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26 Aug

Ser professor, na aldeia

Publicado por Miguel Kiame  - Etiquetas:  #Coisas e gentes da Damba

Ser professor, na aldeia

 

Por Miguel Kiame

 

Um dos dias mais difíceis da minha vida foi aquele em que o Chefe de Posto (actual Administrador Comunal) me foi atirar ao Kimukanza. Eu não tinha noção da realidade que me esperava. O Chefe, conhecedor da situação, nada me fez transpirar, talvez com o receio de me desmotivar.

Quando chegamos a aldeia e me disse que o posto escolar onde havia de assumir as funções era aí, o meu coração reagiu com um choque de aflição. Perdi, momentaneamente, o controlo das funções biológicas. Levantei os olhos para um horizonte que não vislumbrava, fiquei imobilizado, com os olhos rasos de lágrimas, as pernas tão trementes que pareciam varas verdes. Em fração de segundos fiquei ensopado de suor. O Chefe de Posto, que ao longo do trajecto se manteve sisudo e silencioso, balbuciou, friamente:

- Sr. Professor, conte com o meu incondicional apoio e do soba aqui presente. Bom trabalho!
Posto isto, meteu-se no seu Land Rover e acenou-me o adeus.

Tive que arregimentar a minha reserva energética espiritual e pôr-me fora do subterrâneo em que a desolação me colocara. Acompanhei a trajectória do soba até ao meu novo aposento, numa casa escancarada, fedorenta e imunda. Os cabritos, os porcos e as galinhas tinham livre acesso à casa, não fazendo cerimónias em descarregar dentro dela os seus excrementos e urina. A minha cama era de um bordão muito ressequido, com vias secundárias, terciárias e túneis bem delineados pelos salalés.

Uma cadeira de madeira de cor escura, fruto de transformações e metamorfoses sofridas ao longo dos tempos, fazia o papel de banca de cabeceira e suporte para alguns objectos de apoio escolar.Fora de casa, a sensivelmente 50 metros, estavam alguns alunos, desfilados a entrada da Escola que era um barracão com duas divisões, sem portas, nem carteiras.

A única mobília que a Escola tinha era uma mesa muito rústica a servir de secretária e um quadro preto em péssimo estado de conservação. A forma mais plausível que encontrei para amenizar o meu estado de espírito sacudido por um natural apavoramento, foi dirigir-me aos alunos, crianças paralisadas pela ânsia e pelo desconhecimento da minha actuação. A língua veicular não era suficiente para transmitir o meu pensamento e as minhas ideias porque grande parte dos petizes não sabia falar português.

Era mais uma dificuldade a acrescentar às inúmeras que tinha elencado. O compêndio de didáctica não previa essa insólita situação pelo que a metodologia a adoptar, no caso específico, seria da minha inteira responsabilidade e espírito de inovação. Por mais aguda que fosse o nível de inspiração, teria sempre problemas para que as soluções a adaptar florissem de forma providencial: um professor, três turmas, 2 períodos de laboração contínua, ensino bilingue, sem carteiras nem qualquer outro material didáctico. Que rodilha haveria de ter, para suportar tamanha carga, um jovem de 17 anos?

Conformei-me rapidamente com a situação, especialmente quando deparei que o Soba estava a dar o melhor de si para me sentir feliz em casa. De vez em quando, assumia ele próprio o controlo da cozinha para obter melhores resultados e sentir-me mais a vontade. Era uma atitude de profundo significado, tratando-se de um Soba, inserido numa sociedade tradicional, acentuadamente machista.

Então, abri-lhe o jogo e disse que eu também sabia fazer alguns pratos e que poderíamos, quando necessário, fazermos a nossa patuscada. Fiquei satisfeito porque o meu amigo soba aceitou não só a proposta inicial como também permitir a compra de alguns utensílios domésticos como: fogão a petróleo, copos, talheres, detergentes, …

Ao nível profissional, a primeira medida que tomei, com o beneplácito do soba, foi mandar chamar todos os encarregados de educação para uma reunião de apresentação e concertação de estratégias com vista a prossecução dos objectivos a que todos nos propúnhamos. A reunião aconteceu num sábado, após as actividades lúdicas: formatura, noções de posicionamento em sentido, para o canto do hino nacional e/ou para receber ilustres visitantes, limpeza das salas e pátio e canto coral.

Foi um encontro muito aplaudido pelos encarregados de educação que se predispuseram em ajudar no que fosse necessário para o êxito das actividades docente e educativa. Comprometeram-se em capinar a aldeia para deixar de ter o aspecto de um manto de retalhos o que, na verdade, aconteceu. Com a chegada do professor, a aldeia ganhou alguma decência e movimento.
Organizei as aulas em dois turnos lectivos: de manhã, a pré-primária e a 1ª classe, na mesma sala, e a tarde a 2ª classe.

Foi um sacrifício muito grande congregar os meninos, muitos deles apáticos e carentes dos carinhos dos pais. Recordo que o início das aulas ditou a separação entre pais e filhos porque os pais habitavam, por via de regra, nas respectivas fazendas. Foi difícil para todos nós, professor e alunos, especialmente, os mais pequenos adaptarmo-nos ao novo modus vivendi. Para mim, os dias úteis passavam rapidamente face ao avultado trabalho lectivo.

Não tinha tempo para nada. Contudo, com o declinar do dia, começava a parte mais problemática. Escurecia tão rápido que nem me dava tempo para rever alguns apontamentos. O jantar era servido por volta das 18h30, o mais tardar. Depois dele, era xixi, cama. Com o cair da noite avolumavam-se os medos.

Nem o uso das técnicas de emprestar à vida um pouco de sabor, serviam para amenizar o clima tão pesado que se criava. Mergulhava para as trevas da noite escura e crepitante de movimentos de aves nocturnas e uivos de raposas. A cama, mais do que utensílio para o merecido descanso, comportava-se como um ninho de medo que me abalava completamente o espírito. Nos primeiros dias, acordava ainda a respirar insónia e o desconforto daí resultante. Mesmo assim, extenuado, ia dar as aulas.

O meu quotidiano estava irremediavelmente ligado ao soba, meu anfitrião e meu amigo, por isso, tomei parte de muitas sessões em que ele, na sua qualidade de autoridade tradicional tinha que ouvir os argumentos de elementos desavindos da população. Os assuntos por mais díspares que fossem, envolviam sempre feitiço. Ouvi as mais desencontradas e rocambolescas histórias de feitiço que adensavam ainda mais o meu sentimento de inquietação e pavor nocturnos.

Certa vez, apareceram dois contendores a disputar o limite territorial das lavras. Depois de ouvidos os argumentos de razão de ambos, o soba tentou reconciliar os pontos de vista para a resolução da contenda, mas debalde. Ambos abandonaram o local com promessa de resolver o problema unilateralmente e por meios obscuros. Deveriam ser 16h00.

Volvidos cerca de 10 minutos, o céu ficou carregado de nuvens negras e a soprar um vento forte. Tudo levada a crer que estava iminente uma chuva copiosa. Então, começou a relampejar e a trovejar com uma cadência impressionante, como se se tratasse de uma bateria de morteiros. A aldeia escureceu completamente sendo iluminada, por breves instantes, pelo fulgor dos relâmpagos. O alvoroço tomou conta de todos. Até as galinhas e outros animais domésticos não se mostraram insensíveis ante a fúria em crescendo da mãe natureza. Não se visualizava nenhuma vivalma. Contudo, com a mesma rapidez como o temporal apareceu, desfez-se.

O dia voltou a normalidade acusando já a luminosidade crepuscular. Os dois contendores, de adversários ferrenhos, transformaram-se em dois homens de relacionamento ameno, dirigindo-se ao soba para dizer que iriam seguir as suas instruções, isto é, o estabelecimento cordial dos limites das lavras. Postos em casa do soba, declararam:

- Soba, acabamos de sair daqui irredutíveis nas nossas posições, como se apercebeu. Do nosso ponto de vista, a resolução do nosso problema passaria pelo uso de forças estranhas (faíscas) e ganharia quem fosse mais forte. Travamos uma batalha sem quartel, muito renhida e, no final, chegamos a conclusão que não há vencedor. Temos o mesmo poder de fogo e nenhum de nós está em condições de derrubar o outro, por isso, vamos adoptar uma solução conciliatória, como a que o soba estava a sugerir. Viemos dar a conhecer ao soba essa nossa concordância.

- Ok, eu já desconfiava – disse o soba. Mas por terem faltado ao respeito ao soba, tragam dois garrafões de malavo e dois galos.

- Assim faremos, soba – anuíram prontamente os dois adversários.
Esse é apenas um exemplo de vários quebra-cabeças que o soba tinha que enfrentar e quase todos com ligações ao feitiço.

Os meus fins-de-semana eram desoladores. Por vezes, ficava praticamente sozinho na aldeia, porque os alunos recolhiam todos às lavras onde se encontravam os pais para reforço da ração de reserva semanal e desfrutar do calor da restante família. Raramente, os pais vinham a aldeia para se encontrarem com os filhos e com eles passar o fim-de-semana. Três semanas depois, resolvi ir ao Posto Administrativo do 31 de Janeiro para passar o fim-de-semana com o meu amigo e colega DD.

Preparei-me mentalmente para a caminhada a pé, ao longo da semana. Mais do que a distância e o esforço físico o meu principal receio eram os animais ferozes. Eu sabia da existência de felinos porque já havia claramente visto duas leoas mortas que circulavam num grupo aproximado de 11 leões. Por outro lado, uma das pontes que teria que atravessar antes de chegar ao destino, estava em mau estado de conservação.

Quando chovesse a potes, nem sempre era possível a travessia do rio porque o mesmo transbordava carregando tudo o que se situasse no seu leito. Tentei angariar interessados que pudessem partilhar o percurso comigo. Infelizmente não deu. Não faltou quem me encorajasse a fazê-lo citando exemplos de pessoas que fui conhecendo e que faziam sozinhas o percurso. Na noite da véspera da partida, aumentou substancialmente o estado de ansiedade que se juntou aos temores nocturnos ainda mal sarados, cortando-me, por completo, o sono.

Quando agora, por instantes, submerjo na escuridão da minha memória e trago esses factos ao consciente, admira-me a força de carácter que tinha para enfrentar essas situações de angústia. Nunca recuei e nunca me passou pela cabeça a tentação de renúncia ou desistência, como frequentemente acontece agora.

No sábado dia D, organizei o kit com os utensílios estritamente essenciais para o fim-de-semana. Depois das aulas, despedi-me dos alunos e um grupo deles fez o carinho de me acompanhar até ao rio Konzo, cerca de 5 km do meu Posto Escolar e onde se situava a aldeia com o mesmo nome. Fui a casa do soba que me recebeu com as devidas honras. Não faltou o copo de malavo e ginguba com mandioca fervida. Assim mandava a tradição e assim se agia.

O soba fez o favor de me arranjar alguém que me acompanhou até ao Kikongo, uma aldeia vizinha, e que fica, mais ou menos a meio da distância global. A companhia foi agradável e quando menos esperava estávamos no Kikongo. Kikongo foi das aldeias mais afectadas pela fúria colonial. Nessa altura, contava com menos de 5 casotas, denunciando claramente as feridas ainda mal saradas do conflito armado colonial. Paramos para me despedir do meu acompanhante que me levou junto de um homem cego, bem-falante e que parecia ter o controlo do tudo o que se passava a volta da região. Cumprimentou-me efusivamente e deu graças a Deus pelo encontro. Já sabia o meu nome:

- É o professor Miguel?

- Sim, sou eu. Como soube o meu nome?

- Oh! Caro amigo, a mim, nada me escapa. Domino a informação de tudo que se passa na nossa região. É verdade. Parece que estava a adivinhar que o professor iria passar hoje. Estava para ir ao rio, mas decidi não ir. Era o pressentimento da sua passagem por aqui.
Como se tivesse também pressentido o medo que me invadia, adiantou-me sossegando:

- Hoje o dia está lindo, certamente não teremos chuva e o professor Miguel vai andar na paz do Senhor. “Dyata sinza kya toloka…”

Esta é uma expressão que faz parte do “Nkwo”, uma saudação típica do bakongo em que se augura tudo de bom ao visitante. Mesmo que encontre troncos no percurso da viagem, serão irremediavelmente destroçados pelos pés firmes do caminhante.

Este é, grosso modo, a ideia subjacente naquela expressão do ritual mukongo que se designa por “Nkwo”. O meu estado de espírito, contrariamente ao que eu previra, estava em alta. Do Kimukanza até ao Konzo, agraciado pela simpática companhia dos meus alunos. Do Konzo ao Kikongo pelo acompanhante expressamente cedido pelo soba. Do kikongo a sede do Posto Administrativo do 31 de Janeiro, pelas palavras animadoras e cheias de optimismo do meu último anfitrião. O medo cedeu lugar à coragem e parti consciente de que tudo haveria de correr bem.

Fiz cerca de uma hora para vencer a última etapa da caminhada, sozinho, cantarolando, firme, completamente animado, trocando o ritmo e a velocidade do passo. Quando menos esperava, estavam à vista a torre do tanque de água e da Igreja os dois equipamentos sociais mais altos do Posto Administrativo. A minha chegada foi festejada pelo meu colega, DD, mas também por alguns dos meus antigos alunos.

Aquele fim-de-semana foi, na verdade, uma grande aventura que me proporcionou mais maturidade e um conhecimento mais profundo dos usos e costumes da região. Fiquei, diga-se em abono da verdade, vacinado e apto para enfrentar essa realidade. Já poderia viajar, sem rodeios e medos, muitas vezes, infundados.

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