louquices que vão fazendo morada nas nossas estradas, mas também desfrutar da
liberdade no agir sem as limitações decorrentes dos cuidados a ter quando se viaja com crianças. Fazendo jus a essa liberdade, a primeira inovação que introduzi, foi a mudança de rota. Considerei
ser fascinante reviver e sentir os efeitos paisagísticos da rota Luanda, Ndala Tando, Lukala, Samba Cajú, Camabatela, Negage…
Segundo informações não confirmadas, a diferença em termos de distância, é de cerca de 100 Km. Se me perguntarem qual dos trajectos é o melhor, a resposta como é evidente, nunca será contundente
nem categórica. Temos que relativizar de acordo com os benefícios que se pretendem colher da viagem. Para ganhar tempo é preferível, por enquanto, a via Luanda Caxito, não obstante essa mesma
começar a ganhar indícios alarmantes pelo susto quase permanente que os buracos nos pregam. Se juntarmos a esse infortúnio o complicado e desgastante traçado resultante de um relevo geográfico
muito acidentado, com cerca de 100 Km de sobre e desce abruptos e de curvas e contracurvas agravadas numa estrada descaradamente estreita, inclinamo-nos a optar pela rota do famoso planalto de
Camabatela.
Não tenho dúvida que é a mais cômoda. Quanto ao aspecto da beleza paisagística têm ambas a mesma excelência, isto é, são surpreendentemente bem dotadas, constituindo uma rica fonte de inspiração
inesgotável. A Divina Providência dotou à nossa natureza recortes de formosura inigualável. Na verdade, fiquei boquiaberto perante a exuberância daquela paisagem e questionei-me, vezes sem conta,
a razão porque a minha memória não tinha conservado tão belas imagens.
As reacções ao convite / repto atrás referido, de tão ténues que foram quase que soaram em surdina e imperceptíveis. Assim, marcaram presença na Damba, além do meu companheiro e vizinho, Tony
Tungo, com o qual partilhei verdadeiros momentos alucinantes, pela cumplicidade que nos é característica, pela diversidade temática das nossas tertúlias sempre acaloradas, pela semelhança de
pontos de vista e interesse em fazer qualquer coisa, o mínimo que seja, para essa Damba, para demonstrar aos indecisos e propagadores da teoria do caganço às práticas feiticistas que esses medos
são infundados e não passam de “desculpas de mau pagador”. A Damba está aberta a todos nós. Cada um de nós pode fazer algo interessante. Não se precisam de projectos megalómanos, mas de pequenas
realizações que somadas potenciarão as premissas para o desenvolvimento sustentado do nosso vilarejo.
Passou por Damba, nesse período, a Tina Rescova que está a surpreender tudo e todos com o seu projecto do Kintoto, situado imediatamente a seguir ao Rio Lueka, para quem se dirige a Maquela do
Zombo. Com instalações provisórias colocou a disposição dos munícipes e não só, de uma gama de produtos frescos e bebidas. Toda a gente pode, com notável economia de tempo, abastecer-se a preços
de mercado local daqueles produtos. Pelo que me apercebi, o projecto, cujo esqueleto das instalações definitivas já se encontra no local, constará de um armazém para comercialização de produtos
diversos, um contentor frigorífico, já instalado e pronto para fornecer gelo e uma bomba de combustível. É um esforço assinalável que vale a pena fazer menção e que se está a juntar ao do
Domingos Paulo, cujo sucesso dispensa comentário.
Nelo Tungo (Manuel Graças a Deus, a esquerda) com os seus pais na Damba
Nelo Tungo e descendentes, num rasgo meteórico, também marcaram presença. Com ele e descendentes, os pais dele (o casal septuagenário e sempre bem disposto) e o já referido meu
companheiro Tony, fizemos uma rápida incursão até Kibokolo, numa visita familiar. Kibokolo está a reerguer-se fantasticamente! É bonito ver o que se está a investir naquela Comuna de Maquela do
Zombo. A escassos metros da sede da Comuna divisa-se uma soberba moradia em grandeza, qualidade arquitectónica e sumptuosidade. Em frente, um luxuoso hotel de fazer inveja, com traços
arquitectónicos orientais, e mais adiante, imensos campos cultivados com variados produtos, um complexo de piscicultura que já começa a abastecer a população de peixe fresquinho (que grande
exemplo de combate a fome) e uma população bovina, ovina e caprina de dimensões assinaláveis. Lamento não dispor de mais elementos para divulgação desse grande empreendimento cujo mentor e gestor
é o cidadão Mawete. As minhas felicitações.
Precisamos de muitos “Mawetes” para a nossa região. Felizmente, eles existem, em potência e em capacidade de realização financeira, mas está difícil desabrocharem, porque tarda a tomada de
decisão. Antes tarde do que nunca, por isso, tenho fé que florirão porque jamais permitirão que seus créditos fiquem em mãos alheias. Que Deus nos oiça!
Continua...