Por Patrício Batsikama
Resenha sobre o livro do prof. Boubakar Keita
Introdução
No dia 09 de Agosto de 1990, Raphael Batsîkama (meu avô paterno) oferecer-me um livro intitulado “Nations nègres et Culture”. Li o livro entre 09 e 10 de Agosto. No dia 12 do mesmo mês e ano, fizemos um debate e ele me esclareceu o pensamento do autor (Cheikh Anta Diop) que na verdade não me era fácil para perceber. No fim do debate, ele entregou-me um texto (ainda não publicado) da autoria dele: “Nations nègres Sans Culture”, e solicitou-me fazer uma crítica, comparar os dois textos. Depois de duas semanas, escrevi um texto: “Democratie: le pouvoir au Kôngo n’était pas de caractere divin”1. Foi assim que decorreu a minha iniciação na HISTÓRIA DE ÁFRICA. Um pouco de Cheich Anta Diop, e um pouco de Raphael Batsikama.
Descolonização científica
Durante a última década da colonização – 1950-1960 – a luta para independência foi política. Não se adquiriu a independência cultural, nem económica. Cheikh Anta Diop empenhou-se isoladamente na luta contra a colonização científica. Trata-se de uma luta que requer mais capital académico, talvez seja por isso que nesse tempo ele ficou isolado. Vou agrupar a sua luta contra três teses colonialistas que o professor Boubakar Keita trata com pormenores no seu livro:
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África antiga não tinha História própria;
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Não existia Estado nem Nação na África pré-colonial
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Superioridade da raça branca perante a raça negra.
Será na base destes três teses colonialistas que farei a minha releitura sobre o livro do professor Boubakar Keita. Mas antes irei, de forma resumida, ilustrar as imagens que a Europa colou à África. Farei, também, uma sucinta observação sobre o livro de Cheikh Anta Diop publicado pela FCS/UAN2. Já no fim, resumirei o livro que hoje se apresenta.
Imagens sobre África pelos Europeus
A colonização científica de África começa, talvez, pelo próprio topónimo. Ninguém sabe concretamente de onde vem a palavra África. Há hipótese de que vem de Ifrikia ou Frikia que em árabe significaria “terras quentes”.3 Das representações europeias sobre África, este continente é tido como Inferno, onde só há demónios. Não é por acaso que os habitantes desta África/Inferno eram Negro, Etíopes, Líbios, etc. Negro significa “macaco” ou tudo que é ruim (magia branca é boa, ao passo que a magia negra é diabólica); Etíope quer dizer pessoa com rosto queimado. Líbio quer dizer quem vive nas terras quentes (sem saneamento básico), etc. Aliás, Satanás era representado em preto/negro com cauda, ao passo que Anjo era branco. Textos de sábios europeus – no século XVII e XVIII (em plena século das Luzes) – justificam a escravatura, a inferioridade e a coisificação do Negro. William Wilberforce lembrou isso aos escravistas disseminados no Parlamento inglês, no século XIX.
Conceitos desses géneros ainda perduram no “não-pensado” discursivos dos africanos. Essa é a luta de Cheikh Anta Diop. Tratava-se da luta contra a colonização cultural e científica. Mas por ser de um espírito humilde e lógico, o sábio senegalês questionou teses basilares da História, da Egiptologia e as suas releituras oxigenaram e revitalizaram hoje a Historiografia moderna.
“Cheikh Anta Diop” traduzido pela FCS/UAN
No ano passado adquiri um livro de Cheikh Anta Diop traduzido pela editora universitária Mulemba em colaboração com Pedago. Depois das minhas leituras, observei o seguinte:
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O texto de Diop foi traduzido, mas não foram traduzido o tempo e a ideia do autor. Para evitar extrapolação das suas afirmações é fundamental viajar no “tempo de Diop”.4 A “ideia de Diop” é simples, mas requer treino para sua articulação.5
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O desconforto da comunidade lusófona em relação a bibliografia utilizada naquele livro: ainda não há grande coisa em versão portuguesa. É necessário que se traduza vários outros livros ainda em inglês, francês e alemão antes de ler e compreender o egiptólogo senegalês.
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Em 2006 visitei IFAN e o invejável legado bibliográfico do cientista senegalês. Na ânsia de traduzir as obras dele, foi-me aconselhado o seguinte: (a) contactar madame Diop ou a família do autor; (b) montar uma equipa composta de historiador, filósofo, egiptólogo, químico e filósofo que sejam lusófonos (influentemente poliglota).
Mas não é esse livro que se trata aqui. Vamos ao que interessa: “Contribuição endógena para a escrita da História da África Negra”, de professor Boubakar Keita.
“Contribuição endógena para Escrita da História”
O livro “Contribuição endógena” é uma reedição revista (ou revisada), editada pela Mayamba em Fevereiro de 2015 e tem 202 páginas. Dividido em três capítulos, e estes sendo precedidos de um Prefácio e introdução, o texto tem ainda uma conclusão e uma bibliografia.
Prefiro começar pela bibliografia. Os oito livros conhecidos do senegalês são referenciados na bibliografia. Mas parece-me que apenas sete (salvo o último) entre eles foram de facto utilizados, talvez tendo em conta o tema.
Para situar a “Contribuição endógena…” de Cheikh Anta Diop, o professor Boubakar Keita serviu-se de auxilio de 87 livros, dos quais 16 em língua portuguesa (na maioria tradução). Deste 16 livros apenas dois têm ligação directa com a contribuição do sábio senegalês6. Já é um bom início que a FCS/UAN tenha começado com a tradução de livros determinantes de Diop ou outros que possam nos fazer perceber a sua obra.
Capítulo I.
O autor começa por apresentar-nos o “espaço intelectual” europeu que Diop fez face. Trata-se de um espaço onde as ideologias eurocêntricas orquestram a superioridade racial, ausência da África na História e inércia do Negro.
Friedrich Hegel é, de facto, o sábio alemão que influenciou a filosofia no século XIX. Professor da Faculdade de Ciências Sociais questiona a honestidade intelectual de Hegel quando este afirma, passamos a citar:
“África, tão remota que seja a História, ficou encravada, sem laços com o resto do mundo. É o país do ouro; o país da infância… A África Negra não demonstrou nem mudanças nem desenvolvimento”.
O professor Boubakar Keita sublinha a perspectiva que Cheikh Anta Diop fez sobre a posição ideológica de Hegel: “espírito”. Explica-nos claramente esse conceito e, em nome da Lógica, lembra-nos que na História o “espírito” não “move” o material, tal como o pensa o filósofo alemão.
Interessante ainda é quando o autor contra-argumenta a partir de Darwing e Champolion le Jeune cujos trabalhos tiveram destaque nas lides académicas alemãs. Tudo indicaria – numa leitura lógica – que Hegel tenha sido enganado pelas ideologias da época e do seu mundo exclusivista, senão estaria a contribuir nelas de outra maneira.
Na Filosofia (da arte), o espírito hegeliano apresenta-se como um sache apriorístico (um objecto-valor anterior). Ora, hoje parece lógico que toda corporização de ideia/espírito em qualquer obra de arte seja historicamente um sache a posteriori.7 Depois da insistência ed Diop e as independências africanas de 1960, alguns circuitos de arte aceitaram as máscaras africanas. Depois de apresentá-lo nos Congressos mundiais sobre Filosofia e Estética, o etonismo – que é africano/angolano – é estudado na Universidade de Friebourg (Alemanha), na Universidade de Peking (China) e, curiosamente, o valor estético já foi reconhecido mundialmente: o artista plástico António Tomas Ana é hoje um Master of Art and Culture. Em relação a África, ainda temos senegaleses, malianos e sulafricanos. A tese de Hegel já não faria sentido, aqui.
O espírito hegeliano é, aliás, derivado de um suporte metafísico egípcio. 5.000 anos antes de Hegel, os egípcios explicavam o “espírito de Aton”. O profeta Moisés não se sentiu envergonhado em “plagiar” os egípcios quando escreveu os primeiros versículos do livro de Génesis: “o espírito de Deus movia-se sobre a face das águas…” (Gén., I:1-2). Essa versão não é hebraica. É nitidamente egípcia e africana. Aliás, o resto dos Africanos explica a origem do mundo de forma semelhante.8
A superioridade de raça é concomitante a essa tese. Mas interessa-me rever a questão da não-existência das Nações ou Estados instituídos na África pré-europeu. Já foram editados oito volumes sobre História Geral de África que já desconstroem aquelas teses. As minhas séries de Origens do Reino do Kôngo constituem uma contribuição. Recentemente levantei um debate – na academia brasileira sobretudo – sobre a Democracia no antigo Kôngo.
Professor Boubakar Keita retomou a questão da luta pela independência científica (cultural). Cheikh Anta Diop já pensava nisso em 1949 (submissão da sua primeira Tese): Um futuro cultural do pensamento africano. Eu tenho ilustrado isso da seguinte maneira: traduzir todas ciências, tecnologias e práticas em línguas angolanas (africanas) seria um passo fundamental contra o neocolonialismo científico. É preciso descolonizar os conceitos que veiculam nas ciências.
Ainda no primeiro capítulo, o autor faz uma “pequeno” estado das artes sobre as obras do mestre Cheikh Anta Diop. É fundamental para entender este filho de África.
A questão da periodização na Historiografia moderna contou muito com a contribuição das críticas de Diop. A ruptura histórica que sucede a “longa duração” não é contínua e linear, mas sim continua e circular. De acordo com os ocidentais, o Império de Mali por exemplo era medieval (1235-1547), desde Senegal até ao noroeste da Nigéria9. Na verdade, não faria sentido para o restante de povos que não integram a Europa civilizador. Para Diop, a História se reparte em espaço e tempo caracterizado pela concepção dos actores que produzem os factos. A Idade Média é caracterizada pelo feudalismo. É aberração entre os africanos que a terra pertença a determinada pessoa. Por isso, essa Idade Média não poderia valer quer seja para Gana, Shongai, quer seja para Kôngo, Lûnda, nem sequer para os Tswana, Vênda, Zulu, etc. Isto é, os africanos – e creio que os chineses, os ameríndios, também – precisavam de procurar outras formas e conceitos para melhor compreender a sua História.
Interessa-me concluir o primeiro capítulo com a visão de Cheikh Anta Diop em relação a África projectada na OUA, hoje em UA. O sábio senegalês procurou saber o papel das regiões banhadas pelos rios. Na verdade, do Nilo até Orange passando pela Região de Grandes Lagos e Zambeze, de Senegal até Cunene passando pelo rio Zaire (nzâdi’a Mwânza) e rio Kwânza, as civilizações formadas ao longo dos tempos mantiveram-se funcionais para esta Unidade Cultural. A rentabilização desta realidade poderia ser vista em duas perspectivas:
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Redefinir as relações políticas na base da Cultura, de modo a permitir que a oxigenação independência cultural facultasse o desenvolvimento humano. Isto é, o desenvolvimento económico seria concomitante à cultura endógena;
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Olhar as fronteiras africanas herdadas da Conferência de Berlim como barreira ao progresso do continente. A solidariedade entre os africanos se funda na “Unidade Cultural” e poderia ser protegida.
Cap. II e III
O conjunto de temas e propostas metodológicas para a História de África – tal como o fez Diop – ilustra de facto uma ruptura epistemológica. A audácia que teve – e graças ao espírito lógico, simplicidade pedagógica e frontalidade – permitiu que outros colegas conhecessem a démarche, fazer outras críticas e diversificar-se em diferentes perspectivas.
Nestes dois capítulos, o autor retoma as grandes linhas que o sábio senegalês abordou e a receptibilidade das suas abordagens. As principais consequências consistem no facto de encontrarmos hoje a maior parte das teses dele serem retomados pelos Historiadores, sobretudo no que se refere à História da África, da egiptologia e, em termo metodológica, na própria Historiografia moderna. Este é o mérito do sábio senegalês. Subscrevo-me que seja criadas condições de estudar o seu pensamento, e não só. Devemos estudar o pensamento de Agostinho Neto, de Mário Pinto de Andrade, etc. para encontrarmos o Futuro cultural do pensamento angolano. O melhor lugar para tais discussões é na academia. Esta Faculdade é, na verdade, o lugar propício qe se deverá estudar os pensamentos dos sábios angolanos.
Concluindo
Recomendo este livro a todos os estudantes universitários, pouco importa a sua formação. Aos estudantes das Ciências Sociais – História, Sociologia, Ciências Políiticas, etc. – eu estimulo ler e estudar este livro. Isto é, ler o livro de professor Boubakar e confrontar com, por exemplo, a tradução do livro de Cheikh Anta Diop que a FCS/UAN publicou. Para os meus estudantes específicos, este livro é obrigatório. Devem ler, resumir o livro de forma sistematizada e expor as ideias principais expostas neste livro.
1 Só foi em 2014 que publiquei o opúsculo intitulado: “Lûmbu: democracia no antigo Kôngo”.
2 Faculdade de Ciências Socias da universidade Agostinho Neto.
3 Batsîkama, P. (2009), Etonismo ou a razão da razão Tolerante, anexo #1.
4 Exemplo: negro na época dele significa “macaco”. Hoje esse significado já não consta nos dicionários. Egipto não fazia parte das civilizações africanas nos tempos dele, hoje percebeu-se que o berço da maior civilização da antiguidade bebeu da fonte da África negra.
5 As oitos obras do senegalês contêm, cada, uma idiossincrasia sincategoremática. Isto, é fundamental ler todas as suas obras para perceber a sua Ideia.
6 Gamal MOKHART (ed., 2010), História Geral da África, vol. II., São Paulo: UNESCO; KEITA, B. (2009), História da África Negra: Síntese de história política e de civilizações, Luanda: Texto Editora.
7 Batsîkama, P. (2015), Diálogos estéticos angolanos, Luanda: Mayamba
8 No meu livro Diálogos estéticos angolanos, apresentei a versão côkwe, kôngo, khoi khoi, etc.
9 Essa descrição era não somente uma aberração pela multi-temporalidade aclamada pelos autores da História Geral de África, mas e sobretudo o tratamento metodológico da Tradição Oral amplamente aceite desfaz essa tese. Diop mostrou que a concepção de Idade Média não faria sentido para os mandinga (Senegal, Costa Marfim, Sierra Leone, Mali, Burkina Faso, etc.) que têm as suas escolas especializadas de História.