Por Miguel Kiame
O anúncio das Festas da Damba teve a particularidade de ser difundido quase exclusivamente através das redes sociais. O portal Anandamba e o seu gestor, o meu amigo e parente Sebastião Kupessa foram decisivos nessa campanha.
Contrariamente ao que é comum, nestas circunstâncias, os tradicionais meios de difusão massiva, de importância capital e de alcance nacional, não foram utilizados. É frequente visualizarem-se spots publicitários aludindo a realização de festas, o seu lema, o vasto repertório programático e, finalmente, apelando à participação de todos. Portanto, os media não foram utilizados como era expectável, não só para levar ao conhecimento de todos o que a Damba e os seus filhos e amigos se propunham realizar como também para expor a própria Damba aos olhos do Mundo, o que é fundamental par a obtenção de investimentos.
Mesmo assim, fui contagiado pelas informações postas a minha disposição e porque não tinha participado na dita reunião de quadros, enchi-me de interesse e rumei à Damba a 12 de Setembro. Não falo dos detalhes da viagem sobre os quais já me referi com exaustão em crónicas anteriores. Cheguei a Damba por volta das 17h00 e a primeira grande impressão que se estampou no meu campo visual, foi agradável: a nossa Torre do MABUBU fora, finalmente, ensaboada, embora o seu tecido estrutural não tenha sido recomposto. É ainda uma unidade retalhada pelas fissuras que os ventos dominantes e chuvas torrenciais de décadas a fio e, infelizmente, pela acção criminosa dos homens que, a todo o custo, pretenderam reduzi-la a escombros. Conforta-nos, todavia, a assumpção do compromisso da sua reabilitação, mantendo a sua estrutura arquitectónica original, pelas autoridades competentes. A ver vamos que papel social vai jogar essa estrutura patrimonial, no meio de uma série de subsídios já aventados, para o efeito. Até houve quem sugerisse que o polêmico edifício, sede da antiga Administração colonial, palco de inúmeras actividades de humilhação e repressão aos autóctones pelo poder colonial e inexplicavelmente apagado do nosso espectro visual, talvez por incúria, talvez por desconhecimento, fosse replicado aí. A fachada principal do referido edifício, compunha-se de uma escada com nove degraus. Tal era o estado de ansiedade e medo carregados pelos indígenas quando convocados pela Administração que ao galgar cada um daqueles degraus mais parecia que se estava a transpor a serra da Kanda. Como é consabido, essa cordilheira é abruptamente íngreme. Então, em sentido figurado, a sabedoria popular apelidou àquelas escadas a designação de "Myongo vwa",quer dizer, nove montanhas.
Pessoalmente, nutro a opinião de que o edifício deve ser replicado no território adjacente à actual Administração. A sua construção aí apelará mais facilmente ao papel histórico que jogou.
Outro motivo que me encheu os olhos de espanto, positivamente, é a construção de um novo condomínio - entenda-se centralidade para me adequar ao neologismo em voga - no terreno contíguo à cabeceira do aeródromo da Vila. Segundo ficámos a saber, também será feito um loteamento especificamente dirigido àqueles que pretendem construir empreendimentos residenciais de renda média/alta. A área é nobre e será uma excelente sala de visitas para a nossa graciosa vila da Damba.
A área propriamente dita do aeródromo (pista) estava ornada com galas que lhe emprestaram um simpático ar festivo. No mesmo recinto montou-se uma tribuna que foi utilizada por vários músicos que ostentaram a sua classe e encheram de júbilo o pacato povo mundamba.
Volvidas algumas horas, após a minha chegada, fui agraciado por uma chuvinha agradável e, por coincidência, a primeira após o termo da estação seca do cacimbo. Pessoalmente, reiterei a convicção que venho alimentando de ser um mundamba abençoado. Foi com incontida emoção que recebi essa manifestação de apreço por parte da mãe natureza! " E ko kutukanga e nkuwu ku ivutulwanga". Não faço tradução literal, por isso, para os que não falam kikongo pretendi dizer que "existe uma relação de reciprocidade relativamente àquele que nos brinda as boas vindas e nós que as recebemos". Sinto-me feliz por essa aliança de amor que estabeleci com a Damba que como uma mãe me envolve no seu manto com carícias indescritíveis.
O sábado, como se adivinhava, foi um dia de muita azáfama: chegada dos visitantes, aprimoramento dos últimos detalhes por parte da organização e o vai e vem habitual próprio de um dia dedicado ao "ZANDU", entenda-se, feira ou mercado. Para mim este dia encerra uma ambiência e uma originalidade indecifráveis. Aqui está um dos encantos que nos enfeitiça e atrai para Damba.
O sábado precisava de uma vigésima quinta hora para que a organização fizesse com primor tudo o que se mostrou instável em termos de exequibilidade e fluidez das actividades. A título de exemplo, pode-se apontar a imprevisibilidade e a inconstância da programação.
Aproveitei o sábado para conciliar a minha agenda. Nunca consigo visitar todas as capelinhas. Desta vez melhorei o meu desempenho.
Domingo, dia do Senhor, 14 de Setembro, aniversário da elevação da Damba à categoria de de Vila, há 64 anos. Amanheceu com sol radiante e brioso mas foi de pouca dura porque por volta das 09h00 e, num ápice, registou-se uma mudança brusca. A Damba assumiu o seu estatuto de Suíça de Angola: Muito frio, nevoeiro espesso e fortes rajadas de vento. Nada fazia crer que estávamos há um mês do termo oficial do cacimbo.
Um culto ecuménico serviu de intróito para as festividades. Na verdade, o início não poderia ser melhor. Dar graças a Deus, nosso Criador, pelos benefícios da Paz que hoje vivemos e que nos permitem tais celebrações, foi o mote do culto ecumênico. Estavam presentes no átrio da Igreja Católica várias denominações religiosas. A homilia foi bastante incisiva na caracterização da situação de dormência em que se encontra o Município, um autêntico esqueleto em situação de decomposição galopante. Daí a necessidade de se reerguer dos escombros, apagar as marcas ainda visíveis de um passado recente para esquecer. É vital, para o efeito, a conjugação de sinergias entre o Administração governamental local e a sociedade civil que, pelos vistos, ainda se encontra bastante fragmentada, muito focada para o egocentrismo e, por consequência, fragilizada. Enquanto os naturais do território que hoje conforma o Município da Damba não se reverem a volta da mesma causa, seremos, irremediavelmente, um manto de retalhos, um conjunto de pessoas sem norte, rumando cada um para o seu lado. Isto significa um fracasso retumbante, a todos os títulos.
Daí que os historiadores devam ter a sensibilidade muito apurada para não caírem na tentação de escrever uma história simplista e eivada de rasgos de supremacia de um monarca tradicional em detrimento de outros. Os historiadores saberão aglutinar toda essa complexa teia de retalhos num conjunto harmonioso e unido à sombra da diversidade e especificidade próprias. A história da Damba é a história do Município da Damba com soberanos seculares muito poderosos e que não podem ser obliterados, muito menos pisoteados a custa de um nome da história mais recente. Quero confiar na capacidade dos integrantes do “Núcleo Duro” designado para investigar e escrever o primeiro esboço da história da Damba. Falo em esboço porque todos estamos entendidos que em matéria de história não há obras definitivas e acabadas.
A intervenção do Pastor que proferiu a homilia foi tão brilhante que me fez resvalar para o tema mor do colóquio: História da Damba. Não me preocupa a ideia da sequência dos acontecimentos porque não estou a redigir um relatório das festas. Estas linhas pretendem ser uma narração simples de factos que mais me impressionaram, numa óptica puramente pessoal, por isso, carregada de uma subjectividade acentuada.
Mas o Domingo não foi só o culto que pelo seu carácter ecuménico teve a prerrogativa de reunir os dambenses de todos os credos religiosos do Município. Congratulo-me com o facto e, particularmente, pelo exemplo da convivência pacífica na dissemelhança de interpretação do fenómeno religioso. Um bom exemplo para os partidos políticos despirem as suas ideologias e tendências e se unirem a volta de uma causa comum: o bem-estar do POVO.
Não tendo anuído ao convite feito imediatamente a seguir ao culto para almoçar no Club Recreativo e Beneficiente da Damba, eu, o meu vizinho Tony Sofrimento e mais algumas figuras colunáveis da nossa praça, preferimos almoçar em casa. É aprazível estar em casa, a vontade, improvisar o menu do dia, dimensionando-o aos nossos sabores e à nossa forma de ser e estar como bons mindama de gema. Na definição do prato do dia, fizeram-se algumas conjecturas para as guarnições porque o elemento componencial básico do nosso pitéu, é sobejamente conhecido: FUNGI ou, em alternativa, NKIABU, vulgo kikwanga. Para mim, kikuanga é aquilo que se passou a designar de “ntolola”, acompanhado geralmente com ginguba crua ou torrada. O nkiabu é o famoso fungi fardado e que é, sem sombra de dúvidas, uma grande ração de reserva. Com vista a agradar todas as sensibilidades gustativas, diversificamos as guarnições, vale dizer, o “matongo”. Fiéis ao nosso passado recente, o feijão de óleo de palma ocupou um lugar de destaque, acompanhado de um prato de carne e outro de peixe. Faltaram as kizakas, makasikilas e outras ervas para completar o painel. Na confecção dos alimentos contamos com a ajuda inestimável do nosso mestre Pedrito, secundado pela Jacinta Bondo. A minha missão estava pré-definida, “dibular” o fungi. Entretanto e para a minha frustração, esse desiderato não foi possível ser cumprido porque as manas Bondo, não permitiram que tal acontecesse. Nos termos da cultura tradicional Bantu é inoportuno, inconcebível e quase uma heresia um homem e, no caso, Miguel Kiame cozinhar o fungi na presença da Jacinta e Lúcia. Não resisti à oposição e fiz jus aos ditames da nossa cultura tradicional. A Jacinta, mesmo de saltos altos, não deixou os seus créditos em mãos alheias e o resultado foi um fungi perfeito: nem mole, nem rijo e sem “mafinzi” – bolhas.
A refeição foi regada de acordo com o gosto de cada um, mas na mesa pontificavam vinhos para bons degustadores, “mfiku”(malavo de véspera) para os amantes do “vinho de palmeira” como alguém, um dia, chamou, sumos naturais, dentre eles, o de cana, isto é, o suculento “lunguila” fresquinho, acabado de chegar do Soba Nanga e que posteriormente serviu de base para um cocktail à moda da casa – verdadeira arte, engenho e inovação – e, finalmente, cerveja. Contrariamente ao que se possa inferir ninguém se esborrachou. Comeu-se e bebeu-se parcimoniosamente, num ambiente acalorado, com histórias de um passado não muito longínquo e que deixou marcas incontornáveis de aprendizagem, de aventura e saudade.
Como é normal nessas ocasiões, não faltaram exibições da retórica tradicional, próprias de renomados “nganga mvwala”, personalidades dotadas de uma eloquência extasiante. Neste contexto, o meu primo Fernando Kanga deixou-nos verdadeiramente boquiabertos face à versatilidade do seu verbo em kikongo. Seguiram-se histórias vividas na época pré-independência, nas Escolas e nos Internatos por onde passamos: Kangola, Bungo Késsua, Negage, Carmona, etc. Contudo, a história épica dos “seis tiros” do Tony Sofrimento é merecedora de um filme de acção com direito a um Óscar em que o nomeado e agraciado é o próprio Tony Sofrimento.
O domingo, 14 de Setembro, foi para mim impressionante e gratificante.
Como disse atrás não é meu intento primário trazer ao conhecimento público o desenrolar circunstanciado das festas da Damba. Essa responsabilidade, declino-a a favor dos órgãos da Administração local, organizadores do evento. Todavia, seria injusto não referenciar a abnegação, o espírito de entrega e interesse demonstrados pelo Governador do Uige, Dr. Paulo Pombolo. De acordo com o momento, ele soube despir o casaco de Governador para vestir o de mundamba e adequar a sua participação sem criar ruídos nem obstáculos à comunicação. Os meus parabéns, ilustre mundamba!
O positivo do debate foi o espírito de inclusão e abertura. Todos participaram sem constrangimentos: académicos, nós, os curiosos, respeitáveis autoridades tradicionais e povo em geral.
O negativo foi a auto exclusão de muitos munícipes. Foi notória a ausência de sensibilidades oriundas do Nsoso. Muitos deles, segundo se diz, não se revêm nesse tipo de discussões porque entendem que os problemas da Damba são uma coisa e os do Nsoso são outra coisa. Uma das facetas do trabalho da Comissão criada será aglutinar o foco global de interesses, deixando de analisar a história da Damba cuja órbita gira exclusivamente a volta do nosso umbico: Nakunzi, Nsangi, Nendamba, negligenciando realidades históricas seculares do Wando, Mpete Nkusu , Nkama Ntambu e Nsosu.
Ainda na senda dos negativos, impõe-se questionar: quantas figuras de proa (Ministros, Secretários de Estado, Generais, Embaixadores e outros) marcaram a sua presença?
“Noves fora o Governador, ZERO”.
Infelizmente, esta situação não foi levantada e discutida com a relevância e pertinência que merece. O marasmo que o Município vive é o reflexo desta auto-exclusão. Se os mindamba investem com propriedade noutras localidades e até no estrangeiro porque não na terra que os viu nascer, como acontece com outros angolanos doutras paragens?
Todos, mas absolutamente todos devemos pensar seriamente nisso, mas não me venham com histórias esfarrapadas de feitiço porque este argumento, definitivamente, não tolhe.