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02 Sep

Os meus sinais particulares

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #Coisas e gentes da Damba

Os meus sinais particulares

Por Miguel Kiame

 

 

Os meus sinais particulares

Hoje carrego comigo sinais particulares no corpo cuja aquisição remonta ao ano de 1963, num período de férias em que incentivado por um primo e com a minha consciente anuência, resolvemos, ambos, passar uns dias de férias em casa dos pais dele, numa aldeia que dista cerca de 20 quilómetros da vila da Damba em direcção à Maquela do Zombo.

 

 

Confesso que fiquei muito satisfeito porque era uma oportunidade para mudança de ares, ampliar o conhecimento para novos horizontes e criar novas amizades. Andamos mais de metade do trajecto a pé, depois beneficiamos de uma boleia de um carro militar. Refira-se que o pai do meu primo, o conhecido Soba Catorze, era Regedor e bastante conhecido pelos militares portugueses.

 

 

Isto facilitou, sobremaneira, a boleia. A aldeia do Soba Catorze era quase um oásis ao longo daquele percurso por que as demais aldeias anteriormente existentes haviam sido literalmente arrasadas pela tropa colonial e os seus habitantes se refugiado na vizinha República do Congo. Eram ainda bem visíveis as marcas da guerra. 

 

 

No que se refere aos focos habitacionais, a aldeia não tinha mais que uma dúzia de casas. O ambiente geral da aldeia, já de si pacato, transpirava também um ar melancólico, de medo e desconfiança face ao momento político e militar que se vivia. Tirando as crianças que ainda irradiavam um vapor de boa disposição, os adultos pareciam estar esvaziados de todas as emoções positivas. A vida era vivida sob a batuta de um compasso monocórdico. De manhã cedo, depois do pequeno-almoço, toda a gente partia para as lavras. Havia dias que a aldeia ficava completamente vazia porque até as crianças eram carregadas para as lavras. Para não tornar a situação ainda mais enfadonha, o velho soba aconselhou que alternássemos os dias de ida a lavra com os de folga. Mas como nos dias de folga não havia nada a fazer na aldeia, a ocupação era caçar passarinhos, fazer armadilhas para apanhar animais selvagens. 

 

 

Levava já cerca de uma semana de férias e, num daqueles dias de folga, resolvi ficar na aldeia, recusando-me a ir caçar. Por ironia do destino, nesse dia, tinham ficado muitas crianças, dentre elas, duas irmãs muito bonitas que eram difíceis de apanhar. Havia uma disciplina de ferro em casa dos pais delas e só saíam quando estritamente necessário. Nesse dia, brincou-se muito e consegui obter simpatias das mesmas o que tornou a minha jornada diferente das outras. Já ao cair da tarde, quando toda a gente começava a regressar das lavras, estávamos nós sentados, em semicírculo, a ouvir, atentamente, uma das mocinhas que estava a contar histórias dos bombardeamentos de que a aldeia fora alvo. Numa das mãos, ela tinha um objecto metálico com base circular e com um parafuso na parte superior.

 

 

Mais tarde, ficamos a saber, por experiência pessoal vivida dolorosamente, que o referido engenho era uma granada incendiária que não rebentara na altura que fora lançada pela tropa colonial. A dada altura, a menina começou a contar que num belo dia, estando toda a aldeia em tumulto, como se tivesse sido sacudida por um relâmpago de pânico, por causa de um ataque iminente por parte de uma companhia do exército português, mal se lançou o grito para a fuga da população ainda restante na aldeia, ouviu-se o troar de uma bomba. Ela, como boa contadora de histórias, não quis simplesmente fazer imitação natural do som da bomba, dizendo: “buuummm…”, mas também acompanhou o referido recurso onomatopeico com o gesto, batendo no chão o engenho que tinha na mão. E, na realidade, o engenho mortífero, fazendo jus à veracidade da história que estava a ser contada, também rebentou. Subitamente, sentimo-nos todos envolvidos numa massa de chamas ardentes.

 

 

Foi um pressentimento dos mais terríveis porque, na hora, se transformou em realidade. O que até ao momento estava a ser o melhor dia das minhas férias acabou por terminar numa tragédia. Pouco tempo depois, conseguiu-se dominar o fogo provocado pelo rebentamento da granada e começou-se a usar o único recurso existente na aldeia: deitar-nos baldes de água por cima para amenizar os corpos transformados em chagas vivas. Agora faço o inventário das partes que me queimaram e não sei se a queimadura que tive foi do 1º, 2º ou 3º grau. Queimou-se a cara, o peito, a barriga, as pernas, os dedos das mãos, o antebraço e os dedos do membro inferior direito. Até a casa que se encontrava próxima do local do incidente também pegara fogo. Criara-se um verdadeiro embaraço na sanzala. A única saída era caminhar 20 quilómetros a pé até a vila o que se mostrava inexequível. Éramos cerca de seis petizes com idades compreendidas entre os seis e dez anos. 

 

 

De repente, acendeu-me uma lamparina que me fez lembrar que no período da manhã havia passado um jeep militar com destino a Maquela do Zombo e enchi-me de esperança que o referido jeep voltaria a Damba. Então, fiquei a beira da estrada a espera. As queimaduras embora fossem de proporções alarmantes, trinta minutos depois abrandaram de intensidade em termos de dores, pelo que consegui aguentar-me nessa batalha para preservar a vida. Como ardentemente ansiava, por volta das 19h00, deparei com o reflexo luminoso dos faróis de um carro.

 

 

Com reconhecida coragem, coloquei-me, no meio da estrada assinalando a paragem da viatura. Sendo rara uma situação do género naquela altura, gente aglomerada no meio da estrada, denunciando a existência de um problema, a tropa não hesitou e parou. Então, eu dirigi-me a eles para solicitar a boleia. Era dos poucos, na aldeia, a falar português, por isso, a minha intrepidez, chamou a atenção dos militares que depois de lhes fazer o ponto da situação, aceitaram, sem reservas, a minha boleia. Perante os clamores dos demais, disseram, secamente que só levavam o soba e o miúdo que era eu. O jeep não tinha capacidade para transportar mais gente. Fizemos o percurso com uma atenção especial dos militares que me ofereceram um pacote de bolachas que mal consegui comer.

 

Chegados a Damba, levaram-me à enfermaria militar e depois de uma breve observação do médico militar, fui transferido para o hospital civil do Concelho, acompanhado do médico militar e respectiva esposa que também era médica. A notícia espalhou-se rapidamente, como um sopro instantâneo e em pouco menos de cinco minutos o hospital entrara em alvoroço. 

 

 

Por instantes, esqueci-me do estado caótico em que me encontrava e fiquei tomado de uma esquisita sensação de medo da reacção da minha mãe. Tinha bem presente a forma exasperada como a minha mãe reagia a situações análogas. Eu estava completamente coberto de gases e ligaduras. Só a minha voz, evocava algumas esperanças de sobrevivência. A voz continuava nítida embora a impaciência em contar e recontar a história me estivesse a atormentar mais ainda do que as dores das queimaduras. Os médicos decidiram cancelar até a permanência da minha mãe para permitir o meu repouso, mas o choro incessante dela lá fora, fazia uma ressonância tal que o meu espírito vagueou, noite adentro, pelos carreiros mais impensáveis da aldeia do soba Catorze, não conseguindo pregar o olho. Até hoje, admiro-me do amor tão puro e tão vivamente sentido da minha mãe. Inclino-me, profundamente reconhecido, à sua memória de doce mãe, encarnando em pessoa o amor, a ternura, a afeição, o bem-querer … 

 

 

Foi praticamente ao raiar do sol que o corpo e a mente se renderam ao cansaço das horas a fio sem dormir. Quando tentei dormitar fui acordado porque estavam em curso os preparativos para a minha evacuação à sede do Distrito do Uìje, Carmona. Foi uma manhã carregada de muito nervosismo e ansiedade, fundindo-se essas sensações numa única substância, num único sentimento que cruzava mãe e filho: o medo que morava nos nossos corações pela incerteza do futuro. 

 

 

O que seria de mim? Teria capacidade para suportar as queimaduras penetrantes que haviam consumido quase metade do meu corpo? O que seria da minha mãe?
Estava com muito medo de encará-la mas fi-lo, observando-a com mais profundidade do que alguma vez imaginara: ela respirava pura insónia, não pregara o olho noite adentro, muito trémula, com ar cheio de compaixão e ternura. Amargurava-a o facto de não poder acariciar-me e afagar-me com o seu ósculo maternal. Vivi com muita intensidade, esse anseio, essa comunicação intuitiva e indirecta. Sem ter falado percebi que me dizia:
- Meu filho, não imaginas como estou extenuada. Bem te disse para que não te metesses nessa aventura, mas foste teimoso. Contudo aqui estou, embora impotente e sem meios para fazer o que quer que seja. Anima-me uma fé inquebrantável e que me diz que voltarás ao nosso convívio familiar. Não te esqueças de rezar, tenha fé e esperança. Ajude os médicos com o teu sentido positivo de encarar esse desígnio de Deus. Até breve, Malekama*. Tu vais, mas estaremos sempre juntos. Deus esteja contigo e te abençoe. Boa viagem, Wankambani*! (*nomes que carinhosamente utilizava para me chamar). Esta foi a mensagem que percebi da minha mãe e fui convicto do conteúdo da mesma. 

 

 

No aeroporto de Mbanza Mabubu, nem me assustou a ideia do meu baptismo num voo aéreo, nem me assediou a curiosidade e a ânsia que, em situação normal, embriagariam o meu mundo. Quisera a natureza cooperar da melhor forma durante a minha viagem, por isso, lavou o céu que esteve límpido e azulado e sem nuvens. Foi uma viagem calma que deve ter demorado cerca de trinta minutos. Quando chegamos ao aeroporto da então cidade de Carmona, os dois membros da tripulação da aeronave, com um olhar muito simpático, indagaram-me: - Então, gostou de viajar de avião?

 

Esbocei um sorriso forçado e respondi:- Sim!

 

 

Sem perca de tempo, fui transladado para a ambulância que me conduziu para o Hospital do Uíje. Esperava-me um médico credenciado que me avaliou minuciosamente e que me infundiu o primeiro grau de confiança e esperança. Tranquilizara-me dizendo que teria cura em pouco tempo. Adivinhava dias difíceis por causa dos curativos. Esta foi a realidade mais crítica e mais dura.

 

 

O primeiro dia, foi pleno de novidades. Não tinha muita mobilidade mas deu para me aperceber do meio que me rodeava: a enfermaria, o pessoal de enfermaria, os médicos, os outros doentes da mesma enfermaria, o jardim do hospital que me impressionou sobremaneira. Era a primeira experiência de um jardim tão vistoso e tão bem tratado. Mas o episódio do dia aconteceu no final da jornada, com a troca de turnos dos enfermeiros. Dera entrada um novo enfermeiro, FPP, que no reconhecimento do estado de cada doente, após a leitura do meu nome e do local de origem, descobriu que se tratava de alguém com o qual tinha laços de consanguinidade. Nisto, dirigiu-se a mim e perguntou se eu era filho do Sr. Kiame, no Kinteka. Ao responder afirmativamente, fez apelo a minha memória das vezes que ele passou por minha casa e que também eu estava presente. Depois de um pequeno esforço lembrei-me dele. Foi a melhor coisa que me aconteceu. Encontrara um verdadeiro anjo de guarda no meio daquele turbilhão desconhecido. 

 

 

A minha mão direita estava totalmente inoperante. Foi para ela que maior quantidade de fogo se abateu. Então, para a minha actividade diária, tinha que me ajeitar com a mão esquerda com a qual não tinha desenvolvido qualquer habilidade de manejo de materiais. Por causa disso, praticamente não conseguira almoçar. O mesmo não aconteceu ao jantar porque o meu parente FPP deu-me de comer. 

 

 

A primeira noite foi serena. Dormi profundamente como se me sentisse mergulhado num subterrâneo e onde só reina a acalmia. Acordei com o crepúsculo matinal, abrilhantado pela sinfonia lírica dos passarinhos. Acordei, igualmente, para a realidade. Por momentos, esquecera-me do terrível estado em que me encontrava. É como se me estivesse deslocado da minha órbita natural, transformando-me numa imagem virtual de mim mesmo e assim navegara, navegara, mas não chegara nem partira …, como diz o artista. Encontrava-me no mesmo leito. Voltara a primeira forma e lá estava o meu parente, FPP, com o seu humor muito cáustico.

 

 

FPP, o sinal gráfico que o próprio convencionara para se auto-retratar, era potencialmente explosivo, sem meias medidas, dono de si próprio, enérgico, contundente e resoluto cuja arrogância tocava os limites do absoluto. Amigo fiel de Baco. Em sua casa jamais poderia faltar o doce suco de uvas.

 

 

Contudo, esse enfermeiro tão temido por todos era, para mim, uma jóia de homem. Tratava-me com uma meiguice espantosa. 

 

 

Depois da primeira noite bem passada, o médico sentenciou-me o que viria a ser o meu calvário: os dias de curativo que passariam a ser alternados. Até hoje, não tenho memória de tamanha dor e sofrimento na minha vida. Os dias de curativo eram infernais. As feridas eram chagas vivas e para o tratamento era imperioso descolar os pensos das mesmas. Aí é que a vaca torcia o rabo! Contorcia-me com as dores de todas as formas e feitio. Embora o clima fosse ameno, a rondar os 20º C, eu ficava completamente encharcado de suor, chegava a perder o fôlego, porque os gritos e soluços fluíam irreprimivelmente.

 

 

O curativo começava às oito horas e prolongava-se pela manhã fora, com pausas forçadas para amenizar a intensidade das dores. Raramente almoçava no dia do curativo. As dores eram tão intensas que inibiam qualquer sentimento. A fome ou desejo de comer era literalmente sufocado. Sentia-me no inferno, envolvido no mais profundo padecimento. Só no declinar da tarde é que começava a sentir-me novamente pessoa com desejos, com esperança, porque vinha-me a memória a imagem e a mensagem de despedida de minha mãe, momentos antes da partida. Ela sempre me acompanhou, tive esse privilégio de senti-la presente a afagar-me. A imagem da mamã em vez de me deixar rastro de lágrimas, induzia-me uma força espiritual que me revitalizava as energias. Muito cedo me acostumei a esse exercício mental que me proporcionava paz de espírito.

 

 

Frequentemente, quando acordava desse martírio, tinha sempre uma visita ao lado, umas vezes conhecida outras vezes não. Ficávamos quase sempre mudos. Não me apetecia falar com terceiros para não perder o contacto com a mãe. E as pessoas insistiam:

 

- Fala, menino, o que está a sentir? Em que é que podemos ser úteis? 
Muitas vezes, a resposta era um fluxo grande de lágrimas escorrendo pela face, um dos poucos lugares do corpo não cobertos pelas ligaduras. 

 

 

Passaram por mim vários pacientes vizinhos de cama e de enfermaria. Um deles impressionava-se tanto com a minha dor que sofria e chorava comigo como se estivesse a experimentar, na sua própria carne, as dores que eu sentia. Pontualmente, a hora do curativo, lá estava ele a ajudar o enfermeiro e a encorajar-me. No final, ficávamos ambos a chorar. Fazia tudo que estivesse ao seu alcance para me demover da decisão de não comer. Quando não comesse também ele não comia. Pôs completamente de parte a doença dele para se ocupar de mim. Infelizmente para mim, o internamento dele foi fugaz e teve que me deixar. Sarou rapidamente. No dia em que teve alta, fez-me um sermão cujas palavras ditas pausadamente no sotaque da língua kikongo da zona de Songo, ainda conservo e sinto o calor das mesmas, passado mais de meio século:

 

 

- Gostaria estar contigo até ao dia da tua alta, mas não tenho possibilidades de o fazer porque vivo longe de Carmona e também longe do Songo. De qualquer forma, fique bem, fique com Deus. 

 

 

Eu e o meu amigo estávamos a muitos palmos de distância. Ele poderia ser meu pai, pela idade que exibia. Embora as nossas experiências evocassem épocas diferentes, a cumplicidade era o factor crítico de união. Eramos amigos de verdade.

 

 

Com o tempo, as feridas foram sarando e paulatinamente a natureza irrequieta de menino foi-se libertando. Os dias passaram a ser mais divertidos, explorando os contornos do hospital, fazendo novas amizades. As saudades também começaram a apertar. Já tinham passado cerca de 45 dias fora da minha vila graciosa do norte de Angola. Quarenta e cinco dias sem a imagem real da minha mãe, sem o seu carinho insubstituível. Finalmente, quando menos esperei, numa bela manhã, após o termo do turno, FPP foi ter comigo e disse-me, com ar triunfante:

 

 

- Arruma-te que hoje vais comer um bom funge de muamba de galinha. Após o grave incidente que tiveste, mandam as regras da nossa tradição, que a tua recepção deve ser brindada e saudada com o “sacrifício” de um animal. Está tudo a postos para o banquete de hoje. 

 

 

Eu não tinha bagagem. Quando fui evacuado estava envolto de ligaduras e lençóis hospitalares e nada mais. O traje utilizado fora-me oferecido. No nosso percurso para a casa de FPP que se situava num dos Bairros periféricos da urbe de Carmona, passamos pela Administração do Concelho de Carmona onde me foi garantido transporte de regresso para a Damba, no dia seguinte, o que providencialmente aconteceu, na hora e local combinado. Se fosse hoje, estaria perdido nas ruas de amargura da cidade do Uige, ou melhor, nem teria sido evacuado da Damba, onde eventualmente sucumbiria.

 

 

 
 

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