Pete Cusso, o flash de um amador
Por Miguel Kiame
Pete Cusso, o flash de um amador
Nota prévia: O esclarecimento que se impõe, em função de alguns mal entendidos, é reafirmar que não sou historiador. Escrevinho crónicas narrativas com algum foco histórico, mas isto não faz de mim, decididamente, um historiador.
O primeiro contacto que mantive com o Pete Cusso (grafia oficial de Mpete Nkusu) data da segunda metade da década de 60 do século passado. Algumas imagens desse contacto permanecem difusas contudo ficou indelevelmente vincada na minha memória a sinuosidade do traço da via com alinhamento frequentemente não rectilíneo, encontrando, nas zonas mais baixas ora autênticas galerias de floresta densa ora pequenos tufos verdes acompanhando os declives e dobras dos terrenos, um quadro paisagístico de beleza arrebatadora com o verde a se desdobrar em variadíssimas tonalidades. As descidas acentuadas e abruptas, em tempo de chuva, obrigavam a que as rodas do pequeno Land Rover onde nos fazíamos transportar se revestissem de correntes de ferro para imprimir maior adesão das mesmas ao piso lamacento e escorregadio, acautelando, desta forma, os deslizamentos.
A curiosidade da minha condição de menino não deixou de registar o que efectivamente torna o Pete Cusso uma comuna muito especial e que faz dela uma verdadeira pérola: falo da extraordinária riqueza humana e da afabilidade do seu povo com forte orientação para o trabalho. Tive, ao longo da minha instrução primária, na Escola Missionária da Damba, um número sem conta de colegas originários do Pete Cusso. Muitos deles partilharam mais intimamente comigo, na condição de alunos internos, dividindo os mesmos espaços nas camaratas, refeitório, salas de aulas e locais para o trabalho socialmente útil que o regime de educação diligentemente nos impunha.
Quando comparados connosco, os alunos da sede do Município, a diferença era mínima e, em determinados aspectos como, por exemplo, a apresentação pessoal, alguns deles estavam muitos furos acima de nós. Saliento este pormenor para justificar o forte sentido de responsabilidade dos seus pais para com o trabalho e a manutenção de condições razoáveis para a educação dos seus filhos, longe do conforto e controlo familiares. Quantas vezes a nossa dieta alimentar não era reforçada com a ração de reserva que traziam das respectivas casas (kindungo, também conhecido por kitaba, kwanga, nkyabo, banana pão bem criada, ginguba …)! Éramos diferentes nas nossas origens geográficas dentro do mesmo Concelho (entenda-se Município), diferentes no sotaque, na dicção e mesmo na sonoridade e velocidade e até na musicalidade como se articula o discurso oral.
Para nós, os miúdos, era motivo para apimentar as nossas brincadeiras numa convivência absolutamente espectacular. Desde pequenino que os padres nos ensinaram o convívio com a diferença e com a manifestação plural das nossas especificidades regionais. Felizmente, hoje temos numerosos académicos, tecnocratas, generais, empresários e outros dos diferentes ramos da esfera da actividade social, oriundos do Pete Cusso.
A proximidade geográfica do Pete Cusso com a sede do Kibocolo, comuna de Maquela do Zombo, permitiu também que muitos pais optassem por mandar os filhos ao famoso centro de instrução escolar da Estação Missionária de Kibocolo, de orientação religiosa Baptista – Sociedade Missionária Baptista, fundada por volta de 1890. É por todos consabida a inestimável contribuição do referido centro em termos de escolarização e orientação profissional de muitos autóctones. A par da Escola Missionária da Damba, Kibocolo foi um dos pólos decisivos para o desenvolvimento multifacetado das nossas populações indígenas. Infelizmente, por razões que só ao regime colonial interessavam o seu funcionamento foi trucidado prematuramente.
A sede da Comuna é designada por Sakamo. Hoje, Sakamo é um local ermo, muito pacato com um índice de agitação quase a bater o zero. A última vez que por lá passei, 2017, encontrei o Administrador visivelmente desgastado com a sua sorte: carro avariado, gerador avariado, sem água canalizada, sem internet … digamos, completamente incomunicável com o resto do município e do mundo. Na verdade, a atmosfera anímica era desoladora. A leitura diagonal, que fiz aos rostos do pessoal que encontrei na sede administrativa do Pete Cusso, sugeriu a existência de alguma insatisfação porque as pessoas se sentiam perdidas e abandonadas, embora convivessem com outras ao seu redor.
É o que muitos designam de solidão acompanhada. Todavia, uma leitura diferente evocaram os rostos dos habitantes das grandes Mbanzas (centros populacionais) onde as pessoas compartilham, entre si, cada momento que se está a viver, irradiando, por isso, confiança e fé no árduo trabalho que desenvolvem e, obviamente, no fruto do mesmo trabalho. Uma nota de destaque é que uma percentagem considerável dos produtos da terra comercializados na Damba e mesmo em Maquela do Zombo e Uige tem como origem e proveniência a Comuna de Pete Cusso rica em feijão, milho, gergelim (wangila), pevide, ginguba, banana, batata, inhame, café e mais e mais …
O clima das terras altas do Pete Cusso não foge à característica geral do clima tropical da Damba com uma temperatura média anual de cerca de 21º C.
A serra de Kimbumba, também conhecida por “Mbumba a Nsi”, quer dizer, “Segredo da Terra”, é, de per si, uma região rodeada de muito misticismo. Em primeiro lugar, vale dizer que é das regiões em que o subsolo, cujo potencial minério ainda por explorar e dimensionar oferece reservas minerais de cobre, zinco, ouro e outros. Segundo se diz, a cordilheira do Kimbumba está na zona de transição do filão de cobre das Minas de Mavoyo e que vai confinar no Município do Bembe. Não tive a oportunidade de lá chegar mas da sede da Comuna, em dia de sol, é visível grande parte da sua extensão. A serra está normalmente encoberta por espessas colunas de nevoeiro que dão mais substância ao cenário espectacular e aos mitos que se apregoam a volta dela. A cerrada floresta tropical que envolve aquela cadeia de montanhas com uma invulgar quantidade de espécies vegetais e animais é um sério obstáculo à sua penetração. Contudo, reza a tradição oral que quando se circula pela floresta adentro só é permitido retirar dela uma única coisa, sob pena de se ficar a girar perdidamente no matagal. Os primeiros missionários católicos capuchinhos tinham uma fazenda naquela localidade cuja exploração praticamente terminou com o eclodir dos acontecimentos da guerra de 61.
O acesso à Comuna de Pete Cusso pode efectuar-se ou pela via do Pelo / Mpaza, a mais curta, porém a que se encontra intransitável, de momento, ou pela via de Maquela do Zombo até ao incontornável e famoso desvio de Soba Nanga. Soba Nanga é a porta de entrada que nos imerge ao coração da região do Pete Cusso. Qualquer viajante, ao chegar a essa aldeia, quase que se sente forçado a parar de forma que, num gesto imperceptível, entre em sintonia com a forma de ser e estar do “Nkusu”. Um verdadeiro cerimonial que ganha validação com os acenos dos populares querendo transmitir paz e tranquilidade ao visitante.
Soba Nanga é o receptáculo, a parte inicial do eixo onde se encaixam os sentimentos mais sublimes da nossa alma mukongo ao dar e receber as boas vindas, por outras palavras, ao viver sub-repticiamente o ritual do “Nkuwo”, sob o olhar silencioso do seu mártir e herói, o valoroso Soba Nanga.Esta brevíssima pausa conduz-nos a próxima aldeia, Yokola, depois de pacientemente contornarmos todos os obstáculos que a agressividade das terras acidentadas com fortes desníveis nos apresenta. Não obstante a isso há um sentimento agridoce: a inquietude provocada pelo estreitamento dos ângulos das curvas e o acentuado nível de inclinação, por um lado e a finura dos traços paisagísticos compostos por longas e frondosas árvores serpenteando e acompanhando o capricho natural do curso dos rios e riachos, espaçados por rasgos de um capim sempre pujante.
Nesse constante ziguezague, nesse delirante desce e sobe se evolui para a grande Mbanza Makanda. Ao chegar lá, é obrigatória a visita à casa do grande Soba Makanda. Antes disso, somos surpreendidos, pela positiva, por duas vivendas de construção recente e bem conseguida, um poiso que seguramente refresca e retempera as energias dos seus proprietários. Ressalte-se o bom gosto e o engenho para colocar o que a natureza nos oferece para o nosso usufruo. (Parabéns, General). Mbanza Makanda está disposta numa pequena encosta o que nos obriga a ter que subir até à residência do Soba Makanda e do seu jazigo. A circunstância impoõe, sem querer, um minuto de silêncio!
A trajectória conduz-nos sucessivamente às povoações de Lukoma, Mbanza Mpesi. Daí aportamos à famosa aldeia que dá pelo nome de Mbanza Nkuso. Em Mbanza Nkusu encontramos as ruínas da primeira Missão Católica construída por padres capuchinhos por altura da primeira evangelização de Angola. Destas ruínas se retirou a pedra com a qual se fez o lançamento da actual Missão Católica da Damba, por volta de 1948. O nosso percurso tem como próximos destinos Yanama e Vinda/ Kiwembo. Novamente, uma breve paragem se recomenda não pela espectacularidade de Vinda/Kiwembo mas por respeito ao Soba-Maior, ao Soba resistente e nacionalista convicto, Soba NDWALU MBUTA, cuja importância e influência como autoridade tradicional extraverteram os limites fronteiriços da Damba.
Finalmente, Kizala a aldeia circunvizinha à sede comunal, Sakamo.
P.S.: Informação com algum detalhe sobre elementos de geografia de Mpete Nkusu, convido os interessados a ler o artigo de JoJoan Vemba esclarece a situação de Nkuso Mpete no Portal da Damba e da História do Kongo.