Por Patrício Batsikama
RESUMO SOBRE A PERSONIFICAÇÃO DE SIMÃO TOKO
Antes de falarmos da personificação de Simão Toko, interessa-nos – primeiro – preparar a compreensão do leitor falando do mesmo conceito nos diferentes grupos etnolinguísticos angolanos.
Começamos no Sul, com o mosaico Umbûndu e os Herero . Quando morre Osoma (rei), o corpo passa pela mumificação e a separação da cabeça do corpo. Antes de se eleger e apresentar o novo líder existe um processo pelo qual o espirito do Osoma anterior deverá “imergir” no corpo de um dos candidatos, e este será iniciado e consagrado como líder. Isto é, ele representa a união das forças sociais integrantes.
Nos Lûnda o processo é quase o mesmo. Mwaat Yamvu personifica os espíritos dos nove guerreiros e fundadores do Império Lûnda e é a ponte entre os vivos e os mortos .
A personificação dos “espíritos dos Ngôla” é legitimável pelo Conselho de Mbênza (onde integram Makota, Malêmba) e pela pertença social (mudînda) que é, na cosmogonia mbûndu, a presença dos espíritos dos detentores de ngôla. Ora estes eram guerreiros (força, ngôla) e unificadores (união, ngôla) e simbolizam o espirito de Deus enquanto Kima Na Weza . É o caso de mwêne Ñjîng’a Mbândi.
Entre os Kôngo, a morte do rei era seguido num período de mumificação e, simultaneamente, momento de preparação para a escolha dos candidatos (Weeks, 1914: 36-38). O eleito é sempre aquele que os ngâng’a ñkîsi (sacerdotes) e o Na Mpêmba concordam que ele reúne maior número das características do Ñtînu. Desta maneira, realizavam-se dois rituais. O primeiro consistia na iniciação durante a qual o espírito do Ñtînu defunto passaria ao novo eleito. O segundo tinha a ver com a cerimónia simbólica operada por Na Mpêmba, toko mba, depois do novo eleito citar as doze gerações a que pertenceu o ceptro. Esse é o processo da personificação das características dos Ñtînu fundadores do Kôngo, enquanto espírito da união, no novo eleito (Jadin, 1963: 246-419).
Personificação de Simão Toko
Começamos por duas interpretações existentes sobre a personificação em relação ao sacerdote Simão Toko. A primeira reza que “Simão Toko” enterrado em Ntâya ressuscitou e vestiu-se no corpo do Bispo Dom Afonso Nunes. A segunda é o espirito de Simão Toko está no actual líder da igreja com sede no Golfo I, em Luanda .
A primeira acepção parece ilógica, mesmo para os menos cépticos. Também não nos interessa discuti-lo aqui por não se relacionar com nenhum dos conceitos de personificação aqui abordados. A segunda nos interessa, mas precisa de um prévio enquadramento explicativo, para evitar compreensões desvirtuadas. Vamos tentar situar o leitor.
O muntu – Ser Humano – é na concepção angolana uma construção de três “pequenas” substâncias . A primeira é o corpo: etimba em lyumbûndu; xitu ou mukutu em kimbûndu ou ainda nîtu em kikôngo. A segunda é o espírito: ocilêmbu ou ehâmba e lyumbûndu; kimalawêzu ou muxima ou ainda nzûmbi, em kimbûndu; mwânda em kikôngo. A terceira é vontade: ocipângu, ocisolelela em lyumbûndu; kwandala, kumesena em kimbûndu; wuzôlwa, wote em kikôngo.
Os termos em línguas angolanas explicam melhor de que se trata, e vamos resumir. O corpo é o santuário espírito, de modo que este dirige todos os actos do primeiro. Mas para todo acto já que o muntu existe pelos actos, a vontade (boa vontade) intervém necessariamente. Podemos exemplificar da seguinte maneira, na lógica cartesiana: o “corpo” pode estar em Lisboa, mas o “espirito” pode lembrar-se ainda da sua casa em Luanda ou no Lobito. Em relação a vontade, já há trabalhos específicos dos filósofos e psicólogos: todo acto realizado parte sempre da vontade (Schopenhauer, 2013).
O corpo de Simão Toko está estático em Ñtâya. Essa certeza é verificável. Mas é difícil verificar que o seu espírito também lá esteja estático. As características de uma pessoa parte de espírito e não o corpo. A vontade realiza-se consoante as estruturas de cada traço da personalidade de alguém. Entre 1949 e 1984 o espírito de Simão Toko resume-se: (1) “em congregar todos, apesar das diferenças: pacificador”; (2) “criar capitais culturais”, “reforçar as heranças sociais” para o bem-estar individual e colectivo; (3) “independência espiritual/cultural”, “descolonização mental”; (4) etc.
Entre 1984 e 2000 o “Tokoismo sem o ‘corpo’ de Simão Toko” apresentou problemas de estrutura, desvirtuou-se dos ideais de 1949-1984 assim como fez órfãos da fé milhares de tokoistas pela luta de sucessão. Ao analisar esses factos – numa perspectiva antropológica – percebemos que a origem destes problemas terá sido o desrespeito às tradições africanas (se calhar universais) que anteriormente se debruçou aqui. Como poderá alguém suceder a liderança, se antes não ter recebido o espírito do líder? São as mesmas tradições que existem em todas religiões do mundo (Ling, 2005), embora tenhamos apenas citado o caso do cristianismo.
Vamos colocar a pergunta para construir uma hipótese: onde estaria o espírito de Simão Toko? Ou melhor: será que já se efectivou a corporização do espírito de Simão Toko num possível sucessor? O espirito do líder do tamanho de Mayamona – que profetizou a independência de África e tantos outros acontecimentos importantes – não poderá desaparecer com a morte física, uma vez que ele próprio herdou-o, também . Antropologicamente, é um espírito constante que existe em todas as sociedades – tal como já mostramos – e se manifesta pelo carisma no líder (Blanes, 2014). E passa por diferentes corpo ao longo do tempo (Van Wing, 1938:200-209; 252-253).
A hipótese, que nos parece visível, é que o bispo Dom Afonso Nunes, o actual líder espiritual, seria o personificado na base das teorias acima mencionadas e pelo facto de encontrar nele as características de espirito de Simão Toko: (i) efectivação das profecias: escolas, universidades, catedral, rádio, etc.; (ii) devolver a esperança aos tokoistas no Novo Milénio ; (iii) relações pacíficas entre a Igreja e o Estado angolano; (iv) devolver a igreja a liderança que perdeu entre 1984-2000; (v) a internacionalização (expansão) da filosofia tokoista; (vi) criação dos suportes académicos para “independência cultural/espiritual”; (vii) etc. O que nos parece interessante ainda, o próprio Bispo Dom Afonso Nunes afirma essa personificação . Essas evidências proféticas são palpáveis com a sua liderança , até prova do contrário, sem prejuízo as outras posições que, ao nosso ver, parecem-nos uma questão interna.