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24 Aug

Desloco-me à Kaunga (Damba) para o trabalho presencial de campo.

Publicado por Miguel Kiame  - Etiquetas:  #Coisas e gentes da Damba

Desloco-me  à Kaunga (Damba) para o trabalho presencial de campo.

Por Miguel Kiame

Regressado de Lisboa, depois de quase três meses em terras lusas em tratamento da esposa, rumei, acto contínuo, para Damba, na minha quase-primeira habitação, obviamente, no Kinzenze. Estava de corpo e alma envolvido na programação e preparação das condições ideais para o lançamento da actividade agrícola do ano, como normalmente acontece, na Damba, por volta dos meses de Julho a Setembro.
 

A safra do ano anterior, não sendo de encher os olhos, também não foi má de todo, constituindo-se, tal facto, um verdadeiro estímulo para uma nova empreitada.
 

Duas vezes por semana, deslocava-me à Kaunga para o trabalho presencial de campo, para os encontros necessários com o pessoal, para a definição das áreas a serem desbravadas, para elencar o rol de materiais e insumos necessários, enfim, tentando ser mais genérico, para gizar as estratégias e procedimentos com vista a ultrapassar os imbróglios, as resistências e os escolhos que se colocaram ao longo do percurso da temporada agrícola anterior.
 

As idas a Kaunga não seriam tão desafiadoras e até entusiastas se eliminássemos desse cenário uma figura tão importante como é o RAS, um amigo comum e de longa data, entre mim e o meu falecido Sogro. Através deles (RAS e sogro) consegui a parcela de terra que tenho. Mas o RAS é muito mais que isso: nas minhas longas e reiteradas ausências ele faz-me o obséquio de orientar o pessoal e prestar-me a valiosa e pertinente informação a cada momento. Estou muito grato pela relevante ajuda. Não obstante a isso tudo, o meu amigo RAS tem outra faceta deslumbrante que me embriaga e encanta, a de um exímio contador de histórias.

O seu fôlego retórico e denso repertório emanam de histórias vividas, histórias apuradas do seu passado de uma juventude irrequieta e viandante. Propenso à réplicas irónicas, ele tem sempre uma historieta para cada circunstância: como magnífico caçador de elefantes, como militar desertor do exército colonial, apanhado a poucos quilómetros da fronteira com o antigo Zaire (RDC) onde pretendia associar-se aos combatentes e dar o seu contributo à causa da revolução angolana, como militar da LCB das extintas FAPLA e, finalmente, como refugiado interno e nómada pelas matas e aldeias do Uíge, no período mais atroz da guerra fratricida.

Para quem não sabe, o RAS é de raça branca, criado desde a primeira infância no 31 de Janeiro (Nsoso). A forma como fala e articula a língua kikongo é de se lhe tirar o chapéu. Quantos autóctones gostariam de falar, pelo menos, metade do que ele fala e com um léxico tão diversificado e aprumado. Apraz muito ao RAS contar as suas histórias em kikongo porque, segundo ele, consegue utilizar melhor determinados artifícios linguísticos, expressões idiomáticas como, aliás, é apanágio de um bom contador de histórias.

A sua expressão oral, a musicalidade que imprime ao discurso e a respectiva dicção, identificam-no como originário da região do Nsoso. Todavia, essa característica empática não é tudo, há ainda o registo incontornável das iguarias e deliciosos pratos da cozinha da prezada esposa do RAS, uma mulher de nervos inabaláveis, mas humilde e dócil na sua forma de ser e estar. Por isso, é sempre difícil regular o tempo de permanência na Kaunga por causa das razões que acabei de evocar.

Então, há que reinventar tempo para tanta gama de encantos e de situações da vida campesina.
Quando não vou ao Kaunga, quedo-me, naturalmente, na sede. Sede significa minha quase-primeira residência, no Kinzenze, sede conota-se também com o centro onde funciona a Administração do Município e áreas circunvizinhas.

Em casa, ocupo-me das tarefas domésticas, escuto música, leio, escrevo ou escalo umas visitas de circunstância a alguns povoados para diversificar o nível e a qualidade de companhia com gente indefinida e disponível a tecer uma boa conversa fiada, envolvendo a vida, o quotidiano.

Espanta-me, por exemplo, o facto de raramente as pessoas apresentarem como dificuldade, a falta gritante de transporte escolar para os alunos que se dirigem diariamente às escolas implantadas na sede. Se nos imaginarmos no Kazumbi, só para apontar essa paradigmática aldeia, estaremos a falar de 15 quilómetros que separam a aldeia da sede, o que perfaz um percurso diário dos “módicos” 30 quilómetros para cada dia lectivo. Isto brada aos céus! Esta embaraçosa situação impõe ao aluno, na sua maioria em fase de adolescência, um esforço físico hercúleo.

Quando se apresenta ao professor está física e psicologicamente destroçado, com o campo de atenção completamente difuso, tendo que se recorrer às últimas reservas energéticas, já em fase de exaustão, para conseguir manter o foco da sua atenção na matéria de ensino.

Em ocasiões anteriores, me debrucei sobre essa problemática, infelizmente, ela nunca encontrou eco e respaldo adequado das autoridades quer locais como provinciais. Eu atrevo-me a estender o campo das responsabilidades a todos nós e até aos professores a quem compete não só instruir, mas também desenvolver uma cadeia empática que lhes possibilite vivenciar os problemas que afectam toda a dinâmica do processo de ensino – aprendizagem do aluno.

Os meninos de Kazumbi e doutras aldeias mais ou menos equiparadas em termos de distância, devem, na verdade, ser motivo de grande preocupação, no que ao transporte escolar diz respeito. Esta problemática, traz à luz do dia, uma situação muito curiosa, merecedora de ser considerada um verdadeiro caso de estudo se considerarmos o facto que a história regista e que aponta para o Kazumbi a origem de grandes talentos da Damba, sem desprimor para os outros, independentemente da sua origem e localização.

A verdade é que os talentos a que me refiro, todos eles se submeteram, ao longo do seu processo de ensino – aprendizagem, a essa dolorosa experiência de 30 quilómetros, andados e sofridos diariamente com um grau e espírito de estoicismo sem igual. Falar em 30 quilómetros a pé é obra que dispensa apresentação.

Ora, se alterarmos o ângulo de análise e cogitarmos que um garoto marque, por hipótese, um passo com a dimensão de 50 centímetros, em 30 quilómetros, equivalentes a 3.000.000 de centímetros, fará, nada menos nada mais que 30.000 passos, pouco antes de se apresentar ao professor e outros 30.000 para regressar à casa, depois de uma estafante jornada escolar.
Isto é inacreditável, uma realidade onírica, quer dizer, do mundo dos sonhos.
 

Tente, qualquer um de nós, marcar 100 passos para ter a noção do martírio que é suportar, sem apelo nem agravo, 60.000 passos, por dia!
 

Simplesmente triste e vergonhoso! Pense nisto!

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