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27 May

O Padre João Pedro foi assassinado, em 1961, por impredência própria !

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #Coisas e gentes da Damba

 

Por Miguel Kiame

 

 

 

 

 

O clima de guerra real estava instalado e com ele o nível elevado de periculosidade e instabilidade. A qualquer momento, o inesperado poderia acontecer. Não estava fora de cogitação a possibilidade de um ataque relâmpago e em massa com consequências gravíssimas para a nossa integridade física. Foi assim que a menos de 48 horas do nosso acantonamento, eis que ecoa o primeiro grande alarme de ataque irreversível por parte dos combatentes da UPA. Internamente, haviam sido tomadas todas as prudências. A nave tomara uma moldura difusa, muito por causa da penumbra que subitamente a envolvera. Notava-se uma agitação fora do normal. Padre Camilo entabulava uma conversa com o seu confrade, Padre Pedro João, que se adivinhava carregado de muita veemência, desalento e desconsolo. A gesticulação denotava um tom desesperadamente determinado por parte do padre Pedro João. Estavam em jogo dois pontos de vista contraditórios de encarar a realidade que se avizinhava. Padre Camilo propunha-se fechar liminarmente a porta e tudo o resto entregue à Providência Divina. Diversamente, Padre Pedro João alimentava a decisão de se colocar um tampão no átrio da Igreja, composto de alguns voluntários com alguma experiência em lides militares, com intuito de dispersar e defender uma eventual incursão da UPA na Igreja, o que, de per si, se afigurava absolutamente catastrófico. O sacerdote, a margem dos rudimentares princípios de segurança, colocou na testa um farolim para focar a distância oposicionamento do bando da UPA. O procedimento adoptado pelo clérigo adequa-se para uma faina com visos de caça animal mas nunca numa operação militar e em pleno teatro de guerra. Ao fazê-lo criou, ele próprio, o alvo fácil, em noite escura. Em poucos minutos, frei Pedro João foi vítima de uma decisão tão sem aviso: um projéctil fulminara-o, perfurando-o a testa onde justamente colocara o farolim.

O tiro mortífero fez eco no salão e na mente de cada um dos seus ocupantes. A princípio e por breves instantes, foi o silêncio metálico, logo a seguir violado por histéricas gritarias, provocando o pânico generalizado, suor, sufoco e angústia. A oração que estava em curso foi interrompida. Padre Camilo transfigurou-se. Derramou incontidas lágrimas de dor e tristeza. Algo obscuro e difícil de entender e aceitar estava a acontecer. Cada um a sua maneira, exteriorizava a dor e o desespero. A exasperação de tanta gente cuja responsabilidade pendia nos seus ombros tornara a atmosfera turva com proporções insustentáveis. Mas logo assumiu-se, no seu papel de líder, não se deixando abater pelo infortúnio. Tratou de tranquilizar o povo e encomendar a alma do confrade ao Criador. Tão rápido quanto o estado de desconforto irrompera se conseguiu recompor da aflição.

Transportou-se o cadáver para o interior da nave onde esteve em câmara- ardente, noite adentro.

Todos os cenários de aflição, de sensação de impotência e de elevados sentimentos de desespero navegavam de forma intensa e lancinante em cada um de nós mas jamais se levantara a hipótese da morte de um dos Homens de Deus aí presentes. Perante a crueza e dureza dessa realidade ficou mais nítido o desfecho da nossa desgraça colectiva. Nessa noite, ninguém pregou o olho.

Rezou-se e chorou-se até a exaustão. Dia seguinte, a preocupação foi cavar a sepultura mesmo por trás da igreja, executar-se o caixão e, finalmente, no meio da tarde, numa cerimónia extenuante e sofrida, o enterro.

O trágico acontecimento obrigou Sr. Padre Camilo a organizar o baptismo colectivo para todas as crianças que ainda careciam desse sacramento.

Morrer, sim, mas na graça de Deus. Fui um dos felizes contemplados nesse sacramento de iniciação cristã.

A nossa rotina diária começava com a participação da missa matinal, finda a qual as mamãs se apressavam a preparar o pequeno-almoço que era imediatamente devorado. Para nós, os miúdos, estava aberto o campo para as mais variadas brincadeiras. A percepção que tínhamos da situação, cuja indiferença tocava os limites do absoluto, permitia-nos estar a vontade e preencher o tempo na maior das quietudes. O futebol foi sempre a modalidade rainha. A meio dia, a nossa actividade lúdica era interrompida para que rezássemos o “Angelus”. À tarde, prosseguíamos até por volta das 17 horas, altura do toque do recolher.

A beleza da vida do adolescente reside no facto de viver profusamente. A fronteira entre a normalidade e o perigo é bastante ténue. Então, todos nós comprazíamo-nos nessa embriaguez porque a mesma embriaguez também nos protegia da crueldade dessa realidade tão atroz. Vivíamos completamente a leste de toda essa amargura que endoidecia os nossos progenitores e o abnegado padre Camilo que tinha sob os seus ombros o peso de mais de uma centena de vidas confinadas numa pequena igreja.

Estávamos em tempo de conflito em fase aguda e, frequentemente, tocava a sineta que nos sacudia num relâmpago de pânico.

– Ataque, recolher!

E lá íamos todos, de súbito, a entrar pela igreja adentro, numa confusão que lembra a torre de Babel. Se o toque fosse accionado próximo da hora da refeição, a baralhada era pior. Pessoas a entrar com panelas a ferver, comida por cozer, roupa por lavar, tudo por fazer. Nessas ocasiões, um vento quase sobrenatural fazíamos sair das nossas órbitas e aí sim, reconhecíamos que, na verdade, estávamos em tempo de guerra. Até agora indago-me a que se deviam aqueles comportamentos ordeiros de adultos e crianças. Quando chegasse a hora do toque da sineta, anunciando um ataque iminente, todos ficavam quietos. As convulsões intestinais próprias dessas alturas esfumavam-se, a ronha das crianças mimosas e respectivas choradeiras desapareciam. Só uma voz, distante mas presente, grave mas perceptível a dimensão da nave, se fazia ouvir. Sua postura imperturbável era igualmente presente e visível.

Não estava dominado pelo rancor de qualquer espécie, mas paralisado pela responsabilidade que o momento impunha. Então, com a sua voz angélica, convidava todos a oração.

– Meus filhos, vamos orar.

Com o fervor que o momento impunha, encomendávamos as nossas almas ao Criador, por intercessão da Virgem Maria, Mãe da Igreja Católica. A nave enchia-se de ardência espiritual e o barulho de canhangulos e gritos histéricos de guerrilheiros era abafado por cânticos e melodias angélicas que embalavam as crianças que minutos depois dormiam sonhando com o coro celeste.

Geralmente, quando o alerta coincidisse com a hora crepusculina, depois de embalados e vencidos pelo sono só assustávamos quando já a claridade do novo dia invadia a nave. Já novo dia, ressurgíamos das cinzas com uma vitalidade fortalecida, como se nada tivesse acontecido na véspera. E lá estávamos nós novamente no folguedo.

Com o passar do tempo, os adultos que partilhavam connosco o acantonamento na simbólica igreja da vila, passaram a ser requisitados para execução de alguns trabalhos camarários, a saber, enterrar os mortos, capinar a principal artéria da vila e áreas circunvizinhas. Todo esse trabalho era feito sob estreita vigilância dos representantes da máquina colonial que aliás eram os responsáveis pela requisição do pessoal. Por isso, para salvaguardar a integridade física dos mesmos, o senhor padre Camilo jamais poderia estar ausente, sob pena de a maior parte ser dizimada pelos colonialistas. A confiança já havia sido esfumada da névoa da sua memória, tal era a gana que alimentavam aqueles espíritos sanguinolentos.

No fragor da batalha, depois de diagnosticada alguma capacidade interventiva do pessoal da Upa pelas autoridades coloniais, estes não tiveram outra alternativa senão introduzir a aviação e tropas regulares do exército. Mas antes do aparecimento das tropas de infantaria, a população autóctone sofreu as mais sórdidas condições, chafurdando na indignidade da morte. A aviação utilizava aparelhos de pequeno porte e com nítida facilidade de manobra.

Giravam pelas aldeias a procura de qualquer vivalma que tentasse movimentar-se. Mal deparassem com as populações, o avião ia apanhar o balanço e altura e logo num movimento descendente voltava em direcção ao alvo e há poucos metros do solo levantava o voo e largava os mortíferos artefactos que por detrás do seu trovão semeavam a morte e a desolação das pacatas populações cujo crime era o facto de simplesmente terem nascido em Angola e não se identificarem com os ideais salazaristas.

Volvido algum tempo, apareceram os primeiros batalhões da tropa colonial.

Diga-se, em abono da verdade, que havia muitos militares portugueses que não se identificavam com a guerra colonial, manifestando uma autêntica postura jovial e primaveril enquanto outros se comportavam como autênticos verdugos, geralmente de tez sisuda e olhar permanentemente desconfiado. Os batalhões que integravam cabo-verdianos não se livraram de uma justa reputação de verdadeiros algozes.

Certa vez, um comerciante dirigiu-se ao soba do Kinteka para solicitar a cedência de alguns miúdos para trabalho infantil, no caso, seria a separação da ginguba da respectiva casca. O soba, a contragosto dos progenitores das crianças, angariou cerca de uma dezena delas que colocou na carrinha do comerciante para o trabalho infantil não remunerado. A miudagem estava muito alegre com a escolha, não por causa do trabalho ou eventual remuneração do mesmo, mas porque andar de carro era uma novidade e uma oportunidade a não perder. Entre a relutância dos pais em ceder os filhos, a necessidade de o soba dar vazão à uma ordem e a ansiedade dos putos em andar de carro, vincou a vontade do soba. Refira-se também que a distância era bastante curta, menos de um quilómetro, por isso, era possível exercer alguma vigilância da parte dos pais. O trabalho começou sem qualquer percalço até que apareceu um militar colonial e, para não variar, cabo-verdiano. Esse militar era portador de uma pequena pistola e dirigindo-se a uma das crianças, um primo meu, ordenou para que abrisse a boca. Na sua angélica ingenuidade, a criança com cerca de seis anos, acedeu à ordem do militar, mesmo desconhecendo areal intenção do verdugo salazarista. Nisto, saca da pistola e pergunta ao miúdo se ela conhecia o engenho mortífero. O meu primo, sempre de boca aberta, respondeu que não e para espanto seu, o militar introduziu o cano da pistola na boca do miúdo, depois de ter colocado a bala na câmara, pronto adisparar. Por sorte, apareceu o comerciante que desesperadamente gritou ao militar para que não cometesse tamanha barbaridade.

– Eh pá! Não faça isso. Eu conheço os pais das crianças e foram-me cedidos pelo soba. Como vou explicar um caso desses aos pais?

O militar não esboçou nenhuma palavra. Retirou a pistola da boca e pô-la novamente no bolso, tendo-se retirado, na maior calma, como se nada tivesse acontecido. A pronta intervenção do comerciante e o seu brado deprimente fizeram tomar consciência às crianças do perigo que o meu primo tinha corrido.

Este é mais um exemplo da lista infindável de actos de selvajaria praticados por alguns militares cabo-verdianos. Até ao momento que escrevo estas linhas não consigo perceber o que se passava na mente daqueles monstros e que tipo de doutrina arregimentava tamanhos instintos.

O Padre João Pedro foi assassinado, em 1961, por impredência própria !

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