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15 Mar

15 de Março de 1961, foi o início da luta armada em Angola

Publicado por Muana Damba  - Etiquetas:  #História do Reino do Kongo

Por Humberto Nuno de Oliveira (*)
 
 
O ano de 2011 confrontou-nos com a passagem do cinquentenário sobre os massacres no Norte de Angola e o consequente início das operações militares na África Portuguesa. Este ensaio historiográfico é escrito nesse contexto, neste ano em que passam cinquenta anos sobre o início da guerra travada a partir de 1961.
 
Trata-se porém, de um facto traumático da história recente de Portugal, profundamente marcado por feridas que dificilmente sararão e que são acompanhadas de posições extremadas, não raras vezes diametralmente opostas sobre o conflito.
 
Posições profundamente estribadas em convicções político-filosóficas de muito difícil superação, e sobre as quais muita importante documentação não se encontra ainda desclassificada.
 
É ainda difícil, desapaixonadamente, escrever sobre a guerra que se seguiu, facto desde logo comprovável por algumas das minhas considerações introdutórias. A diferença é que por mim, tal facto é claramente assumido e, consequentemente, como historiador procuro não escrever demasiado sobre o assunto. Terei lido, como primeiro livro de História o livro de Hélio Esteves Felgas e, na mesma ocasião, tropeçado nas cruéis (mas reais) imagens da obra de Horácio Caio que, subtraídos indevidamente à biblioteca do meu pai, me marcaram profundamente e seguramente condicionaram a minha opinião sobre o conflito e os seus agentes.
 
Assumo, pois, dificuldades em me libertar de concepções que me norteiam de há muitos anos e que, em última instância, sempre acompanham a construção histórica que, muito para lá de um mero registo de factos (e mesmo a selecção destes é sempre subjectiva), comporta uma interpretação. E esta será sempre a questão central quanto ao estatuto científico da História: em que medida pode ser objectiva e científica uma construção produzida por um indivíduo e, portanto, profundamente subjectiva. Outros não terão este cuidado, a maioria, senão quase todos… Tentar superar estas questões e contribuir para uma reflexão epistemológica e conceptual da mesma é o principal objectivo deste ensaio.
 
As guerras são sempre difíceis de registar com absoluta isenção desde a génese da História – mas a História não é, neste capítulo, nem nunca será, uma ciência exacta – a nossa guerra travada em África não será excepção tanto mais que, felizmente vivos muitos dos seus actores, positivos ou negativos, colide com memórias, silêncios, sensações, experiências vividas e tantas vezes traumáticas.
 
Será tal superado um dia? Talvez. Mas a busca da verdade, não isenta de paixão e dificilmente exacta, não pode permitir que o excesso de posicionamento ideológico tolde nessa busca a maior aproximação possível à “verdade”, que será sempre a nossa.
 
Falou-se neste ano muito em celebração. Mas celebrar o quê? A guerra e a morte! Melhor fora prudentemente falar em “memória” ou “evocação”, mas não houve sequer esse cuidado.
 
Considerações epistemológico-conceptuais à parte, iniciou-se no ano de 1961 um importantíssimo período da história militar portuguesa, que haveria de pôr à prova a tenacidade de um Estado isolado internacionalmente e que teimou em viver a contra-ciclo dos denominados “ventos da História” (1).
 
Poucos anos mais tarde, em 18 de Fevereiro de 1965, Oliveira Salazar haveria de proferir a célebre expressão que desde então foi utilizada para definir a política externa portuguesa: o orgulhosamente sós. Salazar defendia, nesse discurso proferido na posse da Comissão Executiva da União Nacional, a manutenção do esforço de guerra português nas colónias africanas:
 
“Sei que em espíritos fracos o inimigo instila um veneno subtil com afirmar que estes problemas não têm solução militar e só política e que todo o prolongamento da luta é ruinoso para a Fazenda e inútil para a Nação. Eu responderei que o terrorismo que somos obrigados a combater não é a explosão do sentimento de povos que, não, fazendo parte de uma nação, conscientemente aspirem à independência, mas tão-só de elementos subversivos, estranhos na sua generalidade aos territórios, pagos por potências estrangeiras, para fins da sua própria política. 
 
Como elementos alheios à colectividade nacional estiolar-se-ão no momento de lhes ser recusado o território em que se organizam, e treinam, o apoio político recebido e os subsídios ou armas e dinheiro. De modo que a tal solução política, se não prevê a desintegração nacional (que todos fingem repelir), não se encontra em nós próprios mas nos países vizinhos, aos quais, pelos meios ao nosso alcance, possamos ir fazendo compreender melhor os seus deveres de Estados responsáveis para connosco e para com uma pobre gente que estupidamente se faz sacrificar a interesses alheios. Mas neste entendimento a defesa militar é o único meio de chegar à solução política que no fundo é a ordem nos territórios e o progresso pacífico das populações, como o vínhamos prosseguindo. 
 
Vamos em quatro anos de lutas e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que sim. No plano internacional, começou por condenar-se sem remissão a posição portuguesa; passou depois a duvidar-se da validade das teses que se lhe opunham e acabaram muitos dos homens mais responsáveis por vir a reconhecer  que Portugal se bate afinal não só para firmar um direito seu mas para defender princípios e interesses comuns a todo o Ocidente. No plano africano, quatro anos de sacrifícios deram, tempo a que se esclarecesse melhor o problema das províncias ultramarinas portuguesas, a diversidade das instituições criadas em séculos naquele Continente e os ganhos ou perdas, em todo o caso as dificuldades que a independência, tão ambicionada por poucos, trouxe a todos os mais e os dirigentes não sabem ainda como resolver. Assim, bastantes povos africanos nos parecem mais compreensivos das realidades e mais moderados de atitudes. 
 
Eis o ganho positivo desta batalha em que - os portugueses europeus e africanos combatemos sem, espectáculo e sem alianças, orgulhosamente sós” (Salazar 1967: 366-368). 
 
Sob este lema de orgulhosamente sós, Salazar empreende uma política de isolacionismo internacional, quando a quase totalidade da comunidade internacional (para além de alguns apoios encobertos, Portugal só contou abertamente com o apoio sul-africano, namibiano rodesiano, malawiano e pouco mais) promovia a agenda da descolonização em África (que não necessariamente noutros continentes… nem obrigatória para todos), os tais “ventos da História” já referidos, levando a que Portugal quase só pudesse depender de si mesmo num esforço que, independentemente de apreciações ideológicas, foi verdadeiramente titânico, levando mesmo o Coronel “Cmd” Carlos Matos Gomes a considerar a guerra travada como o “acontecimento histórico mais importante da segunda metade do século XX português” (2004: 173). 
 
Embora seja indiscutível o ano de 1961, a mais precisa data da origem da guerra mergulha, consoante as perspectivas, as suas raízes em dois acontecimentos distintos em Angola que, correspondem, também, a duas visões distintas da questão. Uma centra-a nos acontecimentos ocorridos em Luanda a 4 de Fevereiro de 1961 com o ataque levado a cabo por centenas de negros contra a Cadeia de São Paulo, a Casa de Reclusão, o quartel da PSP, onde se encontravam diversos prisioneiros políticos, e ainda à Emissora Oficial de Angola. Ataque do qual resultou a morte de seis agentes policiais, de um cabo do exército e de cerca de quarenta assaltantes. Este inesperado ataque provocou uma natural reacção punitiva na zona de Luanda, e terá iniciado, segundo o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) (2), que reivindicou a sua organização e condução, as hostilidades naquele território que durariam por mais de uma década (3). 
 
Outra advoga que o início da guerra radica na data de 15 de Março, quando a União das Populações de Angola (UPA) (4), num bárbaro ataque tribal dos bacongos, levou à prática um massacre de populações brancas e negras, sobretudo de outras etnias de Angola – especialmente bailundos -, causando centenas de mortos nos distritos de Luanda, Cuanza-Norte e Congo, no que se chamou a Zona Sublevada do Norte (5).
 
E seria esta região, indiscutivelmente, que num espaço de poucos meses, assistiria às primeiras operações militares de grande envergadura e que seria reocupada, num esforço que não logrou, porém, conter o alastramento de acções menores de guerrilha a outras regiões de Angola, como Cabinda, o Leste, o Sudeste e ao Planalto Central. 
 
A divergência quanto à data precisa do início da Guerra, antes mesmo de chegarmos à divergência quanto à designação do conflito, radica pois numa questão que, na realidade, muito mais do que uma data, comporta visões distintas sobre o assunto, propagandísticas, ou não, verdadeiras, ou não. Na bibliogra fia recente, para não recorrer à mais antiga que a situava claramente após o 15 de Março (Felgas 1961: 26) e ignorava a alteração da ordem pública urbana do 4 de Fevereiro, dividem-se as opiniões. Na bibliografia angolana, controlada pela censura do MPLA, a tese oficial é a do 4 de Fevereiro, imposta pelo partido localmente e mesmo no exterior a todos com ligações ao território (6). 
 
Não se estranha, pois, que o MPLA, partido no poder, tenha celebrado este ano o cinquentenário da “luta armada” no dia 4 de Fevereiro (7). 
 
Tese que também entre nós encontra sustentação, por exemplo, em Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso (2009, vol.2: 32) (8) bem como em Paulo Silva e Orlando Castro (2011: 6-11), numa postura absolutamente consentânea com o seu perfil e perspectiva ideológica de construção da História. 
 
A insistência nesta data assegura, ainda, outro aspecto de comprometimento ideológico (9). 
 
Tendo Portugal durante o denominado processo de “descolonização”, que mais não foi do que o abandono apressado e descuidado de gentes e bens, decidido entregar os destinos de Angola ao MPLA (10), em detrimento dos outros movimentos que combateram as forças armadas portuguesas (11), como não optar pela data fetiche daquele movimento e considerar, ao invés, uma data que era grata e fundacional para a FNLA? Na realidade, Holden Roberto sempre afirmara que o 15 de Março constituía o início da luta armada em Angola. Aliás, ante a hesitação inicial em reconhecer os massacres (de cuja autoria não subsistiam dúvidas), terá sido o pensador e escritor anti-colonialista Frantz Fanon a dizer que se Holden Roberto não o fizesse o MPLA se aproveitaria e o faria (12). 
 
Esta questão é bem exemplificativa da “unidade” na luta em Angola. Na realidade, as operações militares contra Portugal, nesse território, serão desde a sua génese marcadas pela profunda divergência de objectivos e pela diferente base social e étnica de cada um dos movimentos que se nos opunham e que realmente nunca foi ultrapassada. Este facto sempre manteve divididas essas organizações e conduziu a frequentes confrontos armados entre elas, o maior dos quais depois da independência de Portugal. 
 
Na realidade, mesmo no campo angolano, a escolha da data fundacional da “luta de libertação nacional”, depende de quem a afirma e, em última instância, foi unilateralmente declarada pelo movimento a quem as autoridades portuguesas em 1974-75, como se referiu, entregaram os destinos de Angola, o MPLA. Um importante operacional da UPA, José Mateus Lelo, em declarações a Joaquim Furtado, não teve mesmo problema em reconhecer que face ao razoável convívio racial em Angola, foi só após o 15 de Março que deixou de ser possível o entendimento, “era para matar, nós de um lado o colono de outro”, o que atesta as dificuldades de como escrever a História que localmente ainda hoje subsistem. 
 
Sobre a falsificação da História de Angola, também Jaime Araújo Júnior afirmou, “Penso que sim! Porque não se conciliam as vontades e os interesses pessoais e partidários com os interesses nacionais. É preciso que se reponha a História. A História é aquilo que foi. Os actos falam por si. Portanto, se queremos que a acção armada primeira seja o 4 de Fevereiro temos que ser sérios e dizer qual é a sua fonte para os que os vindouros saibam. É uma questão de consciência nacional, não é uma questão de opção ideológica. Não devemos impedir que as pessoas conheçam a História e muito menos falsificá-la como se está a fazer” (13). 
 
Na defesa da data de 15 de Março como início da guerra citaremos, a título de exemplo, entre os estrangeiros John Cann (1998: 25) e entre os portugueses Freire Antunes (1994, vol. 1: 17), Azevedo Teixeira (2006: 84), Brandão Ferreira (2009: 169) e Manuel Catarino (2010: 42). Rui de Azevedo Teixeira de modo expressivo afirma mesmo, desvalorizando o 4 de Fevereiro e defendendo o 15 de Março, que foi “necessária uma nova orgia de sangue, um novo passo no processo de barbarização, para que o regime português decida empenhar-se na segurança de Angola” (2006: 84) (14). 


Na realidade, nunca antes como no 15 de Março, no Norte de Angola, se assistiu a tamanha barbárie e morticínio e foi a mesma que, no entender de Franco Nogueira, levou os “círculos do governo central, na alta administração, tomou-se então consciência de que em Angola há uma situação de guerra, e de que no território se move guerra contra Portugal” (1984: 216). 
 
Foi pois só após esta chacina de brancos e negros, que Salazar reagiu, embora com os dados que hoje possuímos estranhamente tarde, dando o passo definitivo que não se mostrara necessário, nem após os acontecimentos da Baixa de Cassange, em Janeiro, nem após o 4 de Fevereiro. Intransigente defensor da integridade da pátria, Salazar, assegurará as necessidades de Marte com vista à manutenção da unidade territorial das províncias ultramarinas sob a bandeira portuguesa num famoso e conciso discurso de 13 de Abril, proferido pela rádio e pela televisão, em que assume a pasta da Defesa Nacional (15): 
 
“Se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do Governo que se verificará a seguir, a explicação pode concretizar-se numa palavra e essa é «Angola». 
 
Pareceu que a concentração de poderes da Presidência do Conselho e da Defesa Nacional bem como a alteração de alguns altos postos noutros sectores das forças armadas facilitaria e abreviaria as providências necessárias para a defesa eficaz da Província e garantia da vida, do trabalho e do sossego das populações. 
 
Andar ràpidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão. 
 
Como um só dia pode poupar sacrifícios e vidas, é necessário não desperdiçar desse dia uma só hora, para que Portugal faça todo o esforço que lhe é exigido a fim de defender Angola e com ela a integridade da Nação.” (Salazar 1967: 123-124). 
 
A questão da busca da data do início da Guerra é, ainda, e independentemente de opções ideológicas, ingrata porquanto, tratando-se, na perspectiva dos que nos combatiam, de uma guerra de guerrilha a mesma, por definição é caracterizada por actuações dispersas, não continuadas e irregulares. Por outro lado, da nossa perspectiva mais não fizemos do que defender a nossa soberania em territórios secularmente portugueses não havendo, portanto, num e noutro caso, lugar a qualquer formalização do início da Guerra. Na realidade a guerra foi simplesmente acontecendo. 
 
Começava, assim consoante a data escolhida, o conflito que se designa por Guerra de África, Guerra Colonial, Guerra do Ultramar (aquela que compreensivelmente foi a designação oficial portuguesa do conflito até ao 25 de Abril), Guerra da Independência ou Guerra de Libertação (designação mais utilizada pelos que em África combateram as forças portuguesas). A designação das próprias forças que nas províncias ultramarinas de Angola, Guiné e Moçambique, se opuseram às Forças Armadas Portuguesas, de cariz manifestamente irregular, merecem classificações diversas consoante a tipologia do conflito, indo desde a designação de “movimentos de libertação” até à de “terroristas”, passando por “bandoleiros” ou mesmo a prosaica expressão de “turras”. Durante o conflito o mesmo era ainda designado no nosso país, apesar da clara prevalência de Guerra do Ultramar, como Guerra de África. 
 
Embora hoje muito criticados, pela História dos vencedores (saídos dos acontecimentos de Abril de 1974), que no nosso país foram os que estiveram contra a guerra, condenados amiúde na praça pública os primeiros militares portugueses intervenientes (16), que legaram o seu testemunho, conservaram a imagem do horror dos dramáticos acontecimentos ocorridos durante as missões que os levaram até aos confins daquele território após os acontecimentos de Março de 1961 (17). 
 
O início da guerra decorreu num território de quase todos desconhecido, de difícil acesso com picadas cortadas com abatises (18) ou valas profundas que demoravam muitos dias a percorrer, e sobre as quais, frequentemente, impiedosas chuvas se abatiam tornando-as praticamente intransitáveis (19). Picadas onde as nossas tropas eram acossadas por um inimigo cobarde, ocultado entre a vegetação que só aproveitava para atacar nos locais onde a defesa se mostrava quase impossível. Zona com um apoio aéreo muito escasso e em que o principal factor de preocupação era o socorro e a evacuação dos feridos. Eram estes apenas alguns dos escolhos que os bravos soldados portugueses tiveram de enfrentar, até se conseguir estabilizar a ocupação das localidades vandalizadas, o que demorou cerca de cinco meses. 

 


Nos momentos iniciais de combate à subversão os nossos reduzidos efectivos tiveram que se alcandorar ao limite das forças para acudir às populações isoladas das áreas afectadas pelos nossos inimigos. Os que tiveram a fortuna de escapar à matança dos primeiros dias procuravam a segurança noutras povoação não raras vezes caindo nas mãos dos criminosos da UPA que os torturaram, violaram, mutilaram, deceparam e finalmente mataram. Não sendo justificável é, porém, humanamente compreensível, em contexto de guerra, que ante o espectáculo de terror e barbaridade tribal as forças portuguesas tenham respondido de modo igualmente implacável. É essa uma característica da guerra. E muito especialmente daquele tipo de guerra que, uma vez mais importa recordar, por nós não fora iniciada (20). 
 
Eram poucos os efectivos portugueses em Angola (21), as tropas melhor preparadas haviam sido enviadas para debelar a revolta na Baixa do Cassange e outras empregues nas buscas aos musseques dos arredores de Luanda. Coube sobretudo às CCaç Especiais (22)  disponíveis, recentemente desembarcadas em Luanda, avançarem em pequenas colunas para a vasta área dos massacres e a sua resposta, ante a visão do horror e inumanidade, “numa zona onde a destruição era generalizada e abundavam os cadáveres por enterrar, muitos deles com marcas horrorosas de sevícias indescritíveis, violações bárbaras, decapitações e corpos esventrados e cortados com serras” (Nunes 2005: 112), foi particularmente dura para com os rebeldes. Não são raras as cabeças de rebeldes empaladas (23) e a lei de talião – nome usual para as práticas de retaliação que acompanha o desejo de vingança – impera nos confrontos. 
 
Entre os comandantes portugueses deste período que mais se distinguiram surge o nome do Alferes Miliciano Fernando Augusto Colaço Leal Robles (24) da 6ª CCaçE (comandada pelo Capitão Raúl Leandro dos Santos (25) que, dotado de uma fortíssima motivação ideológica na crença de que a sua actuação o era na defesa de Portugal, se mostrou particularmente eficaz na vastíssima área dos Dembos e na qual foi o primeiro a deparar com as vítimas dos terroristas, combatendo-os implacavelmente e com vigor nas suas acções de soberania, nas quais salvou muita população civil fugida para o mato e durante as quais sofremos igualmente numerosas baixas (26). Com o seu nome liminarmente condenado ou simplesmente omitido pela bibliografia relativa aos momentos iniciais da guerra, exceptua-se a obra do Tenente-Coronel Pires Nunes que lhe dedica duas páginas sem nunca, porém, referir expressamente o seu nome, mas concluindo, não obstante, de um modo correcto: “Como alguém comentou «o seu heroísmo foi ter sido lançado às feras e sobrevivido». Só passando por uma situação idêntica – e poucos estiveram nessas circunstâncias – se tem autoridade moral para julgar e acusar quem quer que seja” (2005: 112). 
 
Neste período igualmente a 5ª CCaçE, sob o comando do Capitão Rui Alberto Vasques de Mendonça (27) patrulhou os Dembos nas áreas do Caxito e Úcua, acolhendo muitas populações e reprimindo, no que então foi descrito pelo seu comandante como uma “reacção operacional com determinação”, os negros acusados de infiltrações da UPA e que declarou à jornalista Felícia Cabrita, “Aquilo que hoje pode parecer um massacre, na altura era necessário” (2011: 151). 
 
Relativamente à dimensão dos massacres portugueses Pires Nunes reconhece que se podem ter cometido alguns excessos sobre populações que não fugiram, porquanto estas “eram altamente suspeitas de terem cometido ou apoiado os massacres de 15 de Março, o que, em parte, se sabia ser verdade porque as unidades iam recolhendo documentos abandonados e os indícios eram muito comprometedores (…)”, embora diga sobre as chacinas sem precedentes das nossas tropas, tantas vezes grafadas, serem simplesmente falsas e fáceis de desmontar “pela simples razão de que, em todo o Norte, os massacres eram impossíveis porque, além de muitas outras razões, não haver gente para massacrar” (2005: 114). 
 
Ao longo do desenvolvimento da guerra, cujo estudo detalhado não é o objectivo deste ensaio, foi necessário naturalmente aumentar progressivamente a mobilização das forças portuguesas, nos três teatros de operações muito para além dos recursos iniciais, de forma proporcional ao alargamento das frentes de combate que, no início da década de 1970, atingiria o seu pico. Pela parte portuguesa, a guerra norteava-se pelo princípio político da defesa daquilo que se considerava a defesa da integridade do território nacional, baseando-se ideologicamente num conceito de nação pluricontinental e multi-racial. Por outro lado, os que nos combatiam justificavam-se com base no princípio inalienável do direito à autodeterminação e à independência, num quadro internacional de apoio à luta e a tais pretensões. 
 
Analisemos então os nomes, e as representações que encerram, para nos situarmos no cerne da questão embora devamos constatar, como advertência prévia, que a designação da guerra advém claramente de posicionamentos político-filosóficos, em cuja perspectiva a semântica tende a possuir um papel determinante na sua classificação. 
 
Cremos que a primeira tentativa de discussão historiográfica deste tema se deve a Nuno Severiano Teixeira que numa tentativa de classificação absolutamente falhada, quanto a nós, e claramente eivada ela própria de pressupostos político-filosóficos, afirmou que às “designações de «guerra de África» ou «guerra do ultramar», veiculadas pelo Estado Novo e que tendem a iludir o carácter colonial do conflito, por um lado, e as de «guerras coloniais» ou «guerra de libertação nacional», veiculadas pela oposição portuguesa ou pelos movimentos de libertação que não deixam de encerrar uma conotação negativa ou heróica, por outra, preferimos e utilizaremos a de «guerras de descolonização»” (2004: 68). 
 
Dois comentários apenas a esta reflexão inicial, com a qual discordamos mas que, no plano historiográfico reconhece, contudo, a importância de revisão do tema. A primeira a tentativa de contributo em si, muito importante, de debate da questão; a segunda o falhanço objectivo pois referir Guerra Colonial ou Guerra de Descolonização, mudando apenas o sujeito de colonizador para colonizado, em nada afecta as considerações possíveis sobre o tema, mantendo-se uma mesma realidade que, como veremos, é questionável. 
 
Igualmente numa opção verdadeiramente impossível mas reconhecendo que vivemos há demasiados anos o “síndrome da Guerra Colonial”, o presidente da Liga dos Combatentes, General Joaquim Chito Rodrigues, respondendo a sobre que nome dar ao conflito afirmou, “Chamo só guerra. Eu fiz a guerra do ultramar, porque a política só depois do 25 de Abril a apelidou de Guerra Colonial. 
 
Antes não havia Guerra Colonial mas as colónias e o problema colonial. Hoje em dia, considero que a guerra não tem adjectivos: não é justa ou injusta, nem é do ultramar ou colonial. Em termos militares há várias, a nuclear, a convencional, a guerrilha, mas eu tenho para mim que esta é só guerra” (28). Uma opção vaga e de impossível sustentação historiográfica, mas que demonstra claramente as muito diferentes perspectivas sobre o assunto e sobretudo o incómodo causado nos distintos campos pelas opções assumidas. 
 
Em última instância, situamo-nos, portanto, no domínio de opções que derivam da linguagem, da semântica, considerada a politicamente correcta por parte do utilizador, numa perspectiva de uma construção da História que, raramente, deixa de ser ideológica e comprometida, como se vem afirmando. 
 
Guerra do Ultramar – Como se disse era esta a designação oficial do conflito antes do 25 de Abril. Desde logo porquanto correspondia à designação oficial conjunta daquelas províncias – ultramarinas. O adjectivo ultramarino qualificava um locus, todos os territórios situado no ultramar ou algo relativo ao ultramar, sendo este substantivo relativo às regiões situadas além-mar ou mais popularmente do outro lado do mar. 
 
Sendo esta a designação mais empregue por uma certa tendência legalista e conservadora apresenta três fragilidades: a primeira advém do simples facto de ser a empregue pelo Estado Novo e como tal, e exclusivamente por esse facto, um “alvo a abater; a segunda deriva da contestação, politicamente motivada, do estatuto dos territórios de Portugal em África de todos quantos assacam que a transformação de colónias em províncias ultramarinas foi uma mera operação cosmética; a terceira, justamente, da necessidade de combater uma expressão que é preferentemente utilizada pelos mais conservadores, sobretudo por todos quantos aposta numa ruptura conceptual a opção de uma designação alternativa que promova a mudança. 
 
Guerra de Libertação ou Guerra da Independência – são as principais opções dos independentistas africanos por ambos substantivos corresponderem ao desiderato maior dos seus promotores. Em Angola a liga dos antigos combatentes designa-se mesmo “Liga dos Veteranos de Guerra de Libertação de Angola” (29) o primeiro destes termos é ainda seguido por Edmundo Rocha (2009: 145). Também aqui o emprego destes substantivos pode ser facilmente questionável, na realidade é possível dizer, sem demasiada incerteza que os mesmos são um mero eufemismo porquanto é questionável se a libertação e/ou a independência foram conseguidas, ou se terão antes sido substituídas por tipos diferentes de opressão e repressão, causados por factores exógenos e também endógenos. 
 
Ainda hoje afirmações como esta: “Em África, a primeira colónia portuguesa onde irrompe a guerra de libertação foi Angola (1961)”, são frequentes entre os estudiosos africanos (30). 
 
Guerra Colonial – Esta designação é a predominantemente utilizada pela esquerda marxista, acompanhada, ainda, por alguns independentistas africanos que pretendem acentuar a questão da dominação colonial. 
 
Antes do 25 de Abril, como confessa o moçambicano Lourenço do Rosário “o conceito «Guerra Colonial», que tem a sua origem na esquerda portuguesa e nas hostes antifascistas, sobretudos entre os desertores e exilados políticos, só se consagra após a consolidação da democracia portuguesa” (2001: 79) era uma mera opção política. Uma explicação que não sendo nossa nos parece assaz conclusiva. 
 
A expressão colonialismo, como empregue em Guerra Colonial para além das óbvias conotações políticas encerra ainda um óbvio problema. O colonialismo, no sentido pejorativo que habitualmente encerra a palavra, se é que existiu sob o domínio português – o que como muitos outros conceitos é assunto discutível (31) – não se extinguiu nos países que resultaram da guerra travada contra Portugal, antes se viu substituído por formas de um neocolonialismo bem mais feroz – praticado por nações que ao contrário de Portugal não compreendiam a alma africana – levado a cabo por americanos, russos cubanos, chineses e de outras nações, assim o colonialismo português, viu-se apenas substituído por outros. Recordemos, por exemplo, que o escritor e jornalista francês Saint-Paulien afirmou que “o português sente-se tanto na sua terra nessas províncias longínquas como em Sintra ou em Coimbra. Não tem que fazer nenhum esforço para compreender África” ([1970]: 121). 
 
Encerra ainda o problema de em 1961 não existirem já oficialmente colónias, pelo que classificar de Colonial a guerra, pressupõe uma opção política que não correspondia já a uma realidade legal mas antes a uma determinada visão que se pretende ter da presença portuguesa em África (32). Como muito bem refere Fernando Policarpo desde a entrada de Portugal na ONU, em 14 de Dezembro de 1955, que a defesa da soberania plena sobre os territórios ultramarinos afirmava “que havia muito deixaram de ser simples colónias para se tornarem parcelas do território nacional, como qualquer outra. A Portugal competia mantê-los, defendê-los e desenvolvê-los.” (2010: 20). 
 
A maioria, como constatável, opta pelo Colonial o que, de imediato as classifica e posiciona os respectivos autores. Tirando uma série resultante de uma parceria entre a televisão pública e um jornal diário que optou por um salomónico “Colonial / Do Ultramar / De Libertação” (33) quase todas optam por classificá-la como “Colonial” uma realidade que, como afirmamos, já não vigorava quando os acontecimentos eclodiram. Se dúvidas houvesse sobre o posicionamento ideológico de quem assim a adjectiva, de imediato se desfariam ante a mínima ofensiva heurística. 
 
Sendo certo que “a História é sempre escrita pelos vencedores”, como afirmou Robert Brasillach, vai sendo tempo, de modo a tentar ultrapassar divergências sempre existentes (activas ou latentes) de encontrar uma designação que, acompanhando o vocábulo guerra, caracterize de modo rigoroso e consensual a guerra que foi travada em África a partir de 1961. Parece, pois, evidente que o substantivo que o pode, e deve, acompanhar seja o substantivo África, correspondendo este ao continente onde, em três frentes, a guerra foi travada. 
 
Parece-nos pois que a designação Guerra de África, eventualmente acompanhada dos numerais correspondentes aos anos de duração da mesma, será a mais consensual opção numa perspectiva de uma visão histórica nacional e aquela que, para evitar clivagens desnecessárias, deveria ser fixada e aprovada, eventualmente não nos trabalhos académicos que sempre devem gozar de ampla liberdade, mesmo para apresentar teses desviantes e não raras vezes pouco rigorosas, mas sim nos manuais escolares do ensino obrigatório de Portugal poupando os alunos a querelas ideológicas que, não raras vezes opõe escola a família e vice-versa. 
 
Esta designação, para além das vantagens já aduzidas, apresenta uma outra de cariz historiográfico. Na realidade, não existindo nenhum outro momento na História de Portugal, desde 1415, que designemos por Guerra de África (34) parece, pois evidente que nenhuma outra classificação lhe assenta de modo tão objectivo, claro e abrangente. Haja pois vontade de dar o passo nesse caminho, que será também o de uma certa apaziguação historiográfica. 
 

(*) Artigo editado sob título:

 

O CINQUENTENÁRIO DO QUÊ? A GUERRA DE ÁFRICA 1961-1974

                                 Universidade Lusíada de Lisboa
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Página de informação geral do Município da Damba e da história do Kongo