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05 May

Democracia e Lûmbu: questão de teorização

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #História do Reino do Kongo

Democracia e Lûmbu: questão de teorização


Por Patrício Batsikama


Apesar de ter mínimo urbanidade de debate, o texto de Nuno Dala era um “discurso de sanzala” com arrogância e pugilismo tribalista contra os Kôngo. Desta vez o nível baixou: o texto do seu condiscípulo Rui Seamba é um verdadeiro pecado metodológico e não expõe mínima engenharia argumentativa. Fico triste perceber-me que apesar das nossas formações, ainda temos dificuldades em solucionamos os nossos problemas. Parece que a nossa formação universitária contribui cada vez mais para nos tornar instrumentos teleguiados pelas vontades neocolonialistas. Ainda assim, temos tempo para nos recompor e adequarmo-nos na realidade angolana.

Pecado metodlógico


Antes de Hegel reformular “Tese/Antítese/Síntese”, os livres pensadores no século XVIII partiam sempre de duas vertentes: (i) descrever a opinião anteriormente emitida; (ii) contrapor com uma outra vertente. Depois da dialéctica de Hegel, estudiosos contemporâneos expõem sempre a revisão da ideia expressa (estado das artes), justificam a nova perspectiva (metodológica ou formal) e expõem um contra-argumento seguido de nova proposta.
O texto de Rui Seamba (arguente) começa por desculpar-se das suas insuficiências para devida releitura bibliográfica. Curiosamente, a bibliografia apresentada revela quatros aspectos: (1) incompatibilidade de conteúdo: não explora o meu opúsculo (Lûmbu), mas sim procurar inviabilizar a democracia no meu livro; (2) insuficiência argumentativa: o Lûmbu assenta-se em 4 hipóteses (fundação na base de representatividade, eleições autárquicas e a nível do topo, existência de uma Instituição reguladora do sistema e de um Governo e testemunhas de viajantes nos séculos XVI, XVII e XVIII), mas o texto de arguente limita-se no Mpôlo’a Lêmba sem se perceber deste órgão das eleições que se pode comparar a Conselho Nacional das Eleições; (3) discurso “de fora” que sustenta o arguente desconhece a perspectiva do conteúdo. Cheikh Anta Diop, Ki-Zebro, Hampaté Bâh, Paulin Houtondji (na ciência), Fela Kuti, Camara Laye, Hugues Masekele (nas artes) principiaram o discurso “de dentro” para ilustrar África descolonizada: por isso publicaram-se os volumes de História Geral de África. É pena que um africano – apesar de formar-se fora de África – regressasse à caverna em prol da neocolonização; (4) um texto sensitivo: o conteúdo apriorístico do arguente assenta-se na perspectiva pré-estabelecida de que “Batsîkama e seu texto não são nossos”. Na bibliografia apresentada, não se vê sequer duas obras relacionadas com a matéria em causa. Será que o arguente tem a mínima ideia sobre a História do Kôngo na visão de Bakôngo?

Democracia: problemática nocional


Democracia é um conceito ambíguo. Os gregos tinham três termos para dizer povo: Ethnos, Demos e Laos. Cada um tinha significações específicas: (a) Demos: Povo-elite; Território-Cidade; Representante de Ethnos e Laos; (b) Laos: Povo-campestre; Território-Rural; Espaço-Social-desorganizado; (c) Ethnos: Povo-no-Geral; Somatório-dos-Territórios; Espaço-Social-Plural. Caso seguirmos essa lógica, teríamos os seguintes sistemas políticos – numa hipótese linear:


(a) Democracia: Poder do Povo-Elite, com hegemonia dos Representantes sobre o Ethnos (todos povos) com Território urbano como lugar de Poder (oligarquia);
(b) Laocracria: Poder do Povo-campestre, com a Desorganização baseada no autodefesa e sem lugar de Poder estruturado (anarquia);
(c) Etnocracia: Poder do Povo-em-Geral, com simetria de todos os territórios e com pluralidade de lugar de Poder (federalismo).

Essa leitura lógica, tal como se verificou na Grécia, levou a democracia ser até hoje um conceito ambíguo e equívoco. O que não é contado, talvez, é que na Grécia, a democracia clássica precedeu a anarquia (laocracia) e o federalismo primitivo (etnocracia). Os valores e virtudes da Política (moral, justiça, ética, etc.) se verificaram de difícil aplicação pela própria dinâmica social. Atenas não poderia manter o poderio da democracia durante muito tempo face à distribuição social das etnias gregas: áqueos, dóricos, eólicos e jónicos. Também, era insuficiente impor justiça nas assimetrias que haviam entre Território-Cidade, Território-Campestre e Território-Governo e isso perigava o próprio sistema democrático grego.
Desta experiência percebeu-se, portanto, que: (a) a justiça era ideal, mas se verificava como mera retórica moral; (b) ética era fundamental no político, mas as dinâmicas económicas levavam-no ao nepotismo; (c) o voto do povo fazia deste último um potencial cliente à mercê das demagogias do Povo-Elite.


No século XVI e XVIII foram definidos os valores da democracia moderna: Justiça, Liberdade pessoal, Bem-estar generalizado, Defesa comum, Tranquilidade domestica e Prosperidade. Encontramos estes valores na Revolução Francesa e na Constituição Americana. Com a ocidentalização da cultura e a americanização depois da queda de Murro de Berlim, a democracia moderna se verifica em África.


De ponto de vista antropologia, a importação da democracia em África – quer no contexto do pós-Guerra-fria, quer no contexto da Globalização moderna – é antes uma imposição sociopolítica que o Ocidente faz a África. São dois conjuntos de demos/povos diferentes que concebem de formas diferentes a SOCIEDADE embora com valores/virtudes convergentes. O poder financeiro, tal como foi verificado nesse mundo globalizado, determina o destino da democracia uma vez que as instituições que a suportam representam os interesses do Povo-Elite que oferece emprego ao Povo-em-Geral. As empresas multinacionais são hoje – em mesma proporção que ONU, FMI, Banco Mundial – parceiras importantes para as democracias. Isto é, o jogo têm escalas. Há aqueles cujas habilidades permitem ver a democracia na teoria e na pura retórica! Outros participam na sua oxigenação ora como peças-sacrificáveis, ora como peças-decisoras. Há, finalmente as peças-programadoras que arquitetam a sua aplicabilidade. Ora, nas três dimensões há uma larga inequação de concatenação.

Lûmbu, uma evidência histórica


Lûmbu, no kikôngo de hoje, significa o quintal, a casa e o lugar de encontro entre várias pessoas. Curiosamente, este termo pode servir de pressuposto para se repensar a democracia no antigo Kôngo, caso sigamos o rigor metodológico:


(a) +ûmb: umbigo; família
(b) +kûm: nome; pessoa socializada
(c) +fûm: poder; sociedade

O poder entre os Kôngo nasce no seio da família, da linhagem e do clã. A família – no conceito kôngo – é plural, de modo que os “mais-velhos” de cada +umb representam o consenso ao eleger seu representante. Entre várias famílias +ûmb unidas em linhagem, o representante desta última é eleito pelos “mais-velhos” que representam cada grupo. Em relação ao clã, várias linhagens oriundas de diferentes espaços, tendo diferentes aspirações escolhem aquele que reúne condições para representar todos os interesses. O eleito não trabalhará de forma isolada. Auxiliado por um conselho representado por todos os mais-velhos das linhagens (que representam milhares de famílias), o líder de um clã é, entre os Kôngo, o líder que age em conformidade com os compromissos assumidos.


É isso que, no meu humilde opúsculo intitulado Lûmbu: democracia no antigo Kôngo, tentei mostrar como nasceu o Estado [reino do] Kôngo: 144 clãs/tribos selaram o seu compromisso e optaram o nome de Kôngo para se identificarem-se. Os Kôngo da fundação acreditavam que “diferentes tribos na União” salvaguardaram os seus compromissos. Por isso a capital (Mbânz’a Kôngo) é delimitado por 12 nascentes, hoje “Centro Histórico de Mbânz’a Kôngo: Património Nacional”. Essas nascentes simbolizam os compromissos de 144 tribos. Isto é, existia um Colégio Eleitoral – Lûmbu – que elegeu Lukeni lwa Nimi [as vezes chamado Nimi’a Lukeni] como o líder, Chefe de Estado do Kôngo. Quer com isso dizer que Ñtînu’a Kôngo ou Ñtôtel’a Kôngo era normalmente eleito pelo colégio de 144 tribos simbolizadas por doze compromissos da união [Kôngo].


A divisão dos poderes correspondiam às linhagens e consistiam a manter funcional essa União. As três principais linhagens presentes em cada tribos (das 144 que citamos) são as seguintes:


(a) Nsaku: Poder Legislativo, Religião
(b) Mpânzu: Poder Legislativo, Poder Militar, Indústria.
(c) Ñzînga: Poder Executivo, Poder Judiciária

Essa é a sociedade – vulgo demos – na cosmogonia Kôngo. E não faria mal nenhum que a divisão dos poderes da sua democracia se baseia na distribuição das funções sociais consoante as linhagens.


Cada mfûmu de qualquer mbûku – vulgo autarca – é líder de uma circunscrição bem determinada, e tem a obrigação de velar pelo ñkângu [compromissos] das linhagens que o levaram para essas responsabilidades. De acordo com as Tradições Orais e as evidências históricas, essas responsabilidades se resumem em: Justiça Social, Bem-estar colectivo, Fraternidade/Lealdade e Prosperidade. Na base dos princípios da pertença perante as suas terras e suas famílias/linhagens, estes fundamentos da democracia eram funcionais. Como se pode ver, não foge muito à democracia moderna.

Comparação entre democracia moderna e Lûmbu
Eleições = Mpôlo’a Lêmba
Separação de poderes = Nsâku, Mpânzu e Ñzînga
Governo = Ñtûdi’a Kôngo
Assembleia Nacional = Lûmbu
Capital Política = Mbânz’a Kôngo

A operacionalização de poder do povo através das instituições é geralmente simbolizada pelas eleições, tidas como expressão do povo ao escolher os seus representantes. As instituições do poder são autónomas entre si, independentes uma da outra: separação dos poderes. O Executivo/Governo instituído é consequente das eleições põe em marcha os programas políticos com fim de alcançar a Prosperidade, o Bem-comum, a Liberdade de cada um e aplicar a Justiça entre as pessoas. Assembleia Nacional ou Congresso fiscaliza o programa deste Governo. Tudo isso parte do lugar do poder: capital. Esses pontos da democracia moderna estão presentes no Lûmbu.


Na história da democracia ocidental, encontramos episódios em que os escravizados, as mulheres e os pobres não tiveram direito de voto. As imperativas históricas fazem com que o poder (na democracia) pertença ainda ao povo-elite, detentor de know-how, capitais financeiros e oferecedor de empregos para demais. O detentor do voto é um sujeito social normativo que vive de emprego, seguindo as normas estabelecidas e tentando alcançar a felicidade dentre destas.


No antigo Kôngo, o sujeito social normativo é socializado consoante uma série de iniciações que permitem que pertença à sua terra/linhagem e que seja – ipso facto – potencial candidato para as funções sociais inerentes à sua linhagem. Para o Poder Executivo, apenas os Nsaku e Mpânzu são eleitores, ao passo que os Ñzînga são exclusivamente os candidatos.


De ponto de vista formal, a democracia moderna assemelha-se muito à Lûmbu [democracia no antigo kôngo]. Embora as suas instituições sejam diferentes pelo conteúdo – o que se pode justificar pelo sujeito social normativo – ambas convergem por ser poder do povo. Diferem-se provavelmente pelo “Poder pelo Povo” e “Poder para o Povo”. Somente na segunda metade do século XX que a democracia moderna evoluiu para “Poder pelo Povo”: Luther King ainda lutava para segregação nos Estados Unidos de América. O “Poder para o Povo” ainda é dificilmente compreendido ainda no século XXI: como uma democracia com mais de dois séculos de existência nos E.U.A. aceitaria o “Patriot Act”? Isso deixa muito a desejar.


Lûmbu era na verdade “Poder do Povo e pelo Povo”. Pela cosmogonia e partindo do sujeito social normativo kôngo, a participação directa e indirecta de todos era evidente. Com o golpe constitucional em 1504-1505, tornou-se difícil reconstruir esse Lûmbu, visto que novas instituições serão verificadas: escravatura, por exemplo, que sufocou a Liberdade individual. Mas a sua existência é evidente.

Conclusâo


Para infirmar a democracia no Antigo Kôngo é preciso contrariar três grandes teses: (i) a fundação do Kôngo foi na base de Lûmbu e os órgãos que o sustentaram; (ii) as autarquias e as eleições gerais eram fundadas no pacote socializador do sujeito social normativo, presente na cultura kôngo hodierna; (iii) as evidências históricas apresentam um Kôngo de 1491-1504 fundado na democracia representativa. Durante a guerra civil – 1543-1665 – notou-se uma democracia em declínio.


Isso requer três habilidades: (i) ser bem municiado em termo de História do Kôngo; (ii) estudioso da antropologia política e ter percebido as fontes do poder costumeiro em África; (iii) ser um descolonizado científico, dominando o discurso “de dentro”. Espero que o próximo arguente tenha o mínimo rigor científico e saiba manusear a metodologia para tratar deste assunto, longe das politiquices.

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