Dona Beatriz Kimpa Vita
Há duas características da vida do Congo nesta época, que são muito importantes.
A primeira é o facto de os Capuchinhos se imiscuírem na vida política do Congo, tomando partido por um ou outro dos poderosos ou dos pretendentes ao poder. Os frades estavam muito presentes na vida do Congo. Em relatório redigido em 1708 para a Propaganda Fide, relatando os 28 anos compreendidos entre 1673 e 1701, o prefeito Fr. Francesco da Pavia, diz que naquele período tinham morrido 49 capuchinhos no Congo e em Angola, que 6 tinham morrido antes de chegar a África, e 38 haviam regressado no fim da sua comissão, muitos dos quais com doenças incuráveis; em 1701 restavam 5 nas missões. No mesmo período de 28 anos, tinham feito 340 960 baptismos e celebrado 50 085 casamentos entre os congoleses.
A outra é a importância crescente que o Soyo e os seus interesses representavam nos jogos de poder. A proximidade do mar e a riqueza crescente da região eram mais que evidentes. No final do sec. XVII, o Soyo tinha cinquenta peças de artilharia e o seu exército era suficientemente forte para derrotar, não só qualquer outro do Congo, mas também outros vizinhos que contavam com ajuda europeia. Assim, por volta de 1685, o exército do Soyo derrotou o Rei de Ngoyo e assim desviou um contingente de marinheiros ingleses, a quem apreendeu a artilharia, como despojos de guerra. Estas vitórias permitiram jogar com uma posição de força quando finalmente fizeram as pazes com Portugal em 1690, acabando com o estado de guerra existente desde o ataque português de 1670. O tratado de paz restabeleceu o comércio com os portugueses, mas interessava-lhes mais o comércio com a Inglaterra e os Países Baixos, pois estes estavam dispostos a fornecer munições.
O Soyo queria ver restabelecido o Reino do Congo, mas não queria ver lá um rei muito ambicioso. As esperanças residiam agora em Pedro IV Afonso Água Rosada Nusamu-a-Mvemba que ficara Rei no Kibangu em 1695, por morte de seu irmão Álvaro X. Fora em 2 de Agosto de 1696, que ele tinha marchado para S. Salvador com um pequeno destacamento militar, para que o padre secular Luis de Mendonça o coroasse como Rei do Congo. Apenas um gesto simbólico, pois no dia seguinte regressou a Kibangu, temendo um ataque de D. João II, de Mbula.
Também os portugueses se preocupavam com o restabelecimento do rei em S. Salvador. Na Carta Régia de 24 de Janeiro de 1693, o Rei congratula-se com a paz concluída com o Conde de Soyo e mostra-se preocupado por não se chegar a acordo sobre a eleição do Rei do Congo. E, na Carta Régia de 5 de Março de 1700 (Paiva Manso, 340), manda que se reúnam os Condes de Soyo, o Duque de Mbamba e o Duque de Mpemba, para aplanar as divergências que tinham sobre o Rei a eleger. Esta ordem não teve sequência.
No virar do século, D. Pedro IV mostrava-se o candidato ideal para regressar a S. Salvador como Rei. O seu clã, Água Rosada, tinha raízes tanto no Kimpanzu como no Kinlaza. E, de facto, D. Pedro IV iniciou uma campanha diplomática para o efeito. Fez as pazes com Pedro Constantino da Silva que liderava o grupo de D. Manuel I, morto em 1693. Tomou a sobrinha deste como sua mulher em solene cerimónia realizada em Kibangu em 13 de Julho de 1699, ao mesmo tempo que o nomeava capitão general das suas tropas.
No ano seguinte, D. Pedro IV conseguiu persuadir Dona Ana Afonso de Leão a aderir à trégua. Faltava apenas o acordo de D. João II. Este estava velho, doente e sem fala, mas sua irmã recusou as propostas do enviado de D. Pedro IV, o capuchinho Francesco da Pavia. Nesta altura, os capuchinhos apoiavam D. Pedro IV, embora, três anos antes, Luca da Caltanisetta fosse um activo apoiante de D. João II.
Havia que reocupar a capital. Em 1701, D. Pedro IV mandou o capitão general Pedro Constantino da Silva com um grupo de colonos para S. Salvador, para fazer a sementeira, a fim de que o Rei pudesse regressar no ano seguinte na altura das colheitas. Em 1702, porém, Pedro IV recuou em virtude de Pedro Constantino da Silva, fora do alcance do Rei, ter começado a actuar com demasiada independência. O regresso foi adiado.
O ambiente de guerra civil vivido nas últimas dezenas de anos no Congo, a aspiração à unificação do Reino, misturada com um cristianismo muito superficial, era propício ao desenvolvimento de misticismos, visões e superstições. Assim, no acampamento de Pedro Constantino da Silva (ou Pedro “Kibenga”), uma mulher do povo veio contar que a Virgem lhe aparecera e mandara rezar pela salvação das gentes do Congo. Isto foi relatado ao Rei pelo mordomo do Capitão General Kibenga, Manuel da Cruz Barbosa, que acrescentava estar convencido que este preparava alguma partida. D. Pedro IV pediu a Fr. Bernardo da Gallo que fosse investigar. O frade pediu a Kibenga licença para entrevistar a vidente, mas este respondeu que não a conhecia. Ficou então claro ao padre que o Capitão General estava a manipular sentimentos religiosos com finalidades políticas.
O movimento ganhava cada vez mais conotações políticas. A raiva de Deus era dirigida aos que, atrasando a reocupação de S. Salvador, dilatavam também a realização do processo de paz.
No fim de 1703, apareceu outra profetisa, Apolónia Mafuta, mulher já de idade, com outras mensagens. Também ela tivera uma visão da Virgem. Esta dissera-lhe que se prostrara aos pés de seu Filho, pedindo misericórdia para o povo congolês. Jesus dissera-lhe que estava zangado com o povo de Kibangu, por não descerem da montanha para restaurar a cidade.
Mafuta encontrou Fr. Bernardo, mas este não ficou nem impressionado nem convencido.
Mafuta rejeitava todos os nkisi. Como a palavra englobava tanto os feitiços como os símbolos religiosos (ex., os crucifixos), ela queimava tudo na fogueira, incluindo as cruzes e as medalhas religiosas. Mafuta espalhou a sua doutrina no acampamento de Kibenga e no vale do Mbidizi. Vinham multidões ouvi-la, sendo uma das principais aderentes, a própria esposa do Rei, Hipólita.
Fr. Bernardo pressionava o Rei para mandar prender Mafuta, para que ele a interrogasse. O Rei interrogou Mafuta, mas não a prendeu, o que desgostou Fr. Bernardo.
Em Agosto de 1704, na corte de D. Pedro IV em Kibangu, Dona Beatriz Kimpa Vita ficou doente de uma doença sobrenatural que a levou a morrer e ressuscitar como Santo António (dizia ela). Era o início do movimento Antoniano.
Dona Beatriz Kimpa Vita nascera em 1686 nas margens do rio Mbidizi, junto dos montes de Kibangu. A sua família pertencia à fidalguia local. Os seus pais não trabalhavam, tinham escravos para o fazer. Foi certamente baptizada e depois educada na doutrina cristã e deverá ter sido alfabetizada. Na sua juventude, foi uma nganga marinda, uma actriz religiosa tradicional. Ao chegar à idade da razão, deve ter sofrido com a decadência do Reino do Congo e sentido vontade de fazer alguma coisa para lutar contra isso.
Em Agosto de 1704, Beatriz fora já casada duas vezes e, em ambas, o casamento falhara. É então que se diz possuída por Santo António e decide pregar ao Rei em Kibangu. Depressa ganhou fama de milagreira.
O Rei ouviu-a mas não a prendeu como pretendia Fr. Bernardo.
O teor dos seus sermões era: “Santo António é o santo mais importante. Só a ele o povo deve rezar. Os devotos de Santo António vão descobrir dentro em pouco que no Congo também existem santos como Santo António. Jesus nasceu em S. Salvador do Congo. Jesus e Maria eram congoleses.”
Modificando a história da Igreja, Dona Beatriz, mudou também as palavras da Ave Maria e da Salve Rainha. Esta última transformou-a na Salve Antoniana, que chegou até nós na tradução italiana de Fr. Bernardo. Este nem a comenta, dizendo apenas que contém “tantas horríveis afirmações, que não sabe se a chamar loucura diabólica ou simplesmente blasfémia pura”.
Salve, voi dite e non sapete il perché. Salve recitate, e non sapete il perché. Salve bastonate, e non sapete il perché. Iddio vuole l’intenzione, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve il casamento, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve il battesimo, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve la confessione, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve l’orazione, l’intenzione Dio vuole. La Madre e il figlio nella punta di ginocchio. Se non era S. Antonio, come avevano da fare? S. Antonio è il pietoso, S. Antonio è il rimedio nostro, S. Antonio è il restauratore del regno del Congo, S. Antonio è il consolatore del regno del cielo. S. Antonio è lui la porta del cielo. S. Antonio tiene le chiavi del cielo. S. Antonio è sopra gl’Angioli, e la vergine Maria. S. Antonio è lui il secondo Dio…
Salve, dizeis vós e não sabeis porquê. Salve, recitais e não sabeis porquê. Salve pancada, e não sabeis porquê. Deus quer a intenção, é na intenção que Deus pega. O casamento não serve para nada, é na intenção que Deus pega. O baptismo não serve para nada, é na intenção que Deus pega. A confissão não serve para nada, é na intenção que Deus pega. A oração não serve para nada, Deus quer é a intenção. A Mãe e o filho na ponta do joelho. Se não fosse Santo António, o que teriam de fazer? Santo António é que tem piedade, Santo António é o nosso remédio, Santo António é o restaurador do Reino do Congo, Santo António é o consolador do reino do céu. Santo António é ele mesmo a porta do céu. Santo António tem as chaves do céu. Santo António está acima dos Anjos e da Virgem Maria. Santo António é ele mesmo o segundo Deus.
“Mas se tu és uma mulher, como podes tu ser Santo António?”, perguntou-lhe o padre.
“Santo António entrou na minha cabeça para pregar em Kibangu”, retorquiu ela.
Depressa Fr. Bernardo concluiu a entrevista, ficando convencido que ela estava possuída do demónio. Assim o disse ao Rei no mesmo dia. Ao mesmo tempo, decidiu que, no domingo seguinte, denunciá-la-ia do púlpito durante a missa. Porém, D. Beatriz abandonou Kibangu antes disso (Outubro de 1704). Dirigiu-se para a Corte de D. João II em Bula, sempre acompanhada por uma multidão de fiéis. Ali teve mau acolhimento e, por isso, desceu para sul, para S. Salvador. Nessa altura, ela proclamava que sofreriam todos os que não a apoiassem. Pedro Constantino da Silva apoiou-a e acolheu-a na seu grupo.
D. Beatriz instituiu grupos de jovens que iam pelo Congo pregando a sua doutrina, a quem chamou Antoninhos. Faziam pouco de Fr. Bernardo, o principal antagonista deles, e chamavam-no pequeno Bernardo ou finganga – padrezinho.
D. Pedro IV sabia que tinha de agir e decidiu finalmente avançar para S. Salvador. Chegou a Mulumbi e enviou uma mensagem a Pedro Constantino da Silva Kibenga para que viesse ter com ele jurar fidelidade. Kibenga recusou e declarou-se rebelde.
Na Quaresma de 1705, dois Antoninhos chegaram a Mbanza Soyo e conseguiram ser recebidos pelo Príncipe António III Barreto da Silva, mas este expulsou-os do condado, proibindo que continuassem ali a pregar. Deslocaram-se então para o sul do Congo, onde tiveram mais sorte. O movimento Antoniano estava agora intimamente ligado à política do Congo.
A vida privada de Dona Beatriz trouxe-lhe também algumas complicações. No final de 1704, ligou-se a um homem chamado João Barro. Este passou a ser o seu Anjo Principal, conhecido como S. João. Por duas vezes engravidou, mas conseguiu abortar, usando remédios locais. Mas em meados de 1705, engravidou de novo e os remédios abortivos falharam desta vez. Isto era muito embaraçoso, porque ela impunha a castidade aos seus Antoninhos. Para esconder a gravidez, em Março de 1706, começou a dizer aos seus fiéis que, para resolver os seus problemas, teria de permanecer no Céu durante algum tempo. Refugiou-se então na aldeia da sua naturalidade, junto das margens do Rio Mbidizi. O nascimento da criança, em Abril de 1706, coincidiu com a tomada de posição do Duque de Mbamba, Pedro Valle das Lágrimas e da Rainha Ana Afonso de Leão. Estes enviaram mensageiros ao Rei Pedro, para juntarem forças contra os Antonianos e sobretudo contra Kibenga. De passagem pelo Rio Mbidizi, encontraram Dona Beatriz, o companheiro e o filho de ambos, prenderam-nos e foram entregá-los a D. Pedro IV.
O Rei hesitava sobre o que havia de fazer. Decidiu finalmente enviar os presos para Luanda, ao cuidado do Bispo do Congo e Angola. Mas no final de Maio, Fr. Bernardo foi visitar o Rei e fê-lo mudar de ideias, no sentido de julgar D. Beatriz ali mesmo. Ela e o seu companheiro, João Barro, foram condenados a morrer na fogueira. À última hora, Fr. Bernardo da Gallo conseguiu salvar o filho de ambos de morrer na fogueira com eles como pretendia o povo de Kibangu, em 2 de Julho de 1706.
O movimento Antoniano ia desaparecendo, mas as rivalidades políticas, essas mantinham-se. Em 1708, prosseguiram as guerras civis. Pedro Constantino aliado aos Nóbregas de Lobata atacou D. Pedro IV, mas saiu derrotado. Em 15 de Fevereiro de 1979, D. Pedro IV deu o assalto final contra Kibenga e pôs fim à rebelião. Dos seguidores de Kibenga (que morreu na refrega), alguns foram capturados, outros fugiram para Lobata, onde os Kimpanzu de Manuel da Nóbrega continuaram a luta contra D. Pedro IV.
O Soyo, sob a liderança de Paulo IV da Silva, aceitou pagar um tributo nominal a D. Pedro IV, recusando prestar ajuda aos seguidores de Pedro Constantino que ali se refugiaram. Alguns anos depois, em 1715, D. João II reconheceu também a soberania de D. Pedro IV e no mesmo ano, Manuel da Nóbrega foi capturado e degolado por Pedro Valle das Lágrimas.
Reinando sobre o Congo de novo unido, D. Pedro IV quis casar-se de novo, já que sua mulher Hipólita tinha sido infiel. Contra o parecer dos capuchinhos, Estêvão Botelho, um padre secular, aceitou casá-lo. D, Pedro faleceu em 1718, com a satisfação de ter reunificado o Congo.
Fonte; arlindo-correia.com