O ANO EM QUE A ‘KULTURA AFRIKANA’ PASSOU O VERAO EM LONDRES…
Por Ana Koluki
E trouxe consigo agua doce no olho do coco verde das Mauricias, e farinha muceke de acompanhar o feijao com carne seca do Ghana e peixe frito com molho de kiabos e funge de ynhame do Benin, e banana-plaintain e milho fresco assado do Uganda, injera e café’ mocca-sidamo da Etiopia e mikates e kikwangas dos Kongos… E misangas dos Xhosa, e ouros dos Ashanti… E djellabas, kaftans, dashikis, boubous, kanzos, kangas, gomesis em todas as cores, cortes, formas e feitios dos panos tradicionais Afrikanos… E os sopros da Orquestra Baobab do Senegal, os tantans de Tony Allen da Nigeria e as vozes e koras dos Griots Diabate’ do Mali… E as explosoes de danca, arte, moda e design um pouco de todo o Kontinente…
Chamaram-lhe ‘Utopia’, mas foi de facto um ‘Sonho’ tornado realidade: o verao em que a Mama Afrika desembarcou no epicentro da Margem Sul do Thames (The Royal Festival and Queen Elizabeth Halls no South Bank Centre) e desembrulhou seus sabores, odores, cores e sorrisos perante Londres ‘like it’s nobody’s business’!… E toda a Familia Afrikana da cidade e gente de todas as nacionalidades seguiu o ‘Caminho do Rio’, durante 3 dias (11-13 de Setembro do ano que agora finda) para a saudar e celebrar, numa verdadeira festa de calor humano, alegria, criatividade, diversidade, fraternidade, empreendedorismo e muita sofisticacao!
“Por todo o Continente Africano, ha’ uma miriade de exemplos de criatividade e inovacao que nos encorajam, a nos no Norte Global, a testar ideias estabelecidas com novas abordagens. Nos fruimos desta energia em ‘Africa Utopia’, que coloca a questao provocatoria, ‘Como pode a Africa resolver os problemas do Ocidente?’, atraves de uma serie de performances e debates.” – Assim nos foi apresentado o evento por Jude Kelly, Directora Artistica do Southbank Centre.
Ao que Hannah Pool, Curadora das “conversas” do evento, acrescentou: “O programa de palestras e debates do ‘Africa Utopia’ deste ano foi criado ‘on the road’ pelo continente – desde cafes em Johannesburg a espacos artisticos em Nairobi, os mesmos temas vinham se repetindo. Questoes de lideranca, espaco e o papel das artes na criacao de mudanca social foram todos reflectidos no programa. Em colaboracao com o ‘The Guardian’, ‘Africa at LSE’, ‘The African Women’s Development Fund’ e ‘Africa Gathering’, o ‘Africa Utopia’ alinhou uma serie de conversas cobrindo um pouco de tudo, desde o activismo digital ao feminismo Africano. Com intervenientes do Continente e da Diaspora, incluindo artistas, activistas e lideres nas areas de tecnologia e comercio, o programa realcou como as artes e ideias de Africa estao a mudar o mundo.”
O ‘Africa Utopia’ ja’ se vem realizando anualmente ha’ quatro anos, mas este foi de todos o maior e o primeiro que “nao se ficou por ali”… Porque a Mama Afrika dali seguiu para a Margem Norte do Rio em direccao ‘a British Library, la’ no ‘Cruzamento dos Reis’ (King’s Cross), para dar voz e vez aos seus Imperios, Reinos e Reis da Africa Ocidental – proeminentemente, Wole Soyinka (que, infelizmente, nao pode estar presente por razoes imponderáveis na altura, mas que fara’ as honras do evento em próxima ocasião mais propicia) e Fela Kuti – com a sua Palavra, Simbolo e Cancao (‘West Africa: Word, Symbol, Song’ – em exibicao e performances ate’ meados de Fevereiro do proximo ano).
Mas as falas e cantos dos ‘griots’ anunciando a chegada da Mama Afrika comecaram a ecoar bem no pino do Verao (3-6 Julho) com o certame ‘Africa Writes’ – um festival literario incorporando uma feira do livro, em celebracao da eterna criatividade e indubitavel ascensao da literatura Africana como uma forca proeminente da literatura global e da cultura popular, promovida anualmente pela ‘Royal African Society’ em associacao com a ‘British Library’.
Este ano na sua quarta edicao, o ‘Africa Writes’ reflectiu todo esse dinamismo, incluindo eventos cobrindo um amplo espectro de temas, desde o significado do ‘Amor em Africa’ e do ‘Romance na Era Digital’, ‘a exploracao de novas areas de estudos sobre a literatura Africana.
O primeiro grande evento do festival foi um Simposium sobre traducao, curado por Wangui wa Goro e o Afrikult (um forum online promovendo a conexao, exploracao e expansao do conhecimento sobre a literatura e cultura Afrikana), composto por tres paineis, incluindo escritores, artistas, publicistas, tradutores, escritores e estudiosos, sob o tema generico “Africa in Translation: What’s Love Got to Do with It?”
Focando no tema do Amor, o simposium visou desfazer mitos sobre romance entre Afrikanos e analisar o impacto da traducao e os seus constructos inter-culturais sobre o amor na literatura Afrikana contemporanea. Foram igualmente explorados os limites e possibilidades da traducao de narrativas criativas e culturais atraves do tempo e do espaco, incluindo o espaco virtual, oratura, musica, filme e multimedia. Seguiram-se varias outras sessoes de analise e discussao ao longo do certame, entre as quais:
Um painel entitulado “African Creative Non-fiction: Moving the Boundaries?”, dirigido por Ellah Wakatama Allfrey, explorou as ‘interfaces’ entre diferentes generos literarios, focando igualmente nas tecnicas de escrita e nas estruturas atraves das quais estorias encontram a sua forma, numa reflexao sobre o potencial da nao-ficcao para melhor expressar vozes, realidades e imaginarios do Kontinente, formulando questoes como: - “Quais as possibilidades criativas da nao-ficcao?”, “Qual a relacao entre poesia e memoria, ou entre historia e literatura de viagem?”, “Onde se localiza o literario no ensaio, na ‘escrita-vivida’ ou na reportagem?”…
Outro painel, sob o tema “Charting New Platforms, Ideas and Forms: The Place of Literary Magazines in African Literature”, reunindo editores tanto de estabelecidas como de novas publicacoes, sob a direccao de Nana Yaa Mensah, reflectiu sobre como as revistas e jornais literarios, desde ‘Transition’ e ‘Black Orpheus’ a ‘Chimurenga’ e ‘Farafina’, moldaram e continuam a moldar a producao e recepcao de ideias e da literatura Afrikana.
O painel debrucou-se sobre a forma e influencia das revistas literarias para a literatura Afrikana contemporanea, respondendo a questoes como: “O espaco digital cria oportunidades para as revistas literarias do seculo 21 serem mais genuinamente pan-Afrikanas tanto pelos seus leitores como pelas comunidades de escritores que representam?”, “Permite a revista literaria o desenvolvimento de ideias e de literatura Afrikana atraves de formas mais experimentais e multimedia?”, “Identificam-se essas publicacoes como parte da, e sao influenciadas pela, trajectoria historica das ‘Revistas literarias Afrikanas’?”
Num outro painel ainda, concebido por Dele Meiji Fatunla, foram abordadas questoes criticas como: “De que forma o nexo mutavel entre raca e economia molda as oportunidades de escrita e publicacao abertas a escritores Afrikanos e a perspectiva dos leitores Afrikanos?”, ou “Como e’ que o crescimento de novas iniciativas de publicacao no continente estao a mudar as formas como a literatura de Afrika e’ lida, produzida e valorizada?”
Em um artigo para o ‘New York Times’ em Novembro do ano passado, Adaobi Tricia Nwaubani argumentou que ‘o sucesso para o escritor Afrikano ainda depende do Ocidente’ e que as vozes Afrikanas contemporaneas ‘ so’ contam estorias que os estrangeiros lhes permitem contar’. Usando a ideia do ‘white gaze’ (‘o olhar fixo do branco’) de Toni Morrison, o painel explorou, interrogou e contestou aquela narrativa e a ideia de que a escrita Afrikana contemporanea e’ criada pela industria livreira global. Ao inves, interrogou-se sobre o que as actuais reconfiguracoes da industria livreira Afrikana, a par do crescente poder de compra de cada vez mais Afrikanos e outros consumidores globais nao-ocidentais, poderao significar para futuras percepcoes das e interaccoes com as literaturas Afrikanas, os seus escritores e o proprio Kontinente.
Ao multi-premiado escritor Nigeriano Ben Okri – galardoado, entre outros, com o maior premio literario da Anglofonia, o '(Man) Booker Prize', pelo seu livro "The Famished Road (O Caminho Faminto)" – coube a honra de proferir a ‘Aula Magna’ de encerramento do certame. Sob o titulo “Reflections on Greatness”, dir-se-ia que Okri prosseguira o debate do ultimo painel acima referido, mas nao: sem o referir, ele apenas retomava e expandia um tema que se lhe tornou pessoalmente bastante caro, desde que, em Dezembro do ano passado, no ‘The Guardian’, publicou um artigo entitulado "A mental tyranny is keeping black writers from greatness (Ha' uma tirania mental impedindo os escritores Negros de atingirem a grandiosidade)", que gerou uma grande polemica nos meios intelectuais, culturais e literarios Africanos e Africanistas...
Durante uma entrevista na vespera do evento, indagado sobre a polemica, ele respondeu simplesmente: "eu estou a tentar soltar um tigre e ha' pessoas que pensam que quero ensinar um cordeiro a andar"...
[Continua]